Páginas

sábado, 27 de abril de 2024

Educação de gênero nas escolas

 

 

Começo com dois dados: Brasil é o 5º país em feminicídio e o país que mais mata população LGBT no mundo. Diante disso, imaginemos o medo de assumir-se gay, de ser rejeitado pela família, de apanhar na rua apenas por andar de mãos dadas com quem se gosta. Imaginemos, uma de nós mulheres, morrer apenas por sermos mulher. Por isso, é injusto quando tentam silenciar a escola de um compromisso social e a acusam de praticar ideologia de gênero ou que deve ensinar apenas o currículo propedêutico.

Escola não pratica ideologia de gênero. Até porque esse termo foi empregado pela primeira vez pelo Papa João Paulo II em ataque aos movimentos feministas, como se essas fossem avessas à ideia de família. Esse conceito colou e qualquer trabalho que a escola faça de refletir os papéis sociais entre homens ou mulheres, violência e desigualdade de gênero é compreendido como uma afronta à liberdade dos pais na educação dos filhos, em discursos de “meu filho, minhas regras”, sob entendimento de que filho é objeto, é posse, é propriedade.

Escola é um espaço republicano e como tal preza pela coletividade. A contribuição das famílias pode ocorrer no Projeto Político Pedagógico, nas reuniões, nos Conselhos, Associação de Pais, mas não é no berro, não é na intimidação, não é estigmatizando professores como doutrinadores. Como espaço republicano a escola deve caminhar de mãos dadas com a democracia e com o bem comum. Nesse sentido, o objetivo não é destruir a heterossexualidade, mas sim da temática de identidade (não ideologia) de gênero e orientação sexual não ser apagada.

Basta lembrar que no artigo 205 da Constituição Federal deixa-se claro que a educação visa o desenvolvimento do sujeito, da sua cidadania e qualificação para o trabalho. Como será o desenvolvimento do sujeito que não se entende na sua sexualidade? Como ocorre o desenvolvimento da cidadania se há permissividade com o desrespeito e com a violência contra pessoas que não seguem o padrão heteronormativo?

Então, por lei, pela Constituição Federal, não há como a escola dar apenas aula de Trigonometria, Química Orgânica ou Oração Subordinada. Não venham nos falar que a questão de valores é atributo apenas das famílias, pois se assim bastasse, não teríamos níveis abismais de morte de mulheres e pessoas LGBTQIAPN+. É necessário um trabalho em rede e pensar em rede é extremamente orgânico e necessário para tratar de problemas sociais e a escola, por sua vez, sendo um espaço privilegiado de socialização, tem sua responsabilidade na formação de uma nova sociedade.

Como então a escola pode construir condições com vistas a igualdade de gênero? Primeiro se abastecer de materiais de leitura, compreender conceitos, tanto para lidar melhor com as juventudes (no plural para lembrarmos da diversidade do que é ser jovem), como para construir o perfil republicano. Reforço isso porque por mais que cada pessoa tenha a sua fé, seu modo de ver a vida, na escola a perspectiva não é caseira, não é do quintal da nossa casa, é no cumprimento de leis, na defesa dos Direitos Humanos, da coletividade, de princípios basilares para se viver em sociedade.

E tendo em vista que a escola segue leis, que busquemos esse respaldo legal. A Base Nacional Comum Curricular foi estrangulada na sua redação com cortes das palavras “orientação sexual” e “identidade de gênero”. Por outro lado, na Lei de Diretrizes e Bases 9394/96, no seu artigo 26, tem-se o seguinte registro “Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos”. Assim sendo, a escola, com base nas suas demandas locais, pode sim incluir no seu currículo a discussão de assuntos que lhe façam sentido.

Como isso pode ser feito? Primeiro ponto é que não se resolve com palestra. Palestra dificilmente deixa dever de casa, dificilmente tem um caráter de um desenvolvimento contínuo. É o mesmo problema de falar sobre feminismo apenas no 8 de março. Se a intenção é reverter a lógica de desigualdade porque destinar apenas uma semana para falar da mulher e o restante do ano contamos a história de generais, imperadores, escritores, cientistas, todos eles homens cis, geralmente brancos e heterossexuais? Docentes que querem subverter a lógica de opressão social, articulam pauta classista, de gênero e de raça costurando com o currículo oficial. Isso é possível! Vamos ensinar Estatística? Por que não interpretar gráficos que representem a gritante violência de gênero? O conteúdo é Revolução Francesa? É importante falar que no período que homens defendiam a ideia de liberdade, fraternidade e igualdade, ironicamente guilhotinaram Olympe de Gouges porque defendia direito das mulheres. O ensino será sobre a Revolução Russa? Precisamos urgente enfatizar que uma das hipóteses da data 8 de março é porque as tecelãs russas foram as ruas pedir por pão e justiça social em greve que antecedeu a Revolução. O ensino é sobre a Segunda Guerra Mundial? Deixar às claras que comunistas e homossexuais foram perseguidos, porque o fascismo mata esses dois grupos.

