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sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

A gente se acostuma: ponto de vista de uma mulher

Imagem do site http://sensecoaching.com.br/

A gente se acostuma a ser interrompida a todo momento e por ser interrompida, vamos deixando de falar.

A gente se acostuma com as vozes de que nos dizem sobre nossa estética, nossos cabelos brancos, nossa barriga para além da calça, nossas marcas de expressão. E ao escutarmos demais, olhamos o espelho como inimigo, nos enchemos de remédios e nunca nos contentamos com o nosso corpo.

A gente se acostuma com os gritos da vizinha que apanha do marido, com o assédio no trabalho ou com as músicas que sexualizam as "novinha". Por acostumarmos, a violência enterra vítimas, mata almas e abusa de meninas.

A gente se acostuma com o fato das mulheres exercerem tantas funções sem remuneração e com a política institucional ser exercida mais por homens. Daí que não refletimos sobre o fato de haver tão poucas creches, asilos, postos de saúde, pois para governos neoliberais, o cuidado da criança, do idoso ou do doente de uma família é obrigação da mulher e não do Estado. 

A gente se acostuma a tirar a louça da mesa, a lavar a roupa, a deixar tudo limpo e organizado, a acompanhar a saúde, higiene e as tarefas escolares dos filhos. E os homens, por acostumarem, acham que essas tarefas são apenas de nós, mulheres. 

A gente se acostuma a tratar o menino como se fosse bebê e a menina como moça e depois ficamos espantados ao ver muitos rapazes imaturos, negligentes no trânsito, na escola, no trabalho, que não assumem a paternidade ou qualquer outra responsabilidade. 

A gente se acostuma a achar que mulher negra é melhor "parideira" ou que seu lugar é apenas no serviço braçal, marginalizado financeiramente e socialmente. Então é esse grupo que sofre mais a violência obstétrica, que tem menos possibilidade de ascensão e se torna invisível nas políticas públicas.

A gente se acostuma com o machismo, ignoramos ou maldizemos o feminismo e enquanto isso, sobrecarregamos as mulheres com um trabalho não pago, aumentamos a pobreza entre o público feminino e as mães solo, permanecemos um país que se destaca entre os que mais assassinam mulheres apenas por serem mulheres. 


Ana Paula Ferreira
Membro do Coletivo Mulheres pela Democracia

Releitura da crônica de Marina Colasanti e publicada no Jornal Mantiqueira e Jornal da Cidade do dia 30/12/2022

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Machismo estrutural e o machismo cotidiano

           

Foto do site El Pais

              Por que na nossa sociedade o machismo é estrutural? Primeiro, vamos pensar na palavra “estrutura” lembrando da imagem de um prédio. Um prédio é construído sob colunas, bases, afundamentos. Pode-se pintar as paredes de outra cor, fazer outro jardim, mudar janelas de posição, mas isso não altera a estrutura do prédio. Ele somente teria outro arcabouço se rompesse com suas bases.

            Ocorre que na sociedade capitalista, a principal desigualdade é a de capital, onde uns poucos detêm os meios de produção e compram a força de trabalho da maioria da população, por preço mínimo. Contudo, para que o poder seja de fato consolidado, os donos do jogo hierarquizaram a sociedade atribuindo privilégios a alguns em detrimento a outros, na perspectiva de “dividir para conquistar”. Assim sendo, ao que seria apenas uma desigualdade entre classes sociais, se somam desigualdades definidas pela cor, raça, gênero, orientação sexual, nacionalidade, e tantas outras questões que diminuem o outro para que sua exploração no mercado seja ainda maior.

            Pois bem, voltemos à ideia do prédio e a questão do machismo estrutural. É fato que a mulher conquistou o direito de votar, estudar, exercer diversos cargos, escolher ou não a vida matrimonial. Entretanto, não alteramos a estrutura, uma vez que a distribuição da riqueza e do poder ainda é concentrada nas mãos masculinas, ao ponto de haver a “feminização da pobreza”, seja porque há uma discriminação salarial entre homens e mulheres, seja porque a mulher exerce diversos trabalhos não remunerados, seja por suas ocupações com pouca rentabilidade.

