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segunda-feira, 19 de julho de 2021

Austeridade: a quem interessa?

            


            Quando os liberais falam de economia em períodos de crises é muito comum usarem o termo austeridade. E o que de fato ela representa? Ela está vinculada com a ideia de retidão, de prudência, bom senso, disciplina, fazer sacrifícios com vistas a desfrutar disso mais tarde. É o que tentam introjetar nas pessoas desde a mais tenra idade através principalmente da fábula “A formiga e a cigarra”, ilustrando que quanto mais indisciplinados, mais correremos o risco de passarmos pelo frio ou pela fome. Não que não haja certa sabedoria na fábula, mas ela evidencia como se estivéssemos sujeitos apenas a nossas decisões, o que não é verdade.

         Para falarem de austeridade com os adultos a linguagem é outra. Comparam o orçamento doméstico com o orçamento público e dizem que assim como a família não pode gastar mais do que arrecada, o “bom” gestor também não pode ter esse comportamento desviante.

     Entretanto, essa comparação é infundada por três motivos. Primeiro porque o governo tem a capacidade de estabelecer o aumento de seu orçamento e assim, escolher entre tributar os mais ricos ou taxar os mais pobres. Já a maioria das famílias não possuí a liberdade de vender a força de trabalho, mas sim a necessidade e, portanto, dificilmente há negociação do salário, e sim aceitação.

         O segundo motivo é que quando o governo acelera o crescimento econômico com programas sociais ou políticas de incentivo isso retorna na forma de impostos e, portanto, há um aumento de receita. Com as famílias já acontece o contrário. Se gastarem com supermercado ou no pagamento de suas contas, esse valor não lhes voltará.

         E a terceira razão que evidencia o equívoco dessa comparação é porque as famílias quando contraem dívidas junto às financeiras, elas não definem as taxas de juros, e aliás, elas também não emitem moeda, diferente do governo federal que possuí essa flexibilidade.

             Assim sendo, a austeridade não provoca o crescimento de uma nação. Pelo contrário. Se há o corte de gastos públicos, haverá menos retorno e consequentemente menos receita para novos investimentos. Qual é o interesse na sua aprovação se não há benesses para a maioria da população? Trata-se de uma escolha política para coroar os mais ricos, afinal ao gerar o desemprego, haverá menos pressões trabalhistas e consequentemente achatamento salarial seguido de aumento da desigualdade de renda. Além disso, a diminuição de gastos com educação, saúde e várias outras pastas, abre espaço para setores corporativos da sociedade. Deixo como exemplo o faturamento do grupo Unimed que fechou 2020 com o maior lucro desde 1998.

         E no nosso cenário municipal? Como que o governo Sérgio tem conduzido a economia? Tomando como referência uma análise feita pelo professor Tiago Mafra na audiência pública sobre o Plano Plurianual de Poços de Caldas, é possível perceber uma retração dos investimentos em diversas áreas. Na educação o plano prevê a redução de mais de 50% em setores tais como Programa Municipal da Juventude, que atende crianças e adolescentes em período complementar a escola, serviço normalmente utilizado por pais e mães trabalhadores. Na saúde estabelecem um corte de mais de 10  milhões em Programa de Vigilância em Saúde e na pasta de Esporte o corte estimado é de 14 milhões, o que impactará diretamente programas de incentivo à prática desportiva. Investimento em moradia popular praticamente é citado no Plano de forma insignificante, mesmo num momento de crise econômica que inúmeras famílias passam por enormes dificuldades em pagar o aluguel.

        Em linhas gerais é isso que é a austeridade: impacta os mais vulneráveis e os pequenos empresários, afasta o poder público de suas responsabilidades com a maioria dos cidadãos e no final, não gera a receita que é tão divulgada. Aliás, gera sim, mas apenas para uma elite econômica que discursará a plenos pulmões a favor da austeridade do outro.


Ana Paula Ferreira

Entorpecimento

             


Tem um anime belíssimo que se chama “Princesa Mononoke”. O filme começa com um monstro enfurecido que está se corroendo e ao mesmo contamina tudo o que está ao redor. Por onde passa, leva a destruição e antes de ser morto, atinge o braço de um príncipe que saí então em busca da cura.