Há inúmeras possibilidades de articulação curricular: resgatar a importância de mulheres e população LGBT na ciência, na literatura, no esporte; refletir sobre a linguagem estereotipada; em alimentação problematizar os padrões estéticos e os danos à saúde. Contudo, além de compreensão de conceitos por parte dos educadores, além de amparo na lei e de reorganização curricular é fundamental a mudança do clima escolar. Há espaço acolhedor para denúncias? Há campanhas de conscientização sobre as violências? Incentiva-se a formação de coletivos juvenis, grêmios ou assembleias? É colocado em debate o controle dos corpos, inclusive sobre a vestimenta estudantil, ou apenas a roupa da menina que é censurada?

Os campos de concentração foram bem planejados por engenheiros. Enfermeiras conseguiam cumprir tecnicamente seu papel no extermínio de milhares de corpos. Médicos realizavam as tarefas médicas que eram incumbidos pelos nazistas. Por isso, já salientava Adorno, que não basta apropriação do conhecimento se nosso trabalho será para o apagamento, para a violência, para o genocídio. Não há neutralidade na educação e nunca haverá e se queremos uma sociedade longe do que foi Auschwitz, que nos repensemos, enquanto profissionais e seres humanos.

 

Ana Paula Ferreira

Supervisora da rede estadual e escritora

Texto publicado no Jornal da Cidade 27/04/2024

terça-feira, 2 de abril de 2024

Direito à educação: permanência na escola

 


A obrigatoriedade da oferta de ensino dos 4 anos aos 17 anos só ocorreu em 2009 e, portanto, percebe-se o quanto a universalidade da oferta da Educação Infantil e do Ensino Médio ainda é um desafio recente. Esse histórico excludente da educação brasileira está alinhado ao modelo da nossa sociedade extremamente desigual em se tratando de classe social, questão racial e de gênero. Aliás, o perfil do estudante que abandona a escola sem terminar a escolaridade diz muito sobre isso.

De acordo com dados da Unicef de 2022, quase 50% dos que evadiram, alegaram não frequentar a escola por motivo de trabalho, 28% para cuidar de familiares, 14% por questão de gravidez na adolescência, 18% devido a problemas com transporte. Já em relação a fatores pedagógicos tem-se o percentual de 30% que relatou ter saído da escola porque não conseguiam entender as explicações, o que é consubstanciado na pesquisa de Maria Helena Patto em “A produção do fracasso escolar” quando pontua que a escola cria um imaginário de “aluno ideal” e geralmente afasta o “aluno real”.

Primeiramente, há o impacto da opressão pela classe social, pois trata-se de um grupo de crianças e jovens em situação de maior vulnerabilidade social e que precisam contribuir na renda familiar. Somado a isso, 58% dos jovens que não concluíram o Ensino Médio era masculina e quase 72% de pretos e pardos (PNAD, 2020).

Ora, se um dos grandes problemas elencados é que boa parte dos estudantes para de estudar para trabalhar, é importante um trabalho mais assertivo do Ministério Público, haja vista que ele também deve garantir a permanência do direito à educação e essa ação não deve ser meramente dogmático-normativo, no cumprimento da lei, mas de interlocução com a sociedade na construção de políticas públicas. Deixo um exemplo. Em Poços de Caldas, por ser uma cidade turística, conta com um grande número de hotéis, que contratam jovens, muitas vezes sem carteira assinada e que cumprem um horário de trabalho que excede as 8 horas. Qual a consequência? São jovens que saem tarde do trabalho, ou precisam se ausentar das aulas nos dias de quinta e sexta-feira, que acabam evadindo. Nesse sentido, Ministério Público, lideranças do Executivo das redes de ensino municipal e estadual, juntamente com representantes dessas empresas poderiam se reunir e buscar um alinhamento de modo que o direito a educação não seja cerceado.

Contudo, num país tão marcado pelo desemprego estrutural, há de se considerar que nem sempre os jovens estarão empregados e a depender da situação da família, é importante que seja acompanhada pelo CRAS para o recebimento de programas de transferência de renda, que visam contribuir para que a pobreza não perpetue por gerações, diante da falta da escolaridade. Esse ano inclusive, inicia-se o Programa Pé de Meia, específico para estudantes do Ensino Médio, de modo a incentivar mediante dinheiro depositado em poupança, que continuem na escola.