            De modo a garantir que essa desigualdade permaneça, a cultura, tão entranhada nas relações humanas, nas instituições e nos meios de comunicação, cumpre papel fundamental. É a cultura que validará o machismo cotidiano manifesto em gestos sutis, mesmo entre os que se dizem progressistas ou defensores da igualdade de gênero. Na vida familiar estará por exemplo, na sobrecarga de tarefas domésticas ou relacionadas ao cuidado, estritamente despendidas por mulheres. No ambiente de trabalho se apresenta com homens que alteram o tom de voz, batem em mesas ou apontam os dedos quando o outro funcionário é uma mulher; na vida pública o machismo cotidiano está em tentar silenciar a mulher, depreciando seus discursos ou colocando em xeque seu equilíbrio mental ou sua moral.

            Daí que enquanto não mudamos a estrutura do capitalismo, que se ergue sobre os pilares das desigualdades, nunca eliminaremos o machismo, e sempre haverá o risco de direitos que até então que estavam consolidados, serem questionados. É o caso atual, brutal e extremamente misógino, apresentado com o PL 478/07, chamado de “Estatuto do nascituro”, que prevê a anulação de direito ao aborto em casos de violência sexual, algo até então garantido desde o Código Penal de 1940.

            A aprovação desse Projeto de Lei seria a força do estuprador se estendendo para além do ato violento, corroendo não somente a estrutura psíquica da vítima, como também sua estrutura biológica, fazendo-lhe crescer uma barriga que ela não desejava, uma criança que ela não queria.

            Se é de estruturas que somos feitos, se é de estrutura que a sociedade é elaborada, quais pilares precisaremos desmontar para reerguer outra perspectiva de mundo? Aliás, é interessante perceber que o símbolo arquitetônico do poder, o obelisco, tem formato fálico, vertical, imponente, simbolizando superioridade.

            Creio ser necessário uma engenharia social plantada na horizontalidade, tanto da distribuição do capital econômico, quanto cultural, social, simbólico. É um projeto possível e por isso precisamos ficar atentos e participar na medida do possível da construção das políticas públicas que tanto balizam sobre essa distribuição do que é produzido pela humanidade. Junto a isso que possamos olhar para os machismos do dia a dia, nos repensarmos enquanto seres humanos, para não endossarmos uma violência contra a mulher que já é por si só, tão gritante.

Ana Paula Ferreira

Membro do Coletivo Mulheres Pela Democracia

Texto também publicado no Jornal da Mantiqueira e no Jornal da Cidade do dia 20/12/2022 

sábado, 26 de novembro de 2022

O perigo de fofocas múltiplas

           

Imagem retirada do Jornal da cidade 26/11/2022


             Se há “O perigo da história única” em tempos de modernidade líquida, sob a dificuldade em saber a veracidade das inúmeras informações que nos chegam diariamente, há o perigo de fofocas múltiplas, as quais, em certo sentido, também não deixam de convergir para uma história única.

            A autora Chimamanda nos alerta sobre a hegemonia de uma narrativa que alimenta preconceitos e injustiças sociais uma vez que grupos historicamente desprivilegiados são estigmatizados… negros e latinos são associados ao mundo do crime; indígenas brasileiros a preguiça e as mulheres às pessoas destemperadas e desprovidas de racionalidade para cargos de liderança.

            Além da difamação a grupos socialmente minoritários, pode ocorrer a calúnia ao “outro”, enquanto ser individual. Nesse caso é a fofoca. A régua não é a dos Direitos Humanos, mas pelas concepções de quem as emite. Esse é o termômetro. Assim, se o avaliador é alguém mais moderado, o outro é sempre radical e o mesmo vale para a situação contrária. Não se trata do comentário de quem valoriza a pluralidade, mas de quem quer simbolicamente eliminar o que é diferente.

            Isso porque a fofoca não tem por finalidade possibilitar que o outro reflita, repense e mude até porque “o outro” não é o destinatário da conversa, mas o conteúdo em questão. O outro não é o sujeito, mas sim, objeto e, portanto, é coisificado.

            Todos nós somos suscetíveis a participar da detração, afinal ela possibilita o sentimento que somos dignos de confiança na partilha de informações alheias, independentemente de serem falsas ou verdadeiras. Há um vínculo entre os que trocam os dados, numa sensação de ser superior a quem está sendo caluniado.

