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terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Serpenteando semelhanças

 



Cobras são excepcionais
Existem as medrosas,
que somem na escuridão
Existem as insolentes,
que se levantarão
mas sem veneno
significante

Tem as que silenciosamente
Seduzem
Se sentem superiores
Aproximam serenas
e nas suas insignificâncias
surpreendem.

Há a sinuosa
que se insinua sincera
Abraça no enlaço
mas nada mais faz
do que prender
movimentos e pulsações
até o desfalecimento.

Claro... há a venenosa.
Ataca
Injeta toxina
quando se sente ameaçada
Mas o interessante
É que seu veneno
Também pode ser cura.

E independente...
Algo entre elas é singular…
trocam de pele
e nessa troca,
quem sabe possam sair
de sua pele
sorrateiramente cínica

A poesia não é fotografia

 


A poesia não é fotografia

Na foto está o instante

O agora

O momento

Retido pelo flash

Independente

Se o cenário foi montado

Ou imediatamente capturado


A poesia vive na gente 

Durante minutos a fio

Minutos que podem virar horas

Horas que podem virar meses

É cabelo despenteado

Esperando uma escovação

É casa desarrumada 

Aguardando faxina


E daí que quando ela brota

Acha-se que veio da chuva de agorinha

Mas, não….

Ela estava em fio d’água

Embaixo da terra

Ansiosa por aparecer

Ana Paula Ferreira

@ana.paula.educacao


Distanciamento da profissão e do saber


Começo com uma pergunta: será que nós professores, profissionais que dominam determinada área do conhecimento, estamos em alguma medida distantes de nossa própria profissão? Uso como referência de reflexão um trecho do livro “O capital para educadores” de Vitor Paro, que resumo aqui. Imaginemos um bolo e que hipoteticamente pode ser preparado tanto em casa, quanto numa fábrica, havendo os mesmos instrumentos de trabalho (batedeira, fogão, assadeira), mesma matéria-prima (ovo, farinha, leite). Porém, em casa, o bolo é uma realização, uma extensão do sujeito, e na fábrica, como a motivação não é o bolo e sim o salário, esse mesmo trabalhador está apartado de seu produto.

Caso nossa maior motivação seja a salarial, ou a segurança no serviço público ou qualquer outro motivo alheio ao ato de ensinar, não nos reconhecemos de fato na ação docente. Se não nos identificamos com nossa aula, se ela é um produto já elaborado por outras instâncias, a aula vira o bolo de fábrica e não nos reconhecemos nesse produto. Um dos problemas é que não somente nos apartarmos de nossa importância social como também não nos reconhecermos na profissão.

            Uma amostra sobre essa relação com a profissão eu tive recentemente. Eu fiquei mais de 4 anos sem redes sociais. Para minha surpresa, quando retomei, observei que os colegas muitas vezes não se colocavam como professores, mas como vendedores de Tupperware, massagistas, músicos em banda de rock, produtores de cerveja, etc. Cabe frisar que não tem problema nossa identificação com outras áreas ou com passatempo que marquem nossa subjetividade. Aliás, é até compreensível, diante de governos que não pagam o piso e que empurram os profissionais da educação a assumirem outros meios de vida.

            Mas o que mais me impressiona é o fato do não reconhecimento com a profissão. Se a rede social é como se pretende ser visto, por que esse apagamento da imagem de professor? Nesse apagamento, mostramos que nem nós mesmos estamos aptos a valorizar o que somos, o que fazemos e depois questionamos a reduzida valorização social. Nesse apagamento nos distanciamos da luta trabalhista, não nos identificamos com os nossos pares, menosprezamos a greve ou qualquer luta pelos nossos direitos, afinal, estamos afastados da ideia de quem somos e de um compromisso perante o mundo.

            Em cima dessa dificuldade em assumir a identificação de docente ou de paixão pela área lecionada, para apenas ser um cumpridor de aulas, reforça-se essa mesma proposta entre os estudantes. Isso porque quando se deixa de encantar com as palavras, quando se perde a capacidade de atrair olhares para o objeto de estudo, viramos meros burocratas da educação e negociamos com os estudantes que a principal tarefa não é aprender, mas sim adquirir nota.