Outra instância fundamental na defesa da permanência de crianças e adolescentes na escola é o Conselho Tutelar. Entretanto, apresenta o imenso desafio de romper com o imaginário daqueles que o compreendem como instância repressora e punitiva e que buscam afastar da escola alunos que apresentam indisciplina ou transgressões. Nesse sentido, o Conselho Tutelar pode se valer de uma presença maior nos espaços escolares no resguardo do Estatuto da Criança e do Adolescente, para que ambas instituições reelaborem medidas socioeducativas que contribuam para o desenvolvimento do sujeito.

E como a escola pode avançar no direito à permanência? Primeiramente, traçando o diagnóstico de sua comunidade, item fundamental que compõe o Projeto Político Pedagógico. Esse diagnóstico pode ser elaborado através de formulário: quantos alunos trabalham? Quantos precisam cuidar de familiares? Qual a renda familiar? Precisam de transporte público? E tantas outras questões que a equipe de professores juntamente com a supervisão pedagógica podem elaborar. Além disso, pode-se também encaminhar ofícios aos órgãos que atendem a mesma comunidade para se ter dados dessa realidade social: quantidade de jovens encaminhados nos últimos anos por relação com o tráfico, número de jovens grávidas na adolescência, número de alunos atendidos pelo Bolsa Família, etc. etc.

Assim, com base nesse levantamento é possível a escola se repensar, seja em parcerias maiores com o CRAS, encaminhando solicitações de transporte, mudando o currículo, organizando momentos de reforço escolar, incentivando a criação de grêmios e coletivos estudantis de modo a ampliar o debate e a participação na defesa dos Direitos Humanos e sobretudo: apostar no aluno! Que esse estudante perceba que tem apoio, que consiga estabelecer vínculos com as pessoas e com o espaço, pois pessoas que estabelecem vínculos dificilmente se afastam. E, se por acaso não houver a permanência estudantil, reflitamos em que parte houve a falha da sociedade ou do Estado, ao ponto desse abandono não ter sido meramente do sujeito, mas dele ter sido abandonado praticamente a própria sorte.   

Ana Paula Ferreira

Supervisora da rede estadual

quinta-feira, 21 de março de 2024

Sororidade para não ser capitã do mato

 



Eu aprendi o que era “sororidade” antes de conhecer a palavra.

Minha mãe tem duas irmãs a tia Lúcia e tia Tininha. As três sempre se ajudaram e não compunham apenas fotos de batizado, festa de aniversário ou casamento. Fortaleciam-se apesar das adversidades, as quais não foram poucas. Independente se o problema era doença, divórcio, alcoolismo na família ou qualquer outra situação que trouxesse certa instabilidade emocional, elas estavam juntas, se acolhendo, conversando, organizando o que fariam. Se houvesse choro, havia ombro; se houvesse raiva, havia escuta; se houvesse carência, haveria mão estendida.

Elas não competiam entre si. Acolhiam-se. Nem sempre foi mar de rosas, mas diante de qualquer eventualidade estariam próximas, num sentimento de empatia, cooperação, incentivo, justamente porque juntas eram mais fortes. Essa foi a sororidade que conheci e nisso que me baseei acreditando nessa cumplicidade feminina, porque independente das feridas sociais ou dos machucados machistas, elas traziam a cura.

Por isso que tive resistência em entender a Simone Beauvoir quando ela escreveu que embora as mulheres sejam mais de 50% da população, a desigualdade de gênero se mantinha, em boa parte em razão da desunião das mulheres. A filósofa justificou que culturalmente fomos ensinadas a nos preocupar mais com os projetos dos maridos, irmãos, pais, do que com os planos ou fortalecimento de nós mesmas ou de outras mulheres. Não é sem razão que a obra clássica de Beauvoir recebe o nome de “Segundo Sexo”, compreendendo que a mulher fica em segundo plano, colonizadas a tal ponto que julgam que a referência de ser humano é o homem.

Quais as consequências disso? Diante do não reconhecimento feminino como grupo socialmente mais vulnerável e da não sensibilização com outras mulheres, mantém-se as relações assimétricas de poder. Nessa lógica, ao invés da empatia, julgarão a vítima de violência sexual pela roupa que usava; ao invés de divulgação dos trabalhos e obras feitas por mulheres, buscarão o seu apagamento.  Mulheres que só votam em homens, que leem homens, que se consultam com homens, que educam os meninos para serem reizinhos e que não respeitam o relacionamento alheio...  E nesse sentido, as mulheres podem sim, infelizmente, serem machistas, ou entrarem num ritmo de competição com as demais, as famosas pick me girl.

