Páginas

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Taj Mahal: amor não verbal


                    Faz pouco tempo que adotei uma nova cachorrinha. Minha filha tinha ido brincar com as vizinhas e a viu na rua abandonada, ficou com dó e trouxe pra casa. Ela é pretinha, tem os pelos lisos e morde tudo. Amora já acabou com uns 6 pares de chinelo, tampas de lixeira, tapetes, fio da lavadora vap, fio do Notebook, capacete de pedalar, e tantas outras coisas que nem lembro.
                    Mas, apesar disso eu a amo. Eu nem bem acordo e ela está com os olhinhos arregalados no vidro da porta da cozinha, me esperando. Eu pego a bola para brincar e ela fica toda empolgada, pulando ao redor, com as orelhas levantadas, entregue a alegria do presente. Se estou em casa, ela faz questão de mostrar que gosta de minha companhia. Eu dou muito pouco (mesmo com todo o prejuízo material) do que recebo, porque o afeto que os bichinhos nos dão é muito incondicional. Ficam por horas nos esperando voltar do trabalho, apenas por minutos de cafuné.
                    Essas manifestações caninas de carinho, são bonitas porque são genuínas e transmitidas de forma não verbal. No “Salvar o fogo” tem uma passagem linda nesse sentido. Uma das personagens, embrutecida pela vida sofrida do sertão, reflete que as novelas tinham muito abraço, beijos e “eu te amo”, e que eles, trabalhadores rurais cansados da labuta, não manifestavam amor assim. Amor era a roupa lavada, o alimento trazido para toda família, a comida feita com carinho.
                    Amar talvez seja demasiadamente grande para se traduzir em palavras e, mesmo nas atitudes, muitos somos inaptos. Até porque não nascemos amando. Escolhemos amar e nos esforçamos a cada doação, diálogo, tempo, respeito e um movimento de percepção sobre o outro, buscando compreendê-lo na sua singularidade.
                    O avô da Isabela foi uma pessoa que soube amar. E é doloroso falar nele sem chorar, porque pessoas que nem ele, dificilmente encontramos. Ele comprava goiaba para ela porque ela ficava feliz. Para os amigos, cantava e tocava as músicas sertanejas. Nunca o vi caluniando ninguém e se por ventura, alguém chegasse com tristeza ou raiva, ele escutava e mostrava outra perspectiva que a princípio ninguém via. Tinha palavras sábias, dos que sofreram e aprendem a perdoar, de quem já errou e usou o aprendizado para servir de lição. Ele era o filho que manifestava enorme gratidão. Era o pai sempre presente, o marido leal, o avô que não perdia a oportunidade de abraçar. Em tempos de dificuldade financeira, ele estava ali, ajudando no empréstimo. Em tempos de alegria, sabia comemorar e organizava as festas de final de ano. Não havia mágoa. Era amor conjugado no tempo presente, de quem não desprezava ninguém e sabia acolher.
                    Há quem diga que o Taj Mahal foi a obra de maior prova de amor do mundo. A arquitetura, fruto de uma homenagem de um imperador a sua falecida esposa, se tornou uma das maravilhas do mundo, seja pela grandeza e pelos detalhes na escolha de cada material para compor um espaço que traduz beleza e suntuosidade.
                    Eu acredito que podemos construir Taj Mahal de diversas formas. A goiaba era o Taj Mahal que Daniel deixava para Isabela. Para mim, foi ter nos ajudado com empréstimo na aquisição da casa própria. E ele deixou, pela cidade afora vários Taj Mahal, na generosidade de saber amar e todos eram atravessados por esse sentimento pelo jeito de um olhar demorado que ele lançava, pelo abraço forte, pela questão que ele fazia das nossas presenças.
                  Nessa modernidade líquida de contatos ou mera conexões, o Daniel ia pelo caminho das relações humanas. E por isso fez Taj Mahal. Pra levantar prédio daquela envergadura, é necessário conhecer a real necessidade ou interesse daqueles que amamos, pensando nos detalhes da obra. Quem apenas faz contatos, ainda está na superficialidade da comunicação por mensagens, e-mails e nenhuma alma é revelada e tudo é protocolar. Nesse sentido, mal é possível levantar uma coluna da construção. Quem estabelece “conexões” liga e se desliga rapidamente tal qual aparelho eletrônico, e da mesma forma que mostra interesse, logo não apresenta mais.
                    Mas, quem trata o outro no respeito de sua individualidade é porque já o compreendeu como ser humano digno de amor e se preocupa em manifestar afetos.
Quando por exemplo aperto a Amora em meus braços, me renovo. É como se minha bateria social tivesse acabando e ela volta a 100%, me preenchendo de alegria que vou levar por onde estiver.
                    Eu acho que o Daniel nem tinha essa intenção de efeito dominó. Mas é o mesmo que ocorre: ao nos sentirmos gratos e felizes pelo que ele fez, só nasce em nós a vontade de sermos pessoas tão boas quanto e, quiçá consigamos atravessar os outros com esse sentimento.
                    Isso sem precisar de palavras.... Mas deixando um Taj Mahal específico para cada um.
Ana Paula Ferreira