A nota é o salário do estudante no final do bimestre e nem sempre é sua identificação com o conhecimento, pois nem sempre se percebe como produtor de saber, de arte, de linguagem, de raciocínio. Se nosso discurso enfatiza que o estudante precisa “passar de ano” e deixamos de valorar que o saber é um instrumento poderoso contra as injustiças; se justificamos que o estudante precisa de bom desempenho para que a família não seja chamada na escola, em vez de enfatizar que o saber é liberdade, é autonomia, estamos aos poucos plantando a semente de uma postura dependente, subalterna, acrítica.

Desobscurecer nossa visão é algo contínuo, na qual o saber deve ser usado para nossa própria libertação enquanto sujeitos. Até porque, se buscamos seduzir a atenção de que o conhecimento é bom, ele também precisa ser bom para nós e perpassa mostrar disposição em ensinar e também em aprender. Lembrando inclusive que, a ausência de felicidade no salário do final do mês, não deixa de ser uma bandeira de resistência, entretanto não é por isso que vamos permitir a tristeza e a desesperança invadirem nossa aula ou nossa profissão.

Nossa profissão é ponte entre o aluno e o conhecimento e não podemos abrir mão de valorizar esse processo de humanização do qual somos parte fundamental. Na alegria de nos renovar com o aprendizado e na esperança em perceber olhos mais curiosos para o novo, vamos construindo a plenitude da autoafirmação profissional em comunhão com aulas que potencializem a criação, o amor ao saber e a liberdade em ser mais do que uma nota.

 

Ana Paula Ferreira
Texto publicado no Jornal da Cidade 05/12/2023 

domingo, 26 de novembro de 2023

Doce pela metade

 


Comer um doce de alguém pela metade

É forma de intimidade?

Me falaram que sim.

E se companheiro é quem partilha o pão

Então acabo de inventar

Que “condocenheiro” é quem divide o doce.

E continue assim...

A metade de cada um

Para formar um só doce

E um só doce para adoçar

A vida de duas pessoas que queiram (se) dividir.

 

Ana Paula Ferreira

@ana.paula.educacao

Refinar a dor? Não.




 Triste

Como a música Clair de lune de Debussy

Intensa

Com o grito animalesco saindo do fígado

Inteira

Na violência da dor que vinha das entranhas para garganta

 

Não se diluía

Pulou do trampolim na piscina da dor

E sentia

A raiva lhe dando forças para subir a superfície

 

Não estava fragmentada

Ela era uma caldeira vulcânica

De tristeza misturada com ira

Choro combinado com grito

Erupção de lava com toxidade

Que precisava ser liberada

 

Era produto bruto no seu sentir

Não queria ser lapidada

Era alimento integral

Precisava manter a casca

Recusava o refinamento

 

Refinar a dor para quê?

Para quem?

Era seu direito viver plenamente

O grito era sua palavra não verbal

Que saiu da boca

Para arrancar da alma

A ferida que poderia crescer.

 

 

Ana Paula Ferreira

@ana.paula.educacao

 

- EU TÔ AQUI, não estou?

 



- EU TÔ AQUI, não estou?

Quem está integralmente

Não precisa perguntar

Se há dúvida

É porque verdadeiramente não está.

Carinho A – BANDOna -do

Beijo protocolar

Cansaço em casa

Mas a vida pública a chamar

A ausência vai crescendo 

Ao ponto de nada mais ficar

E assim...

O luto vai fazendo morada na alma.


 

Ana Paula Ferreira

@ana.paula.educacao

PARADA, ESTANCADA

 


PARADA

Que nem passageiro num ponto de ônibus.

ESTANCADA

Que nem sangue coagulado.

 

Ela se sentia PARADA

Não seguia

O semáforo estava vermelho

Por horas

Por dias

Por meses

E o tempo trans

corria.

Tudo tinha som

Mas ela era silêncio

Ao redor era tumulto

Porém ela era só um organismo

No entorno barulho

E dentro dela um            a

bis

mo.