Afim de mudar aos poucos esse cenário de desigualdade podemos pensar em ações cotidianas. É ano de eleição e, uma possibilidade é acompanhar possíveis candidatas que nos representem. Socialmente existe a feminização da pobreza, haja vista que boa parte da população pobre é composta por mulheres. Que possamos divulgar e incentivar o trabalho desenvolvido por mulheres. Temos diversas obras excelentes feitas por mulheres. Que possamos ler mais escritoras, assistir mais filmes de diretoras, acompanhar atrizes, influenciadoras que realmente repensem a sociedade patriarcal. Num mundo já tão cheio do pacto da masculinidade, em que homens pagam fianças de abusador ou aplaudem os violentos e manipuladores, que nos cerquemos de mulheres que motivem umas outras, e assim haja mais Anas, Lúcias e Tininhas espalhadas pelo mundo para nos fortalecermos.

Se não mudarmos essa lógica, repetiremos o que Paulo Freire já falava de que o sonho do oprimido é se tornar o opressor e, portanto, na ausência desse reconhecimento de opressão, agirão como “capitãs do mato”, colocando na fogueira simbólica outras mulheres, buscando algum favoritismo, mas sem se perceberem ainda na figura do “segundo sexo”.

 

Ana Paula Ferreira

Militante do Coletivo Mulheres Pela Democracia

Texto publicado no Jornal da Cidade 22/03/2024

terça-feira, 19 de março de 2024

Gaslight: o manipula -dor

 

 

É mês do dia internacional da mulher e é necessário falarmos de um tema, nem sempre comum de ser debatido, justamente porque não é claro, e, portanto, não é tão facilmente percebido. Trata-se da manipulação psicológica, que faz parte de uma das violências na qual a mulher geralmente é alvo mais fácil, justamente pelas relações assimétricas de poder. A manipulação é sutil, às vezes demora anos para a pessoa se perceber manipulada. ANOS. Isso porque ela se manifesta invisível, quase uma mosca branca que entra na sala de estar trazendo doença, mas como não é vista, a vítima apesar de sofrer, não compreende a causa e por fim, atribuí a si a culpa.

E como pode ocorrer de maneira tão velada? Trago aqui 3 pontos importantes da manipulação: a falta de transparência, o controle e a vitimização. A fim de ilustrar cada um deles eu uso o filme “Gaslight” que aliás, inspirou a ideia de abuso psicológico, diante da distorção da realidade. Resumidamente a história se passa numa casa na qual a esposa percebe que luz estava falhando e o marido, passa a questionar a sanidade mental da mulher, sendo que na verdade ele sabia que isso ocorria e que ele mesmo quem provocava.

Essa é uma das características principais da manipulação: falta de transparência. Tudo fica às escuras, sem luz suficiente e, portanto, não se consegue tatear a realidade com precisão. A informação vem do manipulador, ao ponto de a vítima passar a duvidar do que viu, da sua própria memória, como se tudo não passasse de coisas da sua cabeça. Nesse jogo de enganação, o marido galanteia a funcionária, convida-lhe para outros espaços sem ser o do trabalho, elogia, passa tempo fechado sozinho com ela na sala. Enquanto isso, faz juras à esposa que se preocupa com a saúde dela, quando na verdade a real intenção é deixa-la insegura, incapaz de tomar as próprias decisões. Tal qual a lâmpada que ora ilumina, ora cede à escuridão, o manipulador seduz, joga charme, é gentil, prestativo, pois precisa de pessoas que cedam à sua vontade. Ao mesmo tempo, faz cortina de fumaça para ludibriar, mente e engana, tanto a esposa quanto com a funcionária, pois seu objeto final era o poder, e por isso a necessidade de uma imagem imaculada, de homem distinto, perfeito.

Ora, se o objeto é o poder, precisava do outro ponto da manipulação... o controle. No filme a vida da mulher é milimetricamente calculada, reduzindo sua rede de apoio para facilitar a opressão. O manipulador evita que a casa seja frequentada por amigos, maldiz cada um deles como se não fossem boas companhias, evita de sair publicamente com a companheira e quando saem, ele quem decide os lugares, persuadindo que ela participou da decisão. Controla a correspondência, as visitas, os passeios, pois ao isolá-la, lhe fragiliza ao ponto de sentir dependente emocional do manipulador.

Por fim, o abuso psicológico ocorre também pela vitimização do algoz. Sim. Apesar de enganar, ele irá distorcer em tamanha proporção e sob toda uma dramatização ao ponto de a vítima pedir desculpas, considerando-se de fato egoísta ou paranoica. Essa terceirização da responsabilidade é atrelada ao perfil do manipulador que geralmente não manifesta empatia, tem pouco apreço pela dor alheia, nem se comove com o sofrimento da própria companheira.

As consequências disso na vida da vítima são várias. Por tender a acreditar que está perdendo a habilidade mental, omite o que acontece para os mais próximos, com receio de estar sendo injusta com o parceiro. Fica tão vulnerabilizada emocionalmente que perde a essência, deixa de fazer coisas que gosta, de criar planos, sofre de insônia, sentimento de inferiorização, irritabilidade, dependência emocional e baixa autoestima.