Todos dias nós também somos contaminados por doses diárias de veneno. Ele está invisível na nossa comida, ou na fumaça dos carros e fábricas e nas queimadas incessantes da Amazônia. É um tipo de tóxico tão corrosivo, que além de destruir florestas, poluir a água e o solo, atinge também nossa saúde física e compromete o nosso raciocínio mental e nosso convívio social.

            É tão poderoso, que se bebe a goeladas e às vezes nem nos damos conta. Torna-se bêbado sob esse entorpecente e a consciência moral é levada a zero. Para defender essa droga os dependentes químicos humilham os mais vulneráveis: desempregados são chamados de vagabundos, mulheres de vadias, negros de preguiçosos, e todos os que não possuem sucesso são tidos como lixo humano.

           Em situações extremas de torpor há a violência, pois começam a enxergar criaturas aterrorizantes quando olham para imigrantes, indígenas, grevistas. Isso porque um dos efeitos colaterais dessa droga é meritocracia e as pessoas são entendidas como valor monetário. Assim sendo, se um imigrante procura emprego, deve ser banido do país, mas se ele é o empregador, deve ser respeitado. O raciocínio do entorpecido não consegue perceber que as pessoas ao nascerem em situações de desigualdade, dificilmente conseguirão uma vida digna se não houver um apoio do Estado de Direito. Acham que depende exclusivamente do indivíduo e culpam o Estado de “não ensinar a pescar”, quando na verdade, a água está poluída, a terra da pesca é propriedade de apenas uma pessoa, e não há nenhuma ferramenta para conseguir o peixe.

            Há os que respiram essa droga, mas tentam fingir que não usam. Daí fazem ações de caridade, doam comida, roupas, dão dízimo para igreja, ou qualquer coisa do tipo. Contudo, quando se questiona os efeitos sociais da droga, como o desemprego, a desigualdade econômica, a necropolítica, e se mostra que é possível regulamentar através de taxação de altas fortunas, reforma agrária ou distribuição de riquezas, essas pessoas caridosas, ficam extremamente agressivas. Concordam com o empresário que ganha bilhões e que remunera salários desprezíveis a seus funcionários e acham um absurdo ele ter que pagar mais impostos, pois para elas, o governo, principalmente de esquerda, que é corrupto e fonte de todos os problemas.

            Aliás, todas pessoas são usuárias dessa droga, umas em maior proporção e outras de forma mais controlada, mas todas são, principalmente quando não possuem consciência de si e de suas ações. Há as que se denominam de esquerda e dizem lutar contra esse veneno. Falam que não vão mais usar, mas na primeira brecha, injetam doses concentradas e ao invés de gastarem energia no combate a essa droga, miram seus ataques a sindicatos, partidos progressistas e movimentos sociais. Agindo assim não percebem que se alinham a um perfil autoritário, afinal tentam controlar a vida do outros, ao ponto de denominarem sob o jugo de seus critérios quem é ou não de esquerda, tirando o crédito de instituições que historicamente lutaram por trabalhadores, pelas minorias sociais.

E os que fabricam a droga ficam felizes de ver isso... riem a gargalhada porque o plano está indo de acordo com os conformes: a descrença do ser humano no ser humano, individualismo, distanciamento social e falta de consciência política, pois só assim haverá permanência, cada vez mais intensa, cada vez mais brutal dessa droga.

           O príncipe do desenho no decorrer da história, compreendeu que não bastava se livrar da mancha que estava na sua pele, pois a contaminação era consequência de uma desordem ambiental, fruto da exploração da natureza de forma desmedida, para trazer a riqueza de alguns e/ou o poder de outros. E só conseguiremos romper com esse envenenamento coletivo num duplo movimento: removendo as manchas que ainda estão em nós e de aproximação com todos aqueles que percebem minimamente os efeitos perversos causados por essa droga. Caso contrário, continuaremos distantes de nós mesmos e do mundo, e a droga mantendo sua contaminação.

Ana Paula Ferreira