Texto publicado no Jornal da Cidade, 27 de fevereiro de 2024
    

sábado, 10 de fevereiro de 2024

Jogo banco imobiliário em Poços de Caldas



Comecemos a partida! Distribui-se a mesma quantidade de dinheiro a todos jogadores e um peão para movimentá-lo de acordo com a quantidade anunciada na soma dos dois dados. O objetivo é gerar riqueza com algumas estratégias de compra e muita sorte. Jogo e realidade ora se misturam, ora se distanciam. Na vida não se tem o mesmo ponto de partida, alguns começam com patrimônio e a grande população sem nada. Em Poços de Caldas essa lógica não é diferente.

 Aqui, em terras sulfurosas, houve uma família que recebeu sesmarias do governador da Capitania de Minas Gerais, e antes que uma parte fosse desapropriada, doou alguns hectares para a formação do povoado. Nessa lógica, movimentava politicamente bem no tabuleiro do jogo, tendo o nome em destaque de vários patrimônios públicos da cidade, enquanto a maioria ficava no mesmo lugar, porque o salário era suficiente apenas para a subsistência.

 Pois bem… O jogo continua e há uma casa que se chama “sorte ou revés”. Em Poços de Caldas funcionaria assim “SORTE: você tem imóveis no centro da cidade e, portanto, terá a contribuição por parte da prefeitura na troca os pisos de sua calçada”; “REVÉS: você não tem autorização para seu trailer na praça e deverá retirá-lo.”

 Teve família que avançou no jogo com a seguinte carta da “sorte”: “Sua documentação está alinhada ao processo de licitação de pontos turísticos da cidade, dessa forma, você conseguiu a concessão da Fonte dos Amores, Recanto Japonês e Cristo Redentor”. Nota-se, uma semelhança com o banco imobiliário na compra de companhias (força, luz, petróleo, etc.) porque o jogador ao adquirir essa posse, conseguia gerar capital quando o adversário caía nessa casa, num valor multiplicado pelo número que tirou nos dados. É o mesmo que ocorre com o visitante dos pontos turísticos: parou no estacionamento, pague dez reais; parou na tirolesa pague mais sessenta reais; ficará 5 minutos no balanço, pague mais trinta reais. Isso sem o concessionário fazer nenhum investimento patrimonial no local.

 Não foi sorte, nem revés. Simplesmente o jogo estava orquestrado para algumas famílias, seja a que adquiriu concessões, seja a que fez grandes hotéis na cidade à custa de descumprimento de muitas leis trabalhistas, ou de construtoras que avançaram sobre áreas ambientais sem nenhuma preocupação com a recarga d’água.

 Enquanto isso, a maioria da população pouco aproveita da própria cidade, levando em conta inclusive que quem usa o transporte público paga R$6,00 pela passagem, valor mais caro do que na capital mineira. Fica fácil falir e perder no Banco imobiliário quando a concentração patrimonial é exacerbada e a política pública pouco olha para seus cidadãos. Dividem a riqueza entre eles, mas o trabalho, os impostos e as taxas são a “parte que nos cabem deste latifúndio”.