Diante disso, o gaslight é uma violência grande, no qual o manipula-dor, brinca com os sentimentos alheios, como se estivesse brincando com lego, em que cada peça só lhe interessa na construção de seus projetos, afinal não tem responsabilidade afetiva com aqueles ou aquelas que lhe depositaram confiança. Que entendamos para não repetir esse papel e muito menos em minimizar o sofrimento de quem já passou por essa manipulação.

 

Ana Paula Ferreira

Militante do Coletivo Feminista Mulheres Pela Democracia

 

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Taj Mahal: amor não verbal


                    Faz pouco tempo que adotei uma nova cachorrinha. Minha filha tinha ido brincar com as vizinhas e a viu na rua abandonada, ficou com dó e trouxe pra casa. Ela é pretinha, tem os pelos lisos e morde tudo. Amora já acabou com uns 6 pares de chinelo, tampas de lixeira, tapetes, fio da lavadora vap, fio do Notebook, capacete de pedalar, e tantas outras coisas que nem lembro.
                    Mas, apesar disso eu a amo. Eu nem bem acordo e ela está com os olhinhos arregalados no vidro da porta da cozinha, me esperando. Eu pego a bola para brincar e ela fica toda empolgada, pulando ao redor, com as orelhas levantadas, entregue a alegria do presente. Se estou em casa, ela faz questão de mostrar que gosta de minha companhia. Eu dou muito pouco (mesmo com todo o prejuízo material) do que recebo, porque o afeto que os bichinhos nos dão é muito incondicional. Ficam por horas nos esperando voltar do trabalho, apenas por minutos de cafuné.
                    Essas manifestações caninas de carinho, são bonitas porque são genuínas e transmitidas de forma não verbal. No “Salvar o fogo” tem uma passagem linda nesse sentido. Uma das personagens, embrutecida pela vida sofrida do sertão, reflete que as novelas tinham muito abraço, beijos e “eu te amo”, e que eles, trabalhadores rurais cansados da labuta, não manifestavam amor assim. Amor era a roupa lavada, o alimento trazido para toda família, a comida feita com carinho.
                    Amar talvez seja demasiadamente grande para se traduzir em palavras e, mesmo nas atitudes, muitos somos inaptos. Até porque não nascemos amando. Escolhemos amar e nos esforçamos a cada doação, diálogo, tempo, respeito e um movimento de percepção sobre o outro, buscando compreendê-lo na sua singularidade.
                    O avô da Isabela foi uma pessoa que soube amar. E é doloroso falar nele sem chorar, porque pessoas que nem ele, dificilmente encontramos. Ele comprava goiaba para ela porque ela ficava feliz. Para os amigos, cantava e tocava as músicas sertanejas. Nunca o vi caluniando ninguém e se por ventura, alguém chegasse com tristeza ou raiva, ele escutava e mostrava outra perspectiva que a princípio ninguém via. Tinha palavras sábias, dos que sofreram e aprendem a perdoar, de quem já errou e usou o aprendizado para servir de lição. Ele era o filho que manifestava enorme gratidão. Era o pai sempre presente, o marido leal, o avô que não perdia a oportunidade de abraçar. Em tempos de dificuldade financeira, ele estava ali, ajudando no empréstimo. Em tempos de alegria, sabia comemorar e organizava as festas de final de ano. Não havia mágoa. Era amor conjugado no tempo presente, de quem não desprezava ninguém e sabia acolher.
                    Há quem diga que o Taj Mahal foi a obra de maior prova de amor do mundo. A arquitetura, fruto de uma homenagem de um imperador a sua falecida esposa, se tornou uma das maravilhas do mundo, seja pela grandeza e pelos detalhes na escolha de cada material para compor um espaço que traduz beleza e suntuosidade.
                    Eu acredito que podemos construir Taj Mahal de diversas formas. A goiaba era o Taj Mahal que Daniel deixava para Isabela. Para mim, foi ter nos ajudado com empréstimo na aquisição da casa própria. E ele deixou, pela cidade afora vários Taj Mahal, na generosidade de saber amar e todos eram atravessados por esse sentimento pelo jeito de um olhar demorado que ele lançava, pelo abraço forte, pela questão que ele fazia das nossas presenças.
                  Nessa modernidade líquida de contatos ou mera conexões, o Daniel ia pelo caminho das relações humanas. E por isso fez Taj Mahal. Pra levantar prédio daquela envergadura, é necessário conhecer a real necessidade ou interesse daqueles que amamos, pensando nos detalhes da obra. Quem apenas faz contatos, ainda está na superficialidade da comunicação por mensagens, e-mails e nenhuma alma é revelada e tudo é protocolar. Nesse sentido, mal é possível levantar uma coluna da construção. Quem estabelece “conexões” liga e se desliga rapidamente tal qual aparelho eletrônico, e da mesma forma que mostra interesse, logo não apresenta mais.
                    Mas, quem trata o outro no respeito de sua individualidade é porque já o compreendeu como ser humano digno de amor e se preocupa em manifestar afetos.
Quando por exemplo aperto a Amora em meus braços, me renovo. É como se minha bateria social tivesse acabando e ela volta a 100%, me preenchendo de alegria que vou levar por onde estiver.
                    Eu acho que o Daniel nem tinha essa intenção de efeito dominó. Mas é o mesmo que ocorre: ao nos sentirmos gratos e felizes pelo que ele fez, só nasce em nós a vontade de sermos pessoas tão boas quanto e, quiçá consigamos atravessar os outros com esse sentimento.
                    Isso sem precisar de palavras.... Mas deixando um Taj Mahal específico para cada um.
Ana Paula Ferreira