 

 

Estava tão ESTANCADA

Que parecia que não tinha pulso

O olhar era opaco

A própria respiração não se ouvia

O músculo não tinha nervos

A pele era apatia.

Outrora era gargalhada

Hoje pela cama se estendia

Antes era samba

Nesse momento melancolia

Era conhecida pelos seus planos

Agora era sala vazia.

 

Ana Paula Ferreira

@ana.paula.educacao

sábado, 18 de novembro de 2023

Ser professor: nem Sísifo nem Nissin Miojo

 


Começo parodiando Simone de Beauvoir “Não nascemos professores. Nos tornamos professores” haja vista que é um movimento contínuo que exige mudança, ressignificação, reflexão, novas práticas. E se é para falar de mudança, é interessante o mito de Sísifo. Diz a história que ele foi um homem muito esperto que conseguiu em vários momentos enganar os deuses, trazendo para si a ira deles. Daí, quando morreu, foi condenado a empurrar uma rocha até o topo da montanha e assim que ela rolasse, ele repetiria o mesmo procedimento pela eternidade, evidenciando que o castigo é a repetição.

Mas o que isso se assemelha ao trabalho docente? Se estamos dando aula praticamente do mesmo jeito que 20 anos atrás, se pretendemos nos relacionar com os nossos estudantes do mesmo modo que 20 anos atrás, estamos escravos de um destino. E o problema é que não houve um deus que fez isso, mas uma autocondenação, que traz esse peso da rocha para costas, deixando a marca do mal humor, da dor, apatia, sem vontade de fazer mais nada a não ser empurrar o ensino até o final do ano e no seguinte fazer a mesma coisa. Ora, e por que isso é um castigo? Porque nos desumaniza, nos retira um dos elementos pelos quais nos diferenciamos dos outros seres vivos que é a criação.

Não há dúvida que na natureza encontramos engenharias perfeitas. A abelha faz a colmeia maravilhosamente bem, a formiga monta andares de formigueiro e a aranha tece a teia com toda uma distribuição uniforme de linhas. Contudo, estão programadas geneticamente a fazerem isso. Nós seres humanos não. Nos lançamos para o futuro no nosso processo criativo e podemos fazer inúmeras façanhas... escrever uma poesia, cantar uma música, preparar um jantar, consertar um chuveiro, cuidar do jardim.

Se estamos nesse lugar de docência, é porque houve uma escolha. E o professor não precisa abrir mão de quem é. Não precisamos nos abandonar. Aliás, a escola pública se faz nessa beleza do encontro com a pluralidade e o professor que também é músico, pode em algumas aulas ensinar com melodias; o professor que gosta de artesanato, pode se valer de em determinadas situações ensinar a preparar jogos pedagógicos e assim por diante. Nisso vamos criando o gosto pelo aprendizado, no encontro com nossa autenticidade e fugindo de um perfil inflexível característico da Síndrome da Gabriela, “eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou mesmo assim... Gabriela”.

Criar a potência para aprender é o que caracteriza a alegria crítica. Esse termo é utilizado pelo professor Celso Vasconcelos para enfatizar que a alegria de estar na escola por parte dos alunos não pode se restringir ao horário do recreio. Alegria aqui não é palhaçada, zoação e professor não precisa ser comediante. Alegria é no sentido de energia, de uma aula que motive o aprendizado ao ponto de os estudantes manifestarem a satisfação em realizar uma equação, escrever um bom texto ou conseguir falar em público.

Nesse afeto, diante do vínculo manifesto pelo incentivo de ir além da concretude, é uma das razões também da educação escolar. Na criação desse afeto, criamos condições de nos humanizar em comunhão, característica nossa que não podemos abrir mão, pois embora haja muita informação na internet, ela ainda não substitui a relação professor e aluno. Até porque na internet pode haver o objeto do conhecimento, mas nada ou muito pouco se saberá sobre quem é esse internauta, e, portanto, seu modo de vida, percepções, sensos comuns não serão trazidos como ponto de início na jornada do conhecimento.

