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quarta-feira, 28 de junho de 2023

Ensinar a desobediência civil


            É bem anárquico o título, mas é essa intenção.
            Isso não quer dizer que eu seja contrária à disciplina e acredito na perspectiva de que “disciplina é liberdade”, pois organização, canalização de uma energia com vistas a um objetivo, planejamento, são formas de sermos livres, termos escolhas cada vez mais alinhadas à consciência crítica e aos direitos humanos. Aliás, se não houvesse o “não”, nem civilização existiria, e provavelmente agiríamos bem próximos aos animais, que seguem a ordem do desejo. Assim, diante da vontade de fornicar, haveria a copulação, sem constrangimento se fosse na rua com observadores; em situação de fome, não existiria o uso de talheres, do sentar à mesa, nem a decisão por determinados alimentos mais sustentáveis, bastava devorar o que se tinha à frente.

            Já que deixei claro que defendo a disciplina, e principalmente uma educação que construa autonomia, vamos para o título. “Desobediência civil” é um termo de Thoreau cujo livro é homônimo. De maneira resumida ocorreu o seguinte... Em meados do século XIX os Estados Unidos entraram em guerra contra o México objetivando anexar territórios. Contrário à guerra e à escravidão que ainda existia, Thoreau simplesmente opta por não pagar mais impostos, uma vez que esse montante contribuía para o financiamento da guerra. Ele não apenas foi preso, como escreveu o livro que inspirou Gandhi e Luther King Jr, pois enfatizava a importância de resistências pacíficas, de combate a leis injustas, pois obedecê-las é também contribuir com opressão.

            Na escola também há leis injustas e quando os alunos se negam a executá-las muitas vezes os adultos os advertem oralmente, por escrito, ou tratam a queixa como se fosse insignificante. Nessa compreensão, o espaço escolar não é um espaço de troca, de diálogo, mas um panóptico, no qual Foucault faz a comparação da arquitetura com a ideia de controle e de vigília, tão comum em quartéis, hospitais, manicômios, e até mesmo escolas. Por conseguinte, se busca o silenciamento, a obediência, generalizando alguns comportamentos e punindo desvios.

            Se a crítica é desconsiderada, tratada com frases do tipo “só vocês estão reclamando”, ou pior, se ao invés de profissionais que defendam os princípios democráticos, prima-se pela defesa corporativista, o que está se ensinando? Que a educação enquanto direito social é tratada como caridade, do funcionário público que doa e do cidadão que deveria apenas receber. Não somente isso, mas ensina-se a calar, a se contentar, a se subordinar.

            Qual é o tempo destinado para a fala dos estudantes, para a utilização do saber na argumentação, na tomada de posição ou defesa de uma ideia? Em contrapartida, qual o tempo que estão tagarelando sem sentido, sem proposta, sem direcionamento? Qual o tempo que o professor fala? Qual é o tempo destinado a assembleias, grêmios ou para ouvir de sala em sala os estudantes?  Será que a escola fica passiva esperando o estudante levar suas demandas, ou ela mesma promove momentos de escuta ativa? Qual é o tempo destinado para produção de texto e qual é o tempo usado para cópia de textos infindáveis?

            Se ao pensar nesses tempos e chegar à conclusão que o tempo escolar está mal administrado, uma escola de tempo integral no mesmo modelo, seria redundância de antidiálogo. E por falar em tempo, ele passa e nem sempre as coisas mudam, ou talvez não na velocidade que gostaríamos. Publiquei em 2016 um texto intitulado “A fabricação de máquinas de xerox na escola” que questionava o quanto as crianças copiam a matéria do quadro e o significativo número de analfabetismo funcional. Será que se elas parassem de copiar estaria errado ou errado é o ato de minar a curiosidade em aprender mediante uma prática cansativa e de teor altamente questionável?

            Alienação, conceito marxista, é a ausência de identificação do trabalhador com o produto de seu trabalho. Trazendo para o campo da escola, será que os estudantes se reconhecem no que copiam ou se identificam nos textos autorais que produzem? Estamos alienando ou proporcionando emancipação? Em época de expansão da informação, que em fração de segundos temos tantos dados ao nosso dispor, é extremamente inoperante reforçar a cópia pela cópia. A máquina já faz isso e o que nós humanos temos de diferencial é na nossa capacidade de criar, projetar, sonhar, fazer planos criativos. Por isso, aprecio a escrita como técnica de memória, mas desde que conduza a uma escrita criativa, que incentive a produção dos estudantes, seja num mapa mental, resumo, registro por tópicos ou tabela.

            E voltando na desobediência civil, se a escola pouco provê de momentos de diálogo, se a prática docente é mais ancorada em passar textos para cópia do que estratégias mais significativas, como encararíamos a ideia se os estudantes, por exemplo, se recusassem a copiar?

            Rosa Parks foi uma mulher negra que se recusou a levantar do banco de um ônibus para ceder o lugar a um homem branco. Era uma lei, mas ela foi contra. Esse singelo gesto desencadeou passeatas na defesa dos direitos afro-americanos e boicotes às empresas de transporte público até que assinaram o fim da segregação racial nos ônibus.