Texto publicado no Jornal da Cidade, 27 de fevereiro de 2024
    

sábado, 10 de fevereiro de 2024

Jogo banco imobiliário em Poços de Caldas



Comecemos a partida! Distribui-se a mesma quantidade de dinheiro a todos jogadores e um peão para movimentá-lo de acordo com a quantidade anunciada na soma dos dois dados. O objetivo é gerar riqueza com algumas estratégias de compra e muita sorte. Jogo e realidade ora se misturam, ora se distanciam. Na vida não se tem o mesmo ponto de partida, alguns começam com patrimônio e a grande população sem nada. Em Poços de Caldas essa lógica não é diferente.

 Aqui, em terras sulfurosas, houve uma família que recebeu sesmarias do governador da Capitania de Minas Gerais, e antes que uma parte fosse desapropriada, doou alguns hectares para a formação do povoado. Nessa lógica, movimentava politicamente bem no tabuleiro do jogo, tendo o nome em destaque de vários patrimônios públicos da cidade, enquanto a maioria ficava no mesmo lugar, porque o salário era suficiente apenas para a subsistência.

 Pois bem… O jogo continua e há uma casa que se chama “sorte ou revés”. Em Poços de Caldas funcionaria assim “SORTE: você tem imóveis no centro da cidade e, portanto, terá a contribuição por parte da prefeitura na troca os pisos de sua calçada”; “REVÉS: você não tem autorização para seu trailer na praça e deverá retirá-lo.”

 Teve família que avançou no jogo com a seguinte carta da “sorte”: “Sua documentação está alinhada ao processo de licitação de pontos turísticos da cidade, dessa forma, você conseguiu a concessão da Fonte dos Amores, Recanto Japonês e Cristo Redentor”. Nota-se, uma semelhança com o banco imobiliário na compra de companhias (força, luz, petróleo, etc.) porque o jogador ao adquirir essa posse, conseguia gerar capital quando o adversário caía nessa casa, num valor multiplicado pelo número que tirou nos dados. É o mesmo que ocorre com o visitante dos pontos turísticos: parou no estacionamento, pague dez reais; parou na tirolesa pague mais sessenta reais; ficará 5 minutos no balanço, pague mais trinta reais. Isso sem o concessionário fazer nenhum investimento patrimonial no local.

 Não foi sorte, nem revés. Simplesmente o jogo estava orquestrado para algumas famílias, seja a que adquiriu concessões, seja a que fez grandes hotéis na cidade à custa de descumprimento de muitas leis trabalhistas, ou de construtoras que avançaram sobre áreas ambientais sem nenhuma preocupação com a recarga d’água.

 Enquanto isso, a maioria da população pouco aproveita da própria cidade, levando em conta inclusive que quem usa o transporte público paga R$6,00 pela passagem, valor mais caro do que na capital mineira. Fica fácil falir e perder no Banco imobiliário quando a concentração patrimonial é exacerbada e a política pública pouco olha para seus cidadãos. Dividem a riqueza entre eles, mas o trabalho, os impostos e as taxas são a “parte que nos cabem deste latifúndio”.

 Porém, para quem está no poder isso importa?

  

Ana Paula Ferreira

Mestre em educação e escritora

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Tameion, a paz e o pedalar



  

Virada de ano. Eu e os 8 bilhões de pessoas provavelmente estávamos desejando “paz”. No meu caso, eu não mentalizava mais nada a não ser paz. Quase duas semanas depois, passei um momento de estresse em relação ao mecânico do carro. Na hora pensei em responder a altura da ofensa, mas lembrei do meu pedido de réveillon e percebi que a paz não viria embalada e entregue pelo correio, nem de luz direta do céu. Era necessário exercitar a paz e, portanto, concluí que nem toda discussão era importante, nem todo embate precisava ser feito. Às vezes a melhor estratégia era o silêncio e o distanciamento.