Além do papel do professor ser diferente do comediante e da internet, é diferente do apresentador de jornal. Na educação a formação é contínua e o mesmo conteúdo é visto sob vários ângulos e em vários momentos da vida escolar, justamente porque exige sistematização do saber para que haja um aprofundamento sobre aquele objeto do conhecimento. Difere do Jornal Nacional que um dia fala de terremoto na Turquia, no outro sobre guerra na Palestina e no outro sobre a final de um campeonato, mas não exige contextualização, compreensão histórica dos fatos, tudo é rápido e instantâneo para ser digerido, tal como um Nissin Miojo.

Portanto, ser professor difere de uma repetição de Sísifo, mecânica, acrítica, mas também deve fugir da elaboração de macarrão instantâneo, raso, sem nutriente, sem sustança, que trata de forma pontual o que deveria ser sistematicamente digerido. De pouco adianta semanas abarrotadas de palestras, aulas “blitz”, cada uma sobre uma coisa, sem relação com o currículo que está sendo trabalhado ou sem o compromisso com uma realidade social verdadeiramente democrática.  

Afinal, educação deve existir para empoderar os estudantes com conhecimentos que dificilmente viriam em suas casas, verdadeiros legados da humanidade e que temos como princípio democrático torna-los acessível de modo que sirvam como processo humanizatório e de instrumento de luta para uma sociedade justa.

Para isso, devemos lembrar, portanto, que nosso papel é duplo: ter conhecimento sobre nossa área do saber e de ser especialista em gente. Se o marceneiro transforma a madeira em mesa, o pedreiro transforma cimento e tijolos em casa, nosso trabalho é a transformação do aluno na sua melhor versão, física, intelectual, moral, política, social, mediante a nossa arte do encontro, com o estudante e com o saber.  

 

Ana Paula Ferreira

Mestre em Educação

 

Texto publicado no Jornal da Cidade, 17 de novembro de 2023 e também no link abaixo. 

https://www.jornaldacidade1.com.br/ser-professor-nem-sisifo-nem-nissin-miojo-ana-paula-ferreira/

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Indisciplina em três instâncias

            

Imagem retirada no site: https://porvir.org/como-lidar-com-a-indisciplina-e-melhorar-o-clima-escolar/

            Quando se pensa na educação como processo de desenvolvimento humano e direito social é imprescindível levar em consideração o papel do Estado e da família e, não sem razão isso é posto na Constituição Federal de 1988, cada qual desempenhando ações específicas. Portanto, o problema da indisciplina escolar, também não pode ser tratado de maneira isolada, até porque, se há efeitos dela na escola, tal como baixo desempenho ou maiores as chances de evasão, há também consequências sociais da indisciplina na sociedade, como violência no trânsito, descumprimento de leis ou mesmo a dificuldade do sujeito se organizar para cumprimento de seus próprios projetos.

Mas, de que maneira a indisciplina pode ser minimizada? Quais seriam as causas sociais, econômicas e pedagógicas que contribuem para seu crescimento? Avaliando essa articulação entre governo, família e escola, pretende-se sinalizar alguns pontos sobre essas questões.

Em relação ao governo, ele opera com políticas públicas, sejam elas de caráter preventivo ou reparativo, articulando várias pastas ministeriais num entendimento de que problemas complexos exigem respostas também complexas. Assim sendo, é preciso divulgar através das secretarias de comunicação, conceitos importantes, como indisciplina, incivilidade, violência, bullying, de modo que a sociedade se organize para uma cultura da paz. Além disso, as comunidades devem ser providas com aparelhos públicos voltados ao lazer, saúde, saneamento básico, segurança e políticas de distribuição de renda de modo que os estudantes não vejam a figura do professor como uma das únicas imagens de um Estado que se fez ausente e, portanto, sem credibilidade nenhuma.

Dentro ainda do papel do governo, mais diretamente relacionado a escola está a necessidade de diminuição de alunos por turma, afinal, turmas numerosas dificultam a interação de maior vínculo entre professores e alunos, abrindo espaço para a indisciplina e o desgaste das relações.

