Historicamente, antes de ser
comemorado no restante do mundo, o Dia das Crianças foi criado no Brasil pelo
deputado Galdino do Valle Filho em 1920 como uma homenagem às crianças. Essas
“homenagens” não são incomuns aos grupos ditos “minorias” e por isso o Dia do
Índio e da Consciência Negra, Dia da Mulher, Dia do Trabalhador. Evidencia que
nosso calendário foi organizado para atender a visão hegemônica, com breves
instantes de holofote para os grupos que na verdade correspondem a grande
maioria, e daí um calendário que acaba privilegiando o adulto, o branco, o
empresário.
Isso é percebido quando se destina 5
a 6 dias por semana para o trabalho correspondente ao universo adulto e apenas
1 ou 2 dias para o brincar, característico do universo infantil. No quesito
feriados nacionais, santos católicos, herança da nossa cultura portuguesa
cristã são homenageados, enquanto entidades das religiões afro-brasileiras são
execradas e a religiosidade indígena tampouco é conhecida pela maioria dos
brasileiros. Há o Dia do Trabalhador para aquele cuja jornada semanal de
trabalho chega por lei a 44hs semanais (superando a de 40hs nos Estados Unidos
e a de 35hs na França), quantidade essa de horas destinada à empresa que não
pensada pelo e para o trabalhador.
Contudo, embora haja mais hipocrisia
nessas datas do que homenagens reais não deixam de ser um momento importante
para se refletir sobre políticas públicas, ações sociais e perspectivas para o
grupo contemplado pela data.
Se a data em si poderia ser um
movimento de resistência frente a todo calendário opressor, ela esmorece quando
é apropriada pelo setor industrial. Em relação ao Dia das Crianças, a data
ganha visibilidade entre 1955 e 1960 quando a fábrica de brinquedos Estrela
lançou fortíssimas propagandas com vistas ao aumento do consumo (e,
consequentemente do lucro) na perspectiva de incitar o ato de presentear o
público infantil.
Por isso não é difícil associar à
data as diversas propagandas da indústria de brinquedos e muito pouco se vê
programas de TV que abrem espaço para um panorama da infância no Brasil.
Noticiam festas realizadas em alguma cidade com recreações e doces, mas não se
faz um debate nos bairros sobre os Direitos das Crianças, Declaração de 1959 (Unicef/ONU),
e uma reflexão com os moradores do que falta para essa Declaração ser atendida
em sua plenitude. As escolas organizam gincanas e brincadeiras (como se no
resto do ano não fossem necessárias), mas não se abre
canais de escuta de como efetivar os direitos e deveres das
crianças na própria comunidade.
Fica subtendido que a data é para
comprar o tablet que a filha tanto deseja, que é para levar o menino na Rua de
lazer, que é para a criança apenas se divertir na escola, pois logo voltará o
clima das aulas convencionais e sem brincadeiras.
Assim a sociedade prossegue com
pequenos regalos aos pequenos, mas não altera a condição da maioria...
prossegue com meninos e meninas que não foram presenteados nos Dias das Crianças
porque não possuem área e espaço público de lazer, não tiveram a vaga da creche consolidada, precisaram trabalhar desde cedo e abandonaram a escola,
foram perseguidos por policiais ou mortos por "balas perdidas", porque morreram em alto mar, vítimas de políticas
truculentas de imigração. Enfim... porque sofrem desde cedo as mazelas da desigualdade
social.
Que continue a data! Mas que
possamos ressignificá-la e trazer o aspecto da luta, da denúncia, dos cuidados,
da cobrança, das reivindicações, dos modos de se conceber a infância, a
educação, a escola, de modo que a consolidação dos Direitos das Crianças seja o
verdadeiro presente para as crianças.
Ana Paula Ferreira
out/ 2015
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