Aliás... como que o silêncio é fortalecedor! No dia a dia, somos invadidos pelo barulho do trânsito, da comunicação, na musiquinha na academia, nas propagandas dos supermercados e das ruas. Acostumamos tanto que não conseguimos ficar sozinhos, sem ter uma música tocando, podcast ou qualquer voz no fundo.

Daí que a solitude seja indispensável, pois é onde nos encontramos. Escutando uma entrevista do Pastor Henrique para o Mano Brown, ele aponta uma passagem bíblica sobre a oração em segredo, no quarto. Porém a palavra correta em vez de quarto, seria tameion, que é o lugar da casa onde guarda-se a dispensa e também as quinquilharias, ou seja, metaforicamente, no contato profundo com o divino, ficaríamos sem máscaras, nas nossas fraquezas e também nas nossas forças, sem nos esconder.

Depois dessa fala, fiquei a imaginar o tameion como nosso ponto de equilíbrio, porque ali não descartamos as bagunças nem tampouco a nossa riqueza. Simplesmente sabemos um lugarzinho específico para cada coisa e isso nos dá a sensação de paz, de ser quem somos e nos sentirmos aceitos.

Ora, se a paz é um exercício da solitude, ela também está vinculada ao equilíbrio, porque não coloca peso apenas a uma das partes e assim se consegue movimentar, sem cair, que nem quando andamos de bicicleta. Pedalar exige a todo momento um trabalho do lado direito e esquerdo do corpo, o desejo de ir além, mas sem se desprender totalmente do medo. Sentimos o interesse que dá um impulso, porém combinada com a precaução, o freio; numa ideia de liberdade, de fugir, mas sabendo que há um lugar para voltar; ser copa e ao mesmo tempo raiz.

Pedalar me dá a paz não apenas pelo equilíbrio que o ato exige. Sair pelas trilhas de bicicleta me tira a perspectiva de ter que estar no controle, de lidar com o imprevisto. Diferente da academia que tem o ar-condicionado regulando a temperatura, no pedal contamos com ventania, sol, chuva; ao contrário de ter uma fichinha na qual sabe-se exatamente quantos quilos colocar em cada máquina da musculação, andar de bicicleta nem sempre sabe-se de antemão qual marcha será para cada subida. Até o tempo é diferente, pois na academia tem-se uma média de minutos ou horas por dia e ao pedalar não, pois um pneu pode furar, uma tempestade pode atrasar o retorno e várias coisas no trajeto acontecer.

Paz não está na chegada e sim no caminho. Lidar com o que está na rotina nos traz segurança, afinal já adquirimos repertório para dar respostas ao que está posto ali. Difícil é ter paz ao que foge da alçada, ao não planejado, ao desconhecido, porque isso nos movimenta e mexe com o que guardamos no nosso tameion e nem sempre queremos nos deparar com a parte que está escondida, que não reluz.

Contudo, deve-se lembrar que não se caminha apenas sentindo o frescor da brisa, mas também com a força da chuva e aceitar isso sem um apego imensurável ao que foi planejado é libertador. Como bem cantava a banda Tianastácia “Tudo o que vier eu quero e o que não vier eu vou buscar. (…) Pra alcançar o fim passando o meio é preciso começar”.


Ana Paula Ferreira

Mestre em educação e escritora


Texto publicado no Jornal da Cidade de 07/02/2024

domingo, 28 de janeiro de 2024

Para quem é mãe...


Que lembremos que podemos ser fortes, 

sensíveis, carinhosas, 

mas que não podemos ser sozinhas.


Precisamos de uma rede de apoio, 
da família e da sociedade.

Precisamos de creche, 
escolas de qualidade para nossos filhos, 
trabalhos com salário digno
 com uma carga horária menor
 pra que não vivamos apenas para o serviço.

Precisamos da política pública
que acolha e que nós também cuidemos das mães
 todos os dias... porque se não existíssemos, não haveria humanidade.

Olhar e saber quem somos


  

 


Nossa visão está para fora de nós.

E por isso não percebemos 
Aquele ketchup no canto da nossa boca.
Alguém que nos diz, nos servindo de espelho.
Mas se não dizem, ficamos sem parâmetro.
E por fim nos acostumando 
que a medida correta é a do outro!

Esse outro pode ser pessoa, mídia, igreja, 
ou qualquer coisa que nos coloque óculos, 
por onde passaremos a ver.... o outro.
E assim...Deixamos de nos reconhecer enquanto sujeitos.