Na esfera familiar, é salutar que se reveja as relações entre os adultos e os filhos, evitando-se o autoritarismo parental, sem, contudo, cair no extremo da chamada Síndrome do Pequeno Imperador, na qual adolescentes e crianças ditam normas e formas de convivência. Acompanhar, mas deixando que a criança faça; aconselhar, porém, tendo a capacidade de também ouvir; negociar regras e juntamente mostrar o sentido de existirem... isso tudo para fomentar a autonomia do sujeito, sua própria organização, numa postura de compromisso para além do instantaneísmo e superando a perspectiva egocêntrica.

Por fim, e não menos importante, há o papel da escola que pode se valer das reuniões pedagógicas e discutir o assunto da indisciplina sob vários ângulos, sejam eles, antropológicos, históricos, políticos, etc. Nesse sentido, esses encontros podem contribuir na percepção de que a escola do presente não será igual a do passado, que as relações mudam, que é fundamental o respeito à diversidade, pois truculências serão recebidas com desafetos. Além do mais, entender que um bom planejamento das aulas pode minimizar situações de desordem e consequentemente a indisciplina, e daí, a escola conseguirá cumprir seu papel no desenvolvimento dos sujeitos sem abrir mão do acesso aos objetos de conhecimento.

                                                                                      Ana Paula Ferreira - Mestre em Educação 

 

Texto  publicado no Jornal da Cidade 08/11/2023
E também no link: 

https://www.jornaldacidade1.com.br/indisciplina-em-tres-instancias-ana-paula-ferreira 

domingo, 29 de outubro de 2023

Escola pública: avanços e desafios

 

 
Imagem retirada do site: https://escolapt.wordpress.com/2017/05/06/a-escola-do-seculo-xix/ 

Há inverdades que nos contam e que precisamos refletir sobre elas. É dito, por exemplo, que se alguém viajasse no tempo e visse a escola 100 anos depois, não encontraria diferença. Continuaria a professora, os alunos, as carteiras enfileiradas, o quadro negro, como se nada tivesse mudado. O problema dessa falácia é o apagamento histórico de todos que lutaram pela escola e de todos os seus avanços. Mas, quais seriam eles?  

            Uma das principais mudanças é que o estudo era condição para poucos. Final do século XIX, o Brasil tinha mais de 80% da população analfabeta, um país de economia essencialmente agrária, trabalhadores em sua maioria escravizados ou uma população rural pobre.

Daí que na construção de um país republicano, a política tratada como coisa pública, e não de uma família ou de privilegiados, a educação também começa a ser observada como responsabilidade do Estado. É claro que o projeto nacional de educação não partiu da elite, mas de iniciativas da sociedade civil organizada e merece destaque o trabalho de intelectuais, professores e gestores que organizaram o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova em 1932.

Defendiam propostas em três aspectos principais: político, financeiro e pedagógico. Na questão de organização política da escola, levantavam a bandeira da escola pública, gratuita e laica, que promovesse uma sociedade mais acessível a todos, mais democrática, afinal, o conhecimento seria democratizado.  

Ao mesmo tempo que era importante a descentralização como forma da escola ter mais autonomia, isso não poderia significar um abandono dela a própria sorte no campo financeiro e daí que era fundamental que o Ministério da Educação criasse e cumprisse leis em relação a um percentual específico que fosse destinado para a educação. Já no aspecto pedagógico, propunham um tratamento respeitoso entre professores e alunos, fomento a um protagonismo maior por parte dos estudantes, críticas ao enciclopedismo, autoritarismo, castigos físicos e humilhações empreendidas.

Além do Manifesto, mães reivindicavam mais creches, famílias lutavam por mais escolas, porque estudo era um tipo de elevador social. Nesse sentido, foi-se ampliando ao longo do século XX e início de XXI os investimentos para a democratização ao ensino, mesmo que com pouco celeridade.  

Portanto, se formos resumir, a escola atual não se parece com a escola de 100 anos atrás, em três aspectos principais. 1) Na questão de universalização, ao ponto de não haver nenhuma restrição para o ato da matrícula,; 2) Avanços significativos na relação professor/ aluno, não mais no medo, mas na criação de vínculos e de outras formas de abordar o conhecimento; 3 ) Acessibilidades de diversas ordens: livro didático, merenda escolar, alunos com deficiência com matrícula garantida, etc.

