Brinquedos fazem parte do universo
infantil e contribuem para potencializar a inteligência, para representação do
mundo social. Por isso, meninas também podem brincar de carrinhos afinal
enquanto crianças ainda não conseguem dirigir um carro de verdade, mas ao
brincar representam as condições concretas que vivenciam, criam e reelaboram.
Do mesmo modo que bonecas não são apenas para meninas, como erroneamente a
sociedade faz pensar, numa falsa perspectiva de que atribuições de cuidar,
alimentar, exercer a responsabilidade pelas crianças seriam estatutos
femininos.
Contudo,
esse tratamento dispensado à boneca dificilmente pode ser aplicado à Barbie,
afinal seria possível tratar uma adulta como bebê? Bem, lembrando que boneca é
o instrumento da criança representar a relação existencial entre responsáveis e
filhos, a Barbie, enquanto mulher e dona de um corpo nos padrões do socialmente
considerado belo, não preencheria as características de neném. Esse senso comum de beleza se encaixa
aos critérios impostos: jovem, loira, magra, de olhos azuis e sempre maquiada.
É como se disséssemos às crianças que pessoa bonita deve estar dentro dessas
características, mesmo as brasileiras sendo, em sua grande maioria,
proprietárias de cabelos escuros, dificilmente com cinturas tão finas, nem
sempre livres de celulite, varizes ou estrias.
Nesse
sentido é possível perceber que a Barbie não é simplesmente uma boneca. É uma
modelo de mulher, representação para a criança-menina de corpo, gênero e
infância. Esse imaginário de beleza de corpo é inculcado pela mulher desde
tenra idade através da boneca Barbie e não é à toa que numa pesquisa (ROVERI, 2011)
80% das mulheres entrevistadas apontavam insatisfação com o próprio corpo.
Em
termos de gênero a Barbie traz consigo um arsenal de informações para a menina.
É notória a exaltação da cor rosa, nos desenhos e em seu site há a
representação de uma mulher dócil, delicada, generosa e romântica, alimentando
o estereótipo de mulher frágil e sensível, interessada em compras ou namoros. O
brinquedo e a publicidade da boneca incitam a vaidade, o consumo e a
delicadeza, no qual os jogos on line
da boneca estão relacionados com cabeleireiros, maquiagem, moda.
Mas...
cabe a pergunta: Por que as meninas de um modo geral, adoram a Barbie?
Primeiramente cabe destacar a quantidade
de propagandas veiculadas nos canais infantis que incitam o desejo de compra de
bonés, camisetas, mochilas e bonecas Barbie para um público vulnerável que
enxerga naquelas cores chamativas, animação, e tons de alegria, uma associação
entre felicidade com consumo.
Contudo,
podemos imaginar a situação de uma criança que não é exposta aos meios
televisivos e mesmo assim admira a tal da boneca. Ora, numa sociedade em que
amigas e primas interagem com suas Barbie Butterfly, Barbie sereia ou de
qualquer outra espécie, não possuir a original ou a cópia, significa não compor
as brincadeiras.
Outra
questão que chama atenção das meninas, transformadas em consumidoras infantis,
é a relação que se faz da Barbie com os contos clássicos de fada. Embora o
desenho seja de péssima qualidade, com conversas irritantes e numa superação de
problemas estritamente marcados pela ordem individual, ele fascina e conquista o
público infantil feminino. Contudo, o desenho e a própria propaganda pode estar
contribuindo para uma erotização precoce conforme aponta a pesquisa de Felipe e
Guizzo (2003), que chamam a atenção para o fato de estarmos vivenciando uma
pedofilização da sociedade, na qual as meninas são consumidoras e objetos a
serem consumidos, apresentadas nos comerciais da boneca com apetrechos,
acessórios e posturas reafirmando beleza, vaidade e sensualidade.
Eliminar
a Barbie? Eis a questão? Não! O objeto em si não é uma ofensa à infância, mas o
uso que se faz dele. Eu demorei para sacar isso. Não quero dizer com isso que
começarei a presentear a Isabela com essa boneca, mas as que ela tem, devemos
trazer outro sentido.
Até os três anos da
Isabela, se ela ganhasse uma Barbie eu dava para outras crianças, afinal eu
ainda mantinha a decisão sobre os brinquedos. Entretanto, após essa idade a
Isabela manifestou interesse na boneca e dá-la seria um desrespeito às decisões
da minha filha. O segundo modelo de descarte da boneca veio no contraponto em
casa: incentivava outras bonecas ou outras brincadeiras como de médica, fantoche,
quebra-cabeça, dominó, encenação de histórias, dentre outros... Contudo, nos
últimos meses tem vindo a demanda “Vamos brincar de Barbie?” e ser sincera
falando “Eu não gosto” me deixava com o sentimento de conflito entre manter
minhas opções ou compartilhar momentos com minha pequena.
Escolhi
a segunda opção, mas dando pinceladas da primeira. A Barbie nas brincadeiras
não era uma mulher da classe alta pronta pra ir ao shopping. Era veterinária,
artista, feiticeira, bailarina, militante, fada, trabalhadora rural...
personagens do universo real e do imaginário, com toques de representação
social para uma sociedade mais justa, em que o feliz para sempre fosse para ela
e pra todos.
Brincando,
veio um jeito de “eliminar” a Barbie que eu não tinha pensado antes... Pegando
uma mecha do meu cabelo e uma mecha do cabelo da boneca perguntei: “Isabela, vê
se o cabelo parece!”, e logo ela disse, “não, o seu é escuro!”. A partir daí eu
fiz perguntas sucessivas para que ela comparasse com o seu próprio cabelo, com
o das avós, das tias, das madrinhas... E a conclusão já dá pra imaginar qual
foi. Daí fiz nova questão: Olha o tanto de gente com cabelo escuro e essas
bonecas não parecem com a gente. Olha o tanto de boneca loira! E se a gente
pintasse os cabelos delas?
Ela
ficou animadíssima! Teve peruca vermelha, preta, marrom e cinza. Pintamos
porque boneca não é pra ilustrar prateleira em quarto de criança. Boneca é um instrumento de lazer e de como qualquer
instrumento, foi criado como forma do ser humano intervir na realidade. Sendo
assim, não basta ser apropriada e comportadamente usada para entreter, mas deve
ser compreendida de diversas formas, com diversas situações de uso, não somente
para explorar a criatividade como também para a própria criança ressignificar
seu universo empírico, superando o visível, o convencional, o estipulado.
Ir
além do convencional nesse caso foi fazer novo uso da boneca, ressignificá-la.
Pode ser que a Isabela se paute por outras visões de mundo, mas é importante ao
menos que veja outras possibilidades para conseguir fazer essa escolha entre
aceitar apelos midiáticos ou compreender o potencial humano de
mudança, no qual no caso se traduz lembrar que as bonecas que devem nos
representar e não contrário.
Ana Paula Ferreira
18/09/2015
Referências
bibliográficas
FELIPE,
J.; GUIZZO, B. Erotização dos corpos infantis na sociedade de consumo. Pró-posições, v.14, n.3, p. 119-130,
set/dez 2003.
ROVERI,
F.T.; SOARES, C.L. Meninas! Sejam educadas por Barbie e ‘com’ a Barbie. Educar em Revista, n. 41, p.147-163,
jul/set 2011.
Texto publicado Jornal da Cidade 18/09/2015.
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