Nessa preocupação, 
ao invés de percebermos quem somos, 
o outro que é a referência
e deixamos de viver... 
porque viver não é seguir o fluxo, 
é ter a dor em fazer escolhas, 
olhando para si, 
para quais malas que conseguiremos levar durante a viagem

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

O celular, a chave e os óculos

            



 Tem três coisas que ocasionalmente venho a esquecer na hora que paro em algum lugar: celular, chave e óculos. Se não lembro, é claro que esse esquecimento me traz alguns problemas. Sem o celular fico incomunicável com o mundo, ao esquecer a chave, não entro na minha própria casa e na ausência dos óculos, no meu caso que tenho miopia, fico com dificuldade em ver o espaço mais adiante, a ter uma visão de longo alcance. Buscando uma analogia com a questão da memória da humanidade, o esquecimento provoca, dentre outros problemas, esses três efeitos: não conseguir imprimir a própria narrativa, sentir-se fora da morada e limitada percepção sobre o futuro, ou melhor, do que vem a frente.

Quando não temos meios de comunicação, nossa voz fica abafada. Isso é bem mostrado no documentário de curta duração “Levante sua voz”, que questiona a concentração da imprensa tradicional no Brasil nas mãos de poucas famílias.  Nesse sentido, reforça-se a história oficial, a qual enaltece a figura e feitos dos donos do poder. Concomitantemente, a história dos trabalhadores, dos indígenas, quilombolas e todas as minorias sociais é marginalizada, ou pior, contada sob o viés do colonizador, do opressor, daquele que diminuí discursivamente o outro com vistas a justificar a violência e a exploração. Por isso, o esquecimento de nossas raízes ou a reprodução de uma história que nos subjuga, que nos retira de cena do protagonismo é uma das causas cruéis de não conseguirmos potencializar nossa voz, e somado a ausência de instrumentos de comunicação, limita-se não somente a comunicação, mas a participação na disputa de narrativas em relação a um projeto de sociedade.

Sem memória, tampouco valorizamos nosso território. Festeja-se o Halloween, mas não se lembra a data de comemoração do nosso folclore. Papai Noel continua sendo apresentado com roupas de frio intenso em chaminés, num país tropical que não precisa de lareiras. Músicas caipiras são preteridas socialmente comparadas com o country, a língua estrangeira ensinada nas escolas é o Inglês, embora estejamos na América do Sul e os países vizinhos falem o espanhol... Enfim...São muitos exemplos que nos desterritorializam e assim, perdemos as chaves de nosso espaço. Sem entrada nessa casa, ficamos na calçada, num complexo de vira-lata, acreditando que pertencemos a cultura do “jeitinho brasileiro”, sem percebermos o quão violento é esse pensamento sobre nós, que nos coloca como desonestos, camuflando a corrupção das grandes corporações que saqueiam nossa terra.

 Por outro lado, a lacuna de nossa própria história e a falta de pertencimento não são superadas dependendo da nossa visão de mundo. Nesse sentido, é claro, que só os óculos por si só, não trariam a nitidez da imagem social, econômica e política-cultural. Se assim fosse, bastava que achássemos os óculos de sol encontrados pelo personagem do filme “Eles vivem”, o qual passa a enxergar os impactos da sociedade de consumo, o autoritarismo e as diversas mazelas do capitalismo.

Ampliar a perspectiva exige estudo, leitura, reflexão e coragem. Sim! Coragem! Porque psicologicamente também tendemos a trair nossa memória e selecionar eventos que nos trouxeram felicidade. Para tanto, precisamos da coragem para encarar nossos medos e criar repertório emocional suficiente para lidar com esse sentimento de modo que não se torne repetição, pela inoperância em se quebrar ciclos. O mesmo ocorre na vida em sociedade. Não adianta negar ou menosprezar os efeitos das guerras, ditaduras, invasões, colonizações sob o pretexto de já passou e que não importa mais. Necessita-se da coragem para rever essa história e optar por não a reproduzir.

Óculos são figurativos para representar nossa preocupação em ver melhor e para alargar nossa percepção sobre nós, os outros e espaços onde apenas nossa retina não daria conta. Conseguimos nos antecipar a um possível percurso ainda não percorrido, quando o conhecemos por vídeo, documentos, mapas e várias produções humanas, legados que foram deixados, treinando nosso olhar, para que ao encararmos de fato o caminho em si, ele se torne menos pedregoso, com possibilidade de mais pessoas percorrê-lo, imaginando inclusive o que pode vir a frente.

Por isso, não esquecer é uma condição para a manutenção de nossa humanidade. Mas, daí fica a pergunta: celular, chaves e óculos para qual tipo de memória e para construção de qual história?

Ana Paula Ferreira

Educadora e escritora

Texto publicado no Jornal da Cidade 24/01/2024