Se é com base na luta que temos conquistas, quais então são os desafios atuais? Será que temos respostas condizentes com os problemas?

Um dos principais problemas é um baixo valor de CAQ, ou seja, de Custo Aluno Qualidade, que impacta diretamente na aula, diante da escassez de investimento estatal, seja para manutenção das escolas, construção de laboratórios de informática e de ciência, melhoraria no acervo da biblioteca, etc. Por outro lado, quais foram as alternativas? Alegam que a aula está desinteressante, mudam o currículo no Ensino Médio e ainda liberam o homescholling, sob argumento de que a família manifesta uma descrença em relação a educação regular e que sua vontade deve ser respeitada. Consequência: quebra-se a ideia de projeto de nação no qual a escola tem fundamental importância na constituição de cidadãos e, por outro lado se isola novas gerações do encontro com seus contemporâneos.

Outro problema é a falta do pagamento do piso, que como resultado, gera greve, e, dias seguidos sem aula. Solução óbvia: cumprimento da lei 11.738/2008. Mas, em contrapartida, o reajuste não é feito e, pelo contrário, os professores são culpabilizados, tratados como doutrinadores ou como ingratos por terem estabilidade empregatícia. Escondem que a estabilidade é uma garantia que mesmo que haja mudança de governo, os funcionários permaneçam e, portanto, ocorra a continuidade dos serviços prestados.

Também é importante diminuir a quantidade de alunos por sala. Isso traria a possibilidade de maior vínculo com os alunos, proximidade com suas demandas, planejamentos mais direcionados, e maior facilidade de potencializar o pertencimento de cada um com o grupo, haja vista que em turmas abarrotadas, alunos viram números e as situações de indisciplina são mais difíceis de contornar. De maneira distorcida, trazem a pauta das escolas cívico-militar, como se questões pedagógicas se resolvessem nas mãos de militares.

Assim sendo, percebe-se que educação pública embora seja um direito na Constituição Federal de 1988, ainda é algo a ser permanentemente defendida, seja para contrapor falsas soluções, seja para que avance em suas pautas de inclusão e democratização do saber, na construção de sujeitos que se comprometam com um mundo mais igualitário, justo, fraterno e bonito de se viver.  

 

Ana Paula Ferreira

Mestre em Educação e militante do Coletivo Educação

Texto publicado no Jornal da Cidade - 29/10/2023
E também no link 
https://www.jornaldacidade1.com.br/escola-publica-avancos-e-desafios-ana-paula-ferreira/ 

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Ainda sobre Kevin - ataque em Poços de Caldas

 

  
Imagem do site: https://revistacult.uol.com.br/home/entre-a-barbarie-e-a-civilizacao-o-que-nos-une/

Diante do ataque à escola em Blumenau, em abril deste ano, foi publicado o texto “Precisamos falar sobre Kevin” que refletia sobre o perfil de um personagem de um filme que premedita violência contra os colegas e de como nossa sociedade abastece esses atos à medida que crescem células nazifascistas e intensifica-se a ausência do Estado nas políticas públicas. Em meio a isso, os meios de comunicação de massa propagam o medo e o individualismo.

Seis meses depois, há um novo ataque e, se antes parecia história norte-americana, no Brasil, infelizmente, também tem se mostrado uma triste realidade. Dessa vez, a tragédia foi na cidade de Poços de Caldas.

Kevin pode ser considerado como estereótipo desse cenário, a qual muitas vezes queremos atribuir ao biológico ou apenas à história do indivíduo e às contingências, pois daí, então, pouca ou nenhuma ação nos competiria e seria mais confortável essa justificativa. Porém, nossa subjetividade é marcada por relações que, humanas, fornecem repertórios para conseguir operar e sobreviver no mundo. Nesse sentido, destaca-se aqui como estabelecemos trocas sociais e de consumo.

Desde bebê, há a relação com o outro e cada cultura faz isso à sua maneira. Em muitos grupos indígenas, o parto é normal e isso diminui a dificuldade com aleitamento, a mãe amamenta por mais tempo, já estabelecendo um vínculo com o filho, crianças crescem juntas brincando e interagindo com a natureza sob o olhar de cuidado de todos da tribo. Já em países como Estados Unidos, a licença maternidade não garante pagamento à mãe e por isso é muito comum a preocupação com o retorno ao trabalho e diante do excesso de carga horária trabalhada, pouco tempo sobra para os cuidados dos filhos. No Brasil, a licença maternidade ainda é uma conquista em construção. Notadamente, sabe-se da qualidade das políticas públicas de um país através da forma como lida com as mulheres e as crianças.

Se a redução da jornada de trabalho é uma pauta que não pode ser ignorada, por outro lado também precisamos enquanto família pensar as relações no ambiente privado. Criar uma criança demanda abraço, olho no olho, brincadeiras, ato de ser ninada, de se sentir amada. E isso não é incumbência apenas da mãe e do pai, porque diante de uma rede de apoio de tios, vizinhos, avós ou padrinhos, é possível que a criança receba influências diferentes para seu desenvolvimento. Se é necessária uma parceria com outras pessoas, a efetividade e colaboração entre as instituições públicas também é imprescindível, na defesa dos direitos da criança e do adolescente: Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, escola, Conselho Tutelar, CRAS, CREAS, etc.

Em se tratando das relações comerciais, aprecia-se o consumo que nos anuncia a chance de felicidade. E isso invade o processo educativo-ensinativo nas relações de pais e filhos/filhas, de família. Pais e educadores são instados constantemente a compensar a ausência de tempo com os filhos, comprando mais brinquedos, deixando-os excessivamente no celular e o que era para ser uma relação de afeto ou de estabelecer limites, se transforma numa relação mercadológica, na qual objetos são mais valorizados do que os momentos em família. Não raro, pais e educadores que já foram educados nessa lógica – o desmonte do lugar da tradição já dista mais de cinquenta anos...

É difícil para os adultos dimensionarem o lugar do consumo na modelagem da subjetividade tardomoderna. Quais tipos de filmes, músicas, comida, informações que digerimos? Contribuem para uma cultura de violência ou de paz? Colaboram para a felicidade de outras famílias ou para o sofrimento? E que tal felicidade é essa que tanto se vende, tanto se busca e nunca se acha?

Não há como mensurar a dor de uma família que perde seu filho de maneira tão violenta. É leva-lo para escola, mas não ver voltar. É ver a camisa dobrada na gaveta do guarda-roupa, mas ao mesmo tempo ter a imagem do uniforme ensanguentado. É olhar fotos e saber que não haverá mais aniversários a comemorar, nem abraços, nem selfies fazendo careta. É ir no quarto do filho e achar que o pesadelo vai acabar, mas se deparar com a cama vazia e arrumada.

Imensa solidariedade a essas famílias que vivem esse luto. Merecem acolhimento, carinho e o espaço da fala para que consigam lidar com tanta tristeza. E, pensando em como podemos refletir para criar chances de se evitar futuras dores desse tipo que precisamos enquanto sociedade, lembrar que somos, todos e todas, responsáveis pelas futuras gerações, também responsáveis, por uma formação civilizatória. Ou é isso ou é a barbárie...

 

Ana Paula Ferreira

Supervisora escolar, Mestre em Educação e militante no Coletivo Educação

 

Roberta Ecleide de Oliveira Gomes Kelly, psicanalista, pós doutora em Filosofia da Educação, coordenadora do Nepe - núcleo de estudos em psicanálise e educação


Texto publicado no Jornal da Cidade - 20/10/2023

domingo, 15 de outubro de 2023

Educação na rede municipal pública de Poços de Caldas

 



            Poços de Caldas é uma cidade bonita por natureza, agraciada com sua serra São Domingos e caracterizada pela sua água termal que a possibilitou receber ilustres turistas ao longo de décadas. Assim, foi se construindo com suas praças, balneários, cafés, cassinos e aqueles ou aquelas que não tivessem condições de morar próximos a essa região central eram periferizados em habitações populares que se formavam em bairros que não tinham inicialmente nenhuma estrutura para receber centenas de pessoas. Essa discrepância entre centro e bairros ficou inclusive mais evidente com o processo de industrialização, que contribuiu para que inúmeras famílias de cidades vizinhas migrassem para Poços de Caldas em busca de melhores condições de vida.