            A fofoca é múltipla e atende ao provérbio “quem ouve um conto aumenta um ponto”. Pode ser elaborada no ambiente de trabalho, na família, nos espaços de lazer, religiosos e os mais variados lugares. Se, por um lado, a luz em excesso cega, o excesso de mensagem provoca desinformação. Na mesma analogia, se um deficiente visual precisa de um suporte para se locomover, o cego de informação, terá como crivo a confiança depositada em quem lhe transmite a mensagem. Apoia-se na opinião naqueles e naquelas por quem tem simpatia, consideração e respeito e por isso não é uma comunicação pautada apenas na racionalidade. Há a questão subjetiva, afetiva, emocional.

            Isso pode trazer várias consequências. Dor e sofrimento para quem se percebe caluniado, sem saber como reagir, porque o direito a voz é negado, afinal, não sabe exatamente o que é dito e nem quem diz. No caso de detração política é ainda pior, pois ceifa a democracia, e o valor do debate é substituído por invenções para tirar o foco de propostas, de projetos que poderiam ser construídos.

            Os autores do livro “Como as democracias morrem” analisaram que antes havia uma ditadura bem delimitada que acabava com os processos democráticos e que hoje o “retrocesso democrático começa nas urnas”. Podemos pensar inclusive, que o retrocesso se inicia antes das urnas, uma vez que a mentira ganha mais espaço, seja diante da letargia do Judiciário em agir no combate à propagação de notícias falsas, seja pela ambição de empresas que gerenciam a comunicação e lucram com as boatarias, e até mesmo por conta de uma parcela da população que se exime da responsabilidade de observar, de buscar saber outras versões e simplesmente compartilha mensagens falsas.

            Não é o fato de estar acostumado a fofoca, que ela deve ser naturalizada. Ela não está no nosso DNA, ela é cultural, e como tal, precisa ser repensada. Se queremos um ambiente democrático isso perpassa em falar “com” o outro e não “do” outro. Se queremos um ambiente democrático não significa sair em busca da onde a fofoca surgiu, porque democracia não se faz com perseguição. Por outro lado, também, não podemos fingir que ela não exista, pois isso significaria aceitar que histórias sejam apagadas ou rasgadas por difamações.

            Enquanto educadora, lembro de Paulo Freire quando ressalta sobre nosso inacabamento, já que estamos em constante formação. Isso dá certa leveza, pois há liberdade para assumir falhas, abrindo brecha para disposição em acertar, principalmente quando a reflexão se faz presente para desnaturalizar determinadas posturas. Afinal, se projetamos beleza, justiça, transparência para o mundo, é incoerente persistir com a detração, pois significaria um ataque não apenas às pessoas, mas à democracia e à semente de um novo projeto de sociedade.

 

                                                                 Ana Paula Ferreira, supervisora escolar e mestre em Educação


Texto também publicado no Jornal da Cidade, 26 de novembro de 2022

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Eu no Brasil com as corporações

                                        Imagem: https://www.china-briefing.com/news/understanding-brand-building-in-china-lessons-from-the-rise-of-coca-cola/

             Quando era adolescente caiu na minha mão o livro “Henfil na China – antes da Coca-Cola” e achei o máximo as experiências relatadas pelo cartunista brasileiro no imenso país asiático de economia socialista. Aliás, o próprio título enfatiza esse período ao mencionar que foi num contexto anterior a chegada da grande corporação de refrigerante. Na obra, Henfil fica perplexo quando conversa com médicos que atuavam na zona rural e percebe que ganhavam apenas um pouco a mais do que os camponeses. Não se incomodavam com o fato porque a compreensão era de que todos os trabalhos são importantes e, portanto, todos precisavam de valorização, enquanto uns curam, outros põem comida na mesa dos cidadãos.

            É emblemático o “antes da Coca-Cola” porque quando uma corporação ocupa um espaço, não ocorre apenas a entrada de compra e venda desse produto. É a produção de um modo de agir, de ser e de compreender o mundo. Nesse caso em específico, fica no imaginário a figura da família sentada a mesa farta, entre risos brancos e conversas amigáveis bebendo esse refrigerante. Ou de um papai Noel esbanjando saúde com seus cabelos grisalhos tomando um gole ou outro da bebida.