 Porém, para quem está no poder isso importa?

  

Ana Paula Ferreira

Mestre em educação e escritora

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Tameion, a paz e o pedalar



  

Virada de ano. Eu e os 8 bilhões de pessoas provavelmente estávamos desejando “paz”. No meu caso, eu não mentalizava mais nada a não ser paz. Quase duas semanas depois, passei um momento de estresse em relação ao mecânico do carro. Na hora pensei em responder a altura da ofensa, mas lembrei do meu pedido de réveillon e percebi que a paz não viria embalada e entregue pelo correio, nem de luz direta do céu. Era necessário exercitar a paz e, portanto, concluí que nem toda discussão era importante, nem todo embate precisava ser feito. Às vezes a melhor estratégia era o silêncio e o distanciamento.

Aliás... como que o silêncio é fortalecedor! No dia a dia, somos invadidos pelo barulho do trânsito, da comunicação, na musiquinha na academia, nas propagandas dos supermercados e das ruas. Acostumamos tanto que não conseguimos ficar sozinhos, sem ter uma música tocando, podcast ou qualquer voz no fundo.

Daí que a solitude seja indispensável, pois é onde nos encontramos. Escutando uma entrevista do Pastor Henrique para o Mano Brown, ele aponta uma passagem bíblica sobre a oração em segredo, no quarto. Porém a palavra correta em vez de quarto, seria tameion, que é o lugar da casa onde guarda-se a dispensa e também as quinquilharias, ou seja, metaforicamente, no contato profundo com o divino, ficaríamos sem máscaras, nas nossas fraquezas e também nas nossas forças, sem nos esconder.

Depois dessa fala, fiquei a imaginar o tameion como nosso ponto de equilíbrio, porque ali não descartamos as bagunças nem tampouco a nossa riqueza. Simplesmente sabemos um lugarzinho específico para cada coisa e isso nos dá a sensação de paz, de ser quem somos e nos sentirmos aceitos.

Ora, se a paz é um exercício da solitude, ela também está vinculada ao equilíbrio, porque não coloca peso apenas a uma das partes e assim se consegue movimentar, sem cair, que nem quando andamos de bicicleta. Pedalar exige a todo momento um trabalho do lado direito e esquerdo do corpo, o desejo de ir além, mas sem se desprender totalmente do medo. Sentimos o interesse que dá um impulso, porém combinada com a precaução, o freio; numa ideia de liberdade, de fugir, mas sabendo que há um lugar para voltar; ser copa e ao mesmo tempo raiz.

Pedalar me dá a paz não apenas pelo equilíbrio que o ato exige. Sair pelas trilhas de bicicleta me tira a perspectiva de ter que estar no controle, de lidar com o imprevisto. Diferente da academia que tem o ar-condicionado regulando a temperatura, no pedal contamos com ventania, sol, chuva; ao contrário de ter uma fichinha na qual sabe-se exatamente quantos quilos colocar em cada máquina da musculação, andar de bicicleta nem sempre sabe-se de antemão qual marcha será para cada subida. Até o tempo é diferente, pois na academia tem-se uma média de minutos ou horas por dia e ao pedalar não, pois um pneu pode furar, uma tempestade pode atrasar o retorno e várias coisas no trajeto acontecer.

Paz não está na chegada e sim no caminho. Lidar com o que está na rotina nos traz segurança, afinal já adquirimos repertório para dar respostas ao que está posto ali. Difícil é ter paz ao que foge da alçada, ao não planejado, ao desconhecido, porque isso nos movimenta e mexe com o que guardamos no nosso tameion e nem sempre queremos nos deparar com a parte que está escondida, que não reluz.

Contudo, deve-se lembrar que não se caminha apenas sentindo o frescor da brisa, mas também com a força da chuva e aceitar isso sem um apego imensurável ao que foi planejado é libertador. Como bem cantava a banda Tianastácia “Tudo o que vier eu quero e o que não vier eu vou buscar. (…) Pra alcançar o fim passando o meio é preciso começar”.


Ana Paula Ferreira

Mestre em educação e escritora


Texto publicado no Jornal da Cidade de 07/02/2024