            Ensinar a desobediência civil: será possível? Se não for, que pelo menos haja atenção no comportamento estudantil e abertura para um diálogo franco, no qual possamos melhorar enquanto profissionais, sem esquecer de que o tempo todo estamos formando pessoas. Daí vamos entender que existem Rosa Parks e Thoreau nas carteiras escolares e que nem sempre são indisciplinados, mas estão à sua maneira mostrando a indignação.

 

Ana Paula Ferreira

Mestre em Educação

Referências

Ana Paula Ferreira - “A fabricação de máquinas de xerox na escola”

https://www.jornaldacidade1.com.br/maquinas-de-xerox-na-escola/

Henry David Thoreau – “Desobediência Civil”

Texto publicado no Jornal da Cidade 28/06/2023 p. 9

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Postagem: impostora?

 

Eu queria postar um comentário
Deixar clara minha posição
Mas o que está no posicionamento
já foi posto por alguém?
Ou realmente fui eu?
Foi imposição?
Daí fiquei em dúvida 
Se era original 
ou se era impostora comigo mesma.


Ana Paula Ferreira
11/out/2023





terça-feira, 6 de junho de 2023

Tudo passa


           Faz mais de ano que comprei um quadro com a frase “tudo passa”. Todos os dias eu me deparava com essas duas palavras e ia internalizando, quase num mantra, para aceitar que os anos ficam para trás, cabelos brancos aparecem, filhos crescem, amigos inestimáveis estão presos às fotografias, vivências pelas quais sofremos um dia viram pura recordação.

            E por que mesmo sabendo disso é tão difícil concordar que a mudança bata na nossa porta? Por que é tão doloroso reconhecer o que Heráclito disse há milhares de anos de que nada é estático, nem nós mesmos?

            Porque envolve a ideia de luto e lidar com a morte não é fácil, seja a morte de entes queridos, seja a morte de tantas coisas... da juventude, das relações, das expectativas, dos planos. Em ambas situações, de uma morte real ou da morte de algo, há a necessidade de ser fazer o funeral (literal ou simbólico) como processo de seguir em frente, de agir sobre o que ficou de nós mesmos, de fechar ciclos.

            Mas além da dificuldade do luto existe outro desafio: trabalhar com o sentimento do apego. Sabe a famosa frase do Pequeno Príncipe “Foi o tempo que dedicaste à tua rosa que a fez tão importante”? Resumindo, o apego é isso... uma doação, vínculos, memórias, histórias que fizeram que o objeto amado se torne bonito e especial. Daí temos outra questão: em que medida desapegar envolve descartabilidade?

            O sociólogo Balman quando trouxe o termo de modernidade líquida apontou o quanto as coisas estão mais frágeis, fugazes e que se antes era comum o sujeito aposentar no mesmo emprego que trabalhou a vida toda, matrimônios que duravam décadas ou o estudo (técnico ou graduação) já ser quase uma garantia de emprego, hoje nada é seguro, tudo é efêmero.

             Mário Sergio Cortella trouxe uma metáfora nesse sentido quando conta que era comum encontros familiares para fazer pamonha e que o trabalho era igualmente proporcional ao tempo em estar junto, de rir, conversar, contar causos e partilhar a produção. Atualmente, na contramão, além dessa prática não ser comum, consome-se macarrão instantâneo feito em três minutos, tudo rápido, tudo veloz para atender nossa lógica desenfreada de tarefas e que nos retira aos poucos das nossas convivências mais genuínas.

            Essas convivências autênticas são aquelas em que desnudamos nossa alma. Até porque se na sociedade somos CPF, nas relações comerciais somos cartão de banco e no trânsito CNH, são nas relações mais próximas que podemos sentir que somos únicos e que tornamos o outro também especial. Por isso é tão sofrido encarar esses lutos, pois envolve um período solitário, de não importar com o que importávamos. Aliás, essa palavra “importar” é interessante porque além de se referir ao que damos importância, é também verbo do que trazemos de outros lugares para dentro do nosso espaço, e nesse momento de solidão, o que mais precisamos é de nos abastecer de nós mesmos, até para diferenciar entre o desapego e a descartabilidade.

            Talvez uma frase que ajude nesse sentido é a de Frida “Onde não puderes amar, não te demores”. Não significa que as coisas devem permanecer apenas por hábito, tradição ou qualquer coisa do tipo. Contudo, não é tampouco descartar, porque descartamos o que é facilmente trocado, é o guardanapo que não virou papel de mensagem de paquera. Se há luto, é porque houve afeto, fomos afetados e, portanto, a ideia não é descartar o que foi, mas de saber que se não há condições de ser e de fazer o outro feliz, que tomemos outros caminhos.

Ana Paula Ferreira

Aspirante a escritora


Texto publicado no Jornal da Cidade, 07/06/2023