            Nas prateleiras de supermercado não compramos família, nem amigos, nem felicidade. Por outro lado, o que a propaganda faz é produzir esse combo: compre um refrigerante e ganhe amigos. Os dentes que nos sorriem os personagens do comercial não são os mesmos dentes de quem toma frequentemente essa bebida, nem tampouco a pele lisa e lustrosa do bom velhinho é a mesma pele dos consumidores desse produto.

            A distância entre a propaganda e a realidade não é novidade. E, diga-se de passagem, é tão comum as pessoas saberem o poder corrosivo desse produto que usam para desentupir pias. Porém, os efeitos maléficos não se restringem a saúde humana de problemas com diabetes, ansiedade ou diminuição da quantidade de vitaminas no corpo. Os impactos também são ambientais e sociais.

            De acordo com o documentário “The Corporation” as corporações norte-americanas se fortaleceram em cima da 14ª emenda que as consideraram como se fossem pessoas. Num paralelo de que tipo de pessoas seriam, os documentaristas as comparam com o perfil psicopático, tendo em vista que são incapazes de seguir regras ou de sentirem culpa, não se preocupam com a segurança ou bem-estar alheio, usam da mentira para obter lucros ou vantagens, manifestam desprezo pelo sentimento alheio.

            Não é sem razão que houve denúncia em 2018 de que as nascentes dos rios de Minas Gerais estavam secando com a exploração da água pela empresa ou que ela se destaca na quantidade de lixo plástico nos mares e oceanos. Nega um compromisso com o meio ambiente e usurpa a qualidade de vida de gerações que dependem daquele meio para sua sobrevivência. Não satisfeita ao faturamento sempre crescente, a companhia evitou esforços para ajudar os pequenos empresários em período de pandemia. Isso aconteceu com Maria, uma amiga dona de um pequeno bar de bairro. Devido as quedas de consumo, a proprietária não conseguiu vender a quantidade de refrigerantes disposta no contrato e a consequência foi a retirada do freezer que era cedido para a dona do estabelecimento. Se já era difícil vender em plena pandemia num bar, sem freezer isso ficou mais insustentável. Essa recusa em perceber o outro não é caso isolado. Houve situação da distribuidora da bebida ser condenada pelo Ministério Público por estender a jornada de trabalho em 14 horas.

            Podemos enquanto consumidores comprar de empresas que sejam mais responsáveis com o meio ambiente e com a sociedade, mas isso é apenas um início de pressão social. É necessário que altas fortunas sejam taxadas de maneira a haver mais recursos para as políticas públicas; que haja regulamentações sérias por parte do Estado e que a fiscalização ambiental seja uma constante; que as propagandas de produtos nocivos ao desenvolvimento infantil sejam evitadas em canais destinados às crianças, evitando um consumismo inconsciente; e que leis trabalhistas forneçam direito ao descanso, ao salário digno e a segurança.

            Para isso, não é necessário resgatar uma China que já passou e que também teve seus percalços. Os tempos e as demandas são outras. Por outro lado, se precisamos das empresas, que haja um controle dessas, de modo que possamos ter um ambiente sustentavelmente seguro e uma sociedade com mais condições humanizatórias de desenvolvimento.

 

Ana Paula Ferreira

Supervisora escolar e Mestre em Educação

Texto publicado no Jornal da Cidade 04 de novembro de 2022

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Quem são eles?

 Quem são eles?

Imagem da revista Galileu

             Esse ano tive a alegria de ir a uma peça teatral que dá nome a esse texto e me deparar com uma produção amargamente fantástica. Digo amarga porque o doce às vezes envenena a consciência, a deixa letárgica e precisamos do amargo para nos colocar em pleno funcionamento cognitivo e corporal. Em meio a tanto pensamento socrático voltado ao “Quem sou eu?”, a peça desponta trazendo o olhar para “Quem são eles?”, numa busca de entender o que está acontecendo ao redor, porém, sob os entraves dos aparelhos de controle que limitam a capacidade de pensar e de refletir de maneira séria e ética.

