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terça-feira, 1 de agosto de 2023

Entre cataratas e represas

         


                 Há uma boniteza nas coisas que são opostas: a característica é tão peculiar que preserva uma identidade mais genuína. Isso pode ser observado nas cataratas do Iguaçu e na usina de Itaipu, pois embora água em abundância em ambos espaços, ela se revela em dinâmicas diferentes.

            As cataratas se impõem pela natureza. Jorram milhões de água por segundo numa imagem belíssima de intensidade. A água segue o fluxo, sem amarras, demarcando rochas, arrastando tudo o que tiver pela frente, levando todas impurezas, seguindo o caminho até encontrar o mar.

            É como se a água se encontrasse em situação de liberdade. Está solta e por mais que haja um relevo que condiciona seu percurso, ela não se limita e prossegue aceitando sua própria força e sua própria existência de ser “água” ... Água que possibilita a vida na Terra, que escorre, que sacia a sede, que preserva o meio ambiente.

            Já a usina Itaipu também impressiona pela grandiosidade, a qual, desta vez, foi arte do ser humano, na sua engenharia e na mão de obra de 40 mil trabalhadores que se entregaram na construção da segunda maior usina hidrelétrica do mundo. A água, porém, está em outra situação: represada, passando por enormes tubulações para gerar a energia elétrica. Aliás, só abrem as comportas quando o limite é ultrapassado.

            Embora à primeira vista a água represada mostre calmaria, nada mais é do que turbulência evitada pelo seu cercamento. É aquele choro entalado, intensidade contida, potência controlada com vistas a gerar energia a incontáveis pessoas. Enquanto a catarata é grito, a água que desce obedientemente as turbinas é soluço contido, que consegue ter seus momentos de vazão apenas quando está no máximo permitido.

            Ao pensar sobre essas analogias entre água e liberdade, lembrei do livro de bell hooks, “Tudo sobre o amor”. Isso porque em determinados momentos a autora pontua o quanto o sistema capitalista aprisiona com amarras sutis as pessoas, tendo em vista que incentiva sermos produtivistas e a nossa tristeza é capturada pela via do consumo, exigindo que trabalhemos mais e consequentemente, passemos menos tempo com a família ou em momento de puro ócio.

Assim, se para uma grande parcela da população a liberdade é palavra de dicionário, porque estão ainda buscando pela sobrevivência, em contrapartida há também a situação de que para muitos a liberdade é evitada, pois ela significa assumir quem somos e termos decisões mais autênticas. Na intenção de sermos úteis, dizemos “não” a nós mesmos e acabamos por ser a água que desce pelas turbinas, gerando energia para os outros e não para si. Essa energia pode ser o lucro, o tempo, o cuidado e tantas outras coisas que fornecemos nas nossas relações afetivas, de trabalho ou sociais.

            O problema é que caso não seja um movimento de mão dupla, horizontal, em que ambas partes estejam num processo de mutualismo, provoca um cansaço mental e físico, desgaste e gera a dor de nunca se conectar com a própria energia. Diante dessa falsa calmaria, há um silenciamento que traz angustia, insônia, ansiedade, adoecimentos, pois ao invés de liberar esse sentimento represado através da arte, escrita, terapia, atividade física ou qualquer modo que ajude a reelaborar, buscamos o alento em nos encher de coisas e nos esvaziamos do ser, do sentir, do viver intensamente.

            Liberdade e amor estão juntos e não separados. Porque ao fazer escolhas e se contentar com elas há um sentimento de bem estar, de amor próprio, de se permitir sonhar e de se aceitar ao ponto de se jogar por inteiro, no amor a si, ao outro e ao mundo. Quando há esse aceite, há menos autocobrança e mais responsabilização, mais reflexão e menos sentimento de culpa, mais relações saudáveis e menos toxidade. 

Por mais que a catarata traga mais insegurança e incerteza, ela nos move num processo de autenticidade, de autoconfiança e percepção de nosso universo interno, com nossas limitações e potencialidades. Já na represa, buscamos o encaixe social, justamente pelo medo de ficarmos isolados e nesse processo, represamos toda plenitude da qual poderíamos desfrutar.

Que possamos enfim, ser mais catarata e menos represa.

  

Ana Paula Ferreira

Texto publicado no Jornal da Cidade - 02/08/2023