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terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Nome ignorado: sem RG na história


      Não sou “dona”, nem “doninha”, nem “tia”, me chamo Ana Paula e não abro mão do reconhecimento pelo nome. No livro “O conto da aia”, da canadense Atwood, a personagem principal chamava-se Offred e vivia numa república teocrática no qual as mulheres férteis eram destinadas a meras reprodutoras. Aliás, todas as aias, mudavam de nome ao se tornarem servas sexuais de determinada família. Lembrando que “of” em inglês significa “de”, o restante do nome nada mais era do que o nome de seu proprietário.
Essa mudança do nome não é ocasional. Nome é a identidade de uma pessoa e retirar a identidade de alguém faz parte de uma proposta de diminuir o sujeito, retirá-lo de seu eixo cultural e de suas raízes, da onde ela se ancora. Não é a toa que a cristianização nas Américas subtraiu nomes indígenas, forçando-os ideologicamente a adotarem nomes cristãos. É também pela mesma razão que pessoas transexuais não puderam legalmente mudar de nome. Suas identidades de gênero não correspondiam a seu sexo biológico e o reconhecimento do nome social só foi permitido no Brasil em 2016.
Retirar o nome pelo qual o indivíduo se identifica é diminuir a pessoa como se fosse tão sem importância, que nem seu nome pudesse ser falado, repetido ou registrado. Atribuir nome é reconhecer a importância ou o vínculo com aquele sujeito. Pensemos nos animais: o gado das grandes fazendas o máximo que recebem é um número de identificação, pois são apenas mais um; já os nossos animais domésticos, por outro lado são chamados por um nome, possuem histórias e quando morrem choramos por eles.
Tiramos o nome do ser humano o tempo todo, ainda mais quando esse ocupa funções socialmente desprezadas. Daí num bar, não perguntamos o nome do atendente e o chamamos por “garçom”. Na escola professora vira “tia” ou “dona” e um cliente é tratado por “senhor” ou “senhora”. Mas o engraçado é que em cargos com alto reconhecimento social dificilmente não é dito o nome. Há o vereador “Fulano”, o doutor “Ciclano” e a artista “Beltrana”. Nesse sentido, o nome tem força e serve de abertura para venda de produtos ou de uma ideia. Aliás, esses nomes que serão registrados em instituições como símbolo de poder e de memória de determinadas histórias.
Isto não é o mesmo que acontece aos descamisados nos semáforos, os camponeses sem tetos, os desvalidos, os jovens sem empregos que são fortemente cooptados pelo tráfico. Estão em condições parecidas aos do gado para abate: são apenas um número e peças vulneráveis de um Estado que superdimensiona a necropolítica, onde uns são protegidos e outros à beira da morte, são desassistidos pela política pública e por um sistema econômico que trata a classe trabalhadora como mera força de trabalho substituível.
Se nos tratamos como roldanas, engrenagens, enxadas, pás, giz, pincel, nosso nome realmente é descartável tal como é nosso trabalho que pode ser realizado por outros ou por máquinas. Entretanto, queremos superar o contexto de “Vidas Secas” no qual os filhos do vaqueiro Fabiano não foram nomeados por Graciliano Ramos. O propósito talvez fosse mostrar a situação de privação que viviam, inclusive do próprio nome, ou então para que facilmente identificássemos essas crianças com milhares de outras pelo Brasil. Num sentido ou no outro, nota-se novamente a relação entre nome e memória, nome e capital político ou econômico. É certo que o verdadeiro reconhecimento do cidadão como ser humano seria num outro modelo de sociedade, que não o tratasse como número eleitoral em época de campanha política ou número de cartão de crédito. Seria necessária uma sociedade que o homem não fosse o algoz do próprio homem, ou que a força do dinheiro ou do poder não fosse mais importante do que a integridade das pessoas. Contudo, talvez como um primeiro passo para o respeito à  pessoa, seja lembrar seu nome, ao se entender que por detrás desse há toda uma história que não pode ser apagada.

Ana Paula Ferreira
Mestre em Educação e
Supervisora Escolar da Rede Estadual/ MG