Se por um lado há uma tentativa de sair de um paradigma narcísico e entender o outro, essa visão fica embaçada na medida que o outro é colocado como alguém insuportavelmente distante, diminuindo a noção de alteridade, na qual o outro me afetaria e eu afetaria o outro.

Talvez essa distância realmente aconteça com o modo de vida que estamos escolhendo, nos fechando em bolhas e tirando do caminho todos os indesejáveis, os diferentes, os que nos irritam. E daí que a peça embora fale do outro, também diz sobre nós, afinal, em que medida tentamos dialogar com o diferente? E se não criamos essas pontes, como pretendemos cuidar da democracia?

Democracia é uma criança pequena. Quando li essa ideia num livro da Tiburi achei lindo. E realmente ela é extremamente indefesa e está engatinhando para o que pode ainda se desenvolver. Há aqueles que não colocam apreço a sua beleza e apregoam que há coisas mais importantes, tais como saneamento ou saúde. Contudo, não levam em conta que uma coisa está atrelada a outra. Janine mostrou isso muito bem no livro “A boa política”, no qual aponta que após a abertura democrática o Brasil teve ganhos extraordinários. Segundo o autor, sob o período de ditadura, mais de 80% dos municípios tinham IDH baixo e atualmente esse percentual é menor do que 1%. Cabe reforçar que no período que os militares estiveram no poder, havia quantidade insuficiente de escolas para suprir a demanda, a violência do Estado era acobertada, a desigualdade alta e ainda nos deixaram como herança uma imensa dívida pública. Portanto, ter democracia é condição para avanço de políticas públicas.

Mas, não é isso que a cúpula da fábrica de mentiras quer. Querem destruir a democracia e por isso tentam silenciar professores, jornalistas, artistas, cientistas e qualquer um que busque colocar em xeque as corrupções, falcatruas e negligências. É como se estivéssemos dentro da obra “1984” de George Orwell, sob o Ministério da Verdade, chamado de Miniver. Aliás, esse nome é proposital, para deixar clara a diminuição da verdade, ao ponto de se tornar minúscula.

Sem controle do que seja verdade as pessoas são ludibriadas a acreditar em outras, nas quais depositam sua fé e nem sempre isso é uma decisão sábia. Exemplos disso não faltam, pois a responsável pela pasta Mulher, Família e Direitos Humanos, que já fez diversas declarações homofóbicas, machistas e de ataque às próprias crianças em seus direitos, foi eleita senadora pelo Distrito Federal; o ex-ministro do meio ambiente que representou interesses dos contrabandistas de madeira foi eleito deputado federal por São Paulo e o ex-ministro da saúde que foi investigado por tentar comprar vacinas superfaturadas e que retardou o envio de socorro a Manaus, provocando inúmeras mortes por falta de oxigênio, também ganhou os votos de grande parte do Rio de Janeiro e assumirá mandato de deputado federal.

Não ter uma verdadeira democracia serve a quem quer se apropriar do poder para fins particulares, atendendo ao grande capital, bancos, corporações, latifundiários e pessoas que lucram com a miséria. Daí que façam aclamação a ditadura e defendam da maneira mais vil seus torturadores.

Na obra “Senhor das moscas” o avião que levava crianças que fugiam da guerra foi atingido. Elas aterrizaram numa ilha e para se organizar, ficou acordado que quem estivesse de posse de uma grande concha, falaria. A concha era o símbolo da comunicação, do meio para se atingir a linguagem e as bases democráticas. Quando não há mais diálogo reina a violência, a barbárie e morte, no qual quem ganha são que esperam pela podridão, para se alimentar do que está se decompondo.

Quem são eles, senhores das moscas? Quem são os que ganham com a fome, com o desemprego, com a falência de pequenos empresários? Os donos do capital não são nossos parceiros de luta por uma democracia, afinal seus interesses não estão assentados na preservação da vida. Mas, quem são eles, vizinhos, familiares e colegas que repetem os discursos contrários a defesa dos direitos humanos ou a processos democráticos? Com eles ainda talvez seja possível conversar, dialogar, esperançar, para que evitemos que a concha da comunicação se torne objeto descartável.

 

Ana Paula Ferreira

Supervisora escolar e mestre em Educação 


Texto publicado no Jornal da Cidade, 18 de outubro de 2022. 

