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sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

A gente se acostuma: ponto de vista de uma mulher

Imagem do site http://sensecoaching.com.br/

A gente se acostuma a ser interrompida a todo momento e por ser interrompida, vamos deixando de falar.

A gente se acostuma com as vozes de que nos dizem sobre nossa estética, nossos cabelos brancos, nossa barriga para além da calça, nossas marcas de expressão. E ao escutarmos demais, olhamos o espelho como inimigo, nos enchemos de remédios e nunca nos contentamos com o nosso corpo.

A gente se acostuma com os gritos da vizinha que apanha do marido, com o assédio no trabalho ou com as músicas que sexualizam as "novinha". Por acostumarmos, a violência enterra vítimas, mata almas e abusa de meninas.

A gente se acostuma com o fato das mulheres exercerem tantas funções sem remuneração e com a política institucional ser exercida mais por homens. Daí que não refletimos sobre o fato de haver tão poucas creches, asilos, postos de saúde, pois para governos neoliberais, o cuidado da criança, do idoso ou do doente de uma família é obrigação da mulher e não do Estado. 

A gente se acostuma a tirar a louça da mesa, a lavar a roupa, a deixar tudo limpo e organizado, a acompanhar a saúde, higiene e as tarefas escolares dos filhos. E os homens, por acostumarem, acham que essas tarefas são apenas de nós, mulheres. 

A gente se acostuma a tratar o menino como se fosse bebê e a menina como moça e depois ficamos espantados ao ver muitos rapazes imaturos, negligentes no trânsito, na escola, no trabalho, que não assumem a paternidade ou qualquer outra responsabilidade. 

A gente se acostuma a achar que mulher negra é melhor "parideira" ou que seu lugar é apenas no serviço braçal, marginalizado financeiramente e socialmente. Então é esse grupo que sofre mais a violência obstétrica, que tem menos possibilidade de ascensão e se torna invisível nas políticas públicas.

A gente se acostuma com o machismo, ignoramos ou maldizemos o feminismo e enquanto isso, sobrecarregamos as mulheres com um trabalho não pago, aumentamos a pobreza entre o público feminino e as mães solo, permanecemos um país que se destaca entre os que mais assassinam mulheres apenas por serem mulheres. 


Ana Paula Ferreira
Membro do Coletivo Mulheres pela Democracia

Releitura da crônica de Marina Colasanti e publicada no Jornal Mantiqueira e Jornal da Cidade do dia 30/12/2022

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Machismo estrutural e o machismo cotidiano

           

Foto do site El Pais

              Por que na nossa sociedade o machismo é estrutural? Primeiro, vamos pensar na palavra “estrutura” lembrando da imagem de um prédio. Um prédio é construído sob colunas, bases, afundamentos. Pode-se pintar as paredes de outra cor, fazer outro jardim, mudar janelas de posição, mas isso não altera a estrutura do prédio. Ele somente teria outro arcabouço se rompesse com suas bases.

            Ocorre que na sociedade capitalista, a principal desigualdade é a de capital, onde uns poucos detêm os meios de produção e compram a força de trabalho da maioria da população, por preço mínimo. Contudo, para que o poder seja de fato consolidado, os donos do jogo hierarquizaram a sociedade atribuindo privilégios a alguns em detrimento a outros, na perspectiva de “dividir para conquistar”. Assim sendo, ao que seria apenas uma desigualdade entre classes sociais, se somam desigualdades definidas pela cor, raça, gênero, orientação sexual, nacionalidade, e tantas outras questões que diminuem o outro para que sua exploração no mercado seja ainda maior.

            Pois bem, voltemos à ideia do prédio e a questão do machismo estrutural. É fato que a mulher conquistou o direito de votar, estudar, exercer diversos cargos, escolher ou não a vida matrimonial. Entretanto, não alteramos a estrutura, uma vez que a distribuição da riqueza e do poder ainda é concentrada nas mãos masculinas, ao ponto de haver a “feminização da pobreza”, seja porque há uma discriminação salarial entre homens e mulheres, seja porque a mulher exerce diversos trabalhos não remunerados, seja por suas ocupações com pouca rentabilidade.

            De modo a garantir que essa desigualdade permaneça, a cultura, tão entranhada nas relações humanas, nas instituições e nos meios de comunicação, cumpre papel fundamental. É a cultura que validará o machismo cotidiano manifesto em gestos sutis, mesmo entre os que se dizem progressistas ou defensores da igualdade de gênero. Na vida familiar estará por exemplo, na sobrecarga de tarefas domésticas ou relacionadas ao cuidado, estritamente despendidas por mulheres. No ambiente de trabalho se apresenta com homens que alteram o tom de voz, batem em mesas ou apontam os dedos quando o outro funcionário é uma mulher; na vida pública o machismo cotidiano está em tentar silenciar a mulher, depreciando seus discursos ou colocando em xeque seu equilíbrio mental ou sua moral.

            Daí que enquanto não mudamos a estrutura do capitalismo, que se ergue sobre os pilares das desigualdades, nunca eliminaremos o machismo, e sempre haverá o risco de direitos que até então que estavam consolidados, serem questionados. É o caso atual, brutal e extremamente misógino, apresentado com o PL 478/07, chamado de “Estatuto do nascituro”, que prevê a anulação de direito ao aborto em casos de violência sexual, algo até então garantido desde o Código Penal de 1940.

            A aprovação desse Projeto de Lei seria a força do estuprador se estendendo para além do ato violento, corroendo não somente a estrutura psíquica da vítima, como também sua estrutura biológica, fazendo-lhe crescer uma barriga que ela não desejava, uma criança que ela não queria.

            Se é de estruturas que somos feitos, se é de estrutura que a sociedade é elaborada, quais pilares precisaremos desmontar para reerguer outra perspectiva de mundo? Aliás, é interessante perceber que o símbolo arquitetônico do poder, o obelisco, tem formato fálico, vertical, imponente, simbolizando superioridade.

            Creio ser necessário uma engenharia social plantada na horizontalidade, tanto da distribuição do capital econômico, quanto cultural, social, simbólico. É um projeto possível e por isso precisamos ficar atentos e participar na medida do possível da construção das políticas públicas que tanto balizam sobre essa distribuição do que é produzido pela humanidade. Junto a isso que possamos olhar para os machismos do dia a dia, nos repensarmos enquanto seres humanos, para não endossarmos uma violência contra a mulher que já é por si só, tão gritante.

Ana Paula Ferreira

Membro do Coletivo Mulheres Pela Democracia

Texto também publicado no Jornal da Mantiqueira e no Jornal da Cidade do dia 20/12/2022