            Assim, Poços não deixa de ser uma ilustração de uma desigualdade social própria de nosso país, na qual a distância entre os que exercem o poder institucional e os trabalhadores não é apenas uma questão de local de moradia, mas de oportunidade de fala. Esse abismo entre classes sociais não deixa de ser reflexo histórico de uma elite que liderou a cidade e se colocou arrogantemente como quem sabe o que faz, negando o processo de escuta das vozes que ecoavam dos bairros, das escolas e das ruas.

            O mesmo ocorre na educação em Poços de Caldas. Tal visto que se ouvissem de fato os professores da rede municipal, se atentariam aos problemas do não pagamento do piso salarial, a falta de manutenção nas escolas que carecem de reparos estruturais, a ausência de livros e materiais no Centro Municipal de Línguas, a necessidade de haver concurso público para professores de apoio acompanharem os estudantes com deficiência em sala de aula. Se os pais fossem escutados, se perceberia a queixa referente a falta de ônibus escolar para os alunos que moram a mais de 5 quilômetros de distância da escola ou a necessidade de Programas Municipais da Juventude de unidades que foram fechadas. Se a equipe gestora fosse percebida, seria evitada a troca de professores no final do ano. E... até mesmo o Conselho Municipal de Educação, representação da sociedade civil organizada, se fosse respeitado, teria as respostas dos ofícios que foram encaminhados a Secretaria de Obras e ao Ministério Público.

            Se falta diálogo, o dinheiro para educação que é público, não é administrado atendendo aos anseios públicos. E assim, ao contrário de precaver os problemas, direciona-se um montante considerável com projetos de qualidade duvidosa e, que se houve melhorias, é justamente porque professores não se silenciaram. Exemplo disso ocorreu com o projeto denominado Ativamente, cujo o questionamento não recaí apenas sobre o custo, mas sobre a entrega do serviço. Quase um semestre depois da parceria público privada que houve uma coordenação específica de dentro da Secretaria para acompanhar mais de perto as ações da empresa. Em pesquisa realizada pelo Conselho Municipal para coletar informações sobre a opinião dos educadores que trabalhavam diretamente com o Projeto, foi identificado que havia uma média de 5 estudantes por computador para realizar as atividades, o material foi considerado por muitos educadores como de baixa qualidade e menos de 10% dos respondentes afirmaram que havia uma relação entre o Projeto Ativamente e o que era ensinado em sala de aula.

Nesse processo político, é retirado o foco em relação a população. E além disso... é retirado também o foco nos direitos sociais, uma vez que aspectos administrativos ganham mais peso do que a educação. Isso porque se falta concurso público para suprimento de vagas de professores, e a justificativa do prefeito Sérgio é a espera pela aprovação do regime estatutário, ao invés de corrigir o problema, o acentua, coloca seus projetos acima de demandas da população e desconsidera o fato que escolas com um quadro de funcionários efetivos possuem melhor desempenho do que aquelas que anualmente mudam boa parte de sua equipe.

Assim, diante desse antidiálogo, é preciso lembrar que a atividade fim de uma Secretaria de Educação é o fornecimento da educação. Esse é o objetivo principal. Por mais que seja obvio, é importante esse destaque para frisar que as outras atividades (contratação de funcionário, obras, manutenção, investimento) devem se subordinar a esse objetivo principal, e, portanto, quando a Secretaria de Gestão de pessoas não provê um quadro completo de servidores que seguirão até o final do ano, estamos invertendo a ordem das prioridades.

Se tivemos pouco tempo histórico na nossa cidade de orçamento participativo, comparado a décadas de um grupo que se diz técnico e ignora seu povo, que compreendamos que o processo democrático não é enfeite político, mas uma ferramenta de atender de fato o que a população precisa ao invés de ditar leis ou planos de palacetes como se conhecesse tudo o que precisa ser feito na questão sociopedagógica.

 

Ana Paula Ferreira

Integrante do Coletivo Educação

Texto publicado no Jornal da Cidade - 10/10/2023