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Generosidade e mesquinhez

    

             


                   Generosidade! Palavra às vezes confundida com caridade. Imaginamos sopa aos moradores de rua em época de Natal (afinal a fome só existe nessa época) ou em balas lançadas de cima de uma caminhonete para crianças da periferia, as quais catam o doce que se espalha pelas ruas por onde o cheiro das fezes dos animais se mistura com o lixo espalhado pelas vias públicas. Os doadores, pessoas de coração piedoso, se enchem de alegria, tiram fotos e colocam em suas redes sociais.

            Não. Generosidade não é caridade. Trata-se de doar, de partilhar, mas não é para fins rasteiros de promoção ou de status social. Está ligada a uma percepção de ética planetária, de que tudo está interligado.

Vou dar um exemplo de quem manifestou um olhar pleno sobre o todo. Tio Vicente é marceneiro aposentado, pessoa forte e de coração enorme. Outro dia arrancou com a enxada os matos que nasciam na beirada do meio-fio de todo o quarteirão da rua e antes que eu perguntasse o motivo ele se explicou “olha, se eu deixasse crescer teria mais insetos que poderiam picar o vizinho e se ele ficasse doente, poderia passar doença para dentro da minha casa”.

            Ser generoso é compreender que o bem faz bem, não porque se vai para o céu. Generosidade faz bem porque saímos da condição de parasita, daqueles que apenas consomem o que está posto, a água, ar, solo e alimentos e nos colocamos no papel de quem também quer contribuir para o espaço ambiental e social. É o oposto de mesquinhez.

            Mesquinharia é a perspectiva estreita de querer benefícios apenas para os seus e por isso pouco agrega para a humanidade. É o banqueiro que lucra com alta taxa de juros mesmo sob o endividamento de milhões, a mulher de elite que não quer pagar os direitos trabalhistas da emprega doméstica, é o latifundiário que incendeia matas para produzir pasto, o pastor que ganha propina do Ministério da Educação ou o presidente que nega que a fome exista no Brasil.

            A mesquinharia não está apenas nos gestos, no comportamento humano, mas num campo de pensamento que transfere apenas para o indivíduo a carga de sua inteira responsabilidade. Nesse campo, é como se não existisse o infortúnio. É como se não houvesse o acidente de trabalho que não é coberto pela Previdência Social; ou o desalojamento por falta de pagamento do aluguel, ou a mulher que está sem moradia porque fugiu do marido agressor. É como se tudo se resolvesse na força de vontade do indivíduo e na sua perseverança.

            Fé e força são ótimos combustíveis para ação humana. Mas é necessário mais que isso e daí que entram as políticas públicas. Quando há construção de creches, postos de saúde, universidades, há emprego para o pessoal da construção civil. Assim que construídos esses prédios públicos, há contratação de outros trabalhadores e tudo isso gira a economia e a empregabilidade. Se há política pública séria, de fiscalização e multa, isso diminuí a queimada e consequentemente ocorre um controle do preço do alimento, favorecendo a preservação ambiental como também a alimentação acessível.

            Mesquinhez é umbigo. Generosidade é mão que acolhe, é braço que trabalha, é cabeça que sabe que o mundo é bem mais amplo do que pessoas ligadas pela religião ou tipo sanguíneo. Mesquinhez é motociata enquanto famílias perdem entes queridos para o coronavírus. Generosidade é o trabalho invisível de médicos e enfermeiras que se doaram no atendimento aos enfermos. Mesquinhez é o legado da morte, da não vacina, do deboche, da necropolítica. Generosidade foi a luta incessante para que as pessoas tivessem o que comer.

            Conceição Evaristo já dizia que a periferia e a população pobre e negra sobrevivem porque “combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer”. Só há humanidade porque ainda há preocupação uns com os outros. Aliás, segundo Bauman, nos diferenciamos de outros animais por conta da nossa capacidade de cuidar do próximo e isso foi observado entre os antropólogos diante de um fóssil de criatura humanóide que tinha o osso quebrado nos primeiros anos de vida. O interessante foi que esse ser só veio a falecer na vida adulta. Isso significa que não foi largado ao azar da fratura óssea. