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sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Ainda sobre Kevin - ataque em Poços de Caldas

 

  
Imagem do site: https://revistacult.uol.com.br/home/entre-a-barbarie-e-a-civilizacao-o-que-nos-une/

Diante do ataque à escola em Blumenau, em abril deste ano, foi publicado o texto “Precisamos falar sobre Kevin” que refletia sobre o perfil de um personagem de um filme que premedita violência contra os colegas e de como nossa sociedade abastece esses atos à medida que crescem células nazifascistas e intensifica-se a ausência do Estado nas políticas públicas. Em meio a isso, os meios de comunicação de massa propagam o medo e o individualismo.

Seis meses depois, há um novo ataque e, se antes parecia história norte-americana, no Brasil, infelizmente, também tem se mostrado uma triste realidade. Dessa vez, a tragédia foi na cidade de Poços de Caldas.

Kevin pode ser considerado como estereótipo desse cenário, a qual muitas vezes queremos atribuir ao biológico ou apenas à história do indivíduo e às contingências, pois daí, então, pouca ou nenhuma ação nos competiria e seria mais confortável essa justificativa. Porém, nossa subjetividade é marcada por relações que, humanas, fornecem repertórios para conseguir operar e sobreviver no mundo. Nesse sentido, destaca-se aqui como estabelecemos trocas sociais e de consumo.

Desde bebê, há a relação com o outro e cada cultura faz isso à sua maneira. Em muitos grupos indígenas, o parto é normal e isso diminui a dificuldade com aleitamento, a mãe amamenta por mais tempo, já estabelecendo um vínculo com o filho, crianças crescem juntas brincando e interagindo com a natureza sob o olhar de cuidado de todos da tribo. Já em países como Estados Unidos, a licença maternidade não garante pagamento à mãe e por isso é muito comum a preocupação com o retorno ao trabalho e diante do excesso de carga horária trabalhada, pouco tempo sobra para os cuidados dos filhos. No Brasil, a licença maternidade ainda é uma conquista em construção. Notadamente, sabe-se da qualidade das políticas públicas de um país através da forma como lida com as mulheres e as crianças.

Se a redução da jornada de trabalho é uma pauta que não pode ser ignorada, por outro lado também precisamos enquanto família pensar as relações no ambiente privado. Criar uma criança demanda abraço, olho no olho, brincadeiras, ato de ser ninada, de se sentir amada. E isso não é incumbência apenas da mãe e do pai, porque diante de uma rede de apoio de tios, vizinhos, avós ou padrinhos, é possível que a criança receba influências diferentes para seu desenvolvimento. Se é necessária uma parceria com outras pessoas, a efetividade e colaboração entre as instituições públicas também é imprescindível, na defesa dos direitos da criança e do adolescente: Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, escola, Conselho Tutelar, CRAS, CREAS, etc.

Em se tratando das relações comerciais, aprecia-se o consumo que nos anuncia a chance de felicidade. E isso invade o processo educativo-ensinativo nas relações de pais e filhos/filhas, de família. Pais e educadores são instados constantemente a compensar a ausência de tempo com os filhos, comprando mais brinquedos, deixando-os excessivamente no celular e o que era para ser uma relação de afeto ou de estabelecer limites, se transforma numa relação mercadológica, na qual objetos são mais valorizados do que os momentos em família. Não raro, pais e educadores que já foram educados nessa lógica – o desmonte do lugar da tradição já dista mais de cinquenta anos...

É difícil para os adultos dimensionarem o lugar do consumo na modelagem da subjetividade tardomoderna. Quais tipos de filmes, músicas, comida, informações que digerimos? Contribuem para uma cultura de violência ou de paz? Colaboram para a felicidade de outras famílias ou para o sofrimento? E que tal felicidade é essa que tanto se vende, tanto se busca e nunca se acha?

Não há como mensurar a dor de uma família que perde seu filho de maneira tão violenta. É leva-lo para escola, mas não ver voltar. É ver a camisa dobrada na gaveta do guarda-roupa, mas ao mesmo tempo ter a imagem do uniforme ensanguentado. É olhar fotos e saber que não haverá mais aniversários a comemorar, nem abraços, nem selfies fazendo careta. É ir no quarto do filho e achar que o pesadelo vai acabar, mas se deparar com a cama vazia e arrumada.

Imensa solidariedade a essas famílias que vivem esse luto. Merecem acolhimento, carinho e o espaço da fala para que consigam lidar com tanta tristeza. E, pensando em como podemos refletir para criar chances de se evitar futuras dores desse tipo que precisamos enquanto sociedade, lembrar que somos, todos e todas, responsáveis pelas futuras gerações, também responsáveis, por uma formação civilizatória. Ou é isso ou é a barbárie...

 

Ana Paula Ferreira

Supervisora escolar, Mestre em Educação e militante no Coletivo Educação

 

Roberta Ecleide de Oliveira Gomes Kelly, psicanalista, pós doutora em Filosofia da Educação, coordenadora do Nepe - núcleo de estudos em psicanálise e educação


Texto publicado no Jornal da Cidade - 20/10/2023

4 comentários:

  1. Ana Paula minha querida , seus textos são sempre muito pertinentes às questões qie nos afligem. Esse texto , em especial, com o olhar da Dra Roberta nos traz grandes reflexões sobre esse mundo imediatista e metálico que nos rodeia. Metálico, seco e frio . Cabe a nós nos perguntarmos onde está a ternura ? Onde está o amor?

    Um grande abraço.
    Lolly

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    1. Lolly, você fez um comentário tão afetivo de se ler... e às vezes é isso... o mundo é metálico por tantos momentos.... mas metais também são ótimos condutores de calor.... rsrsr...É isso... vamos usar o que está frio e tentar aquecer e ainda usar para levar o calor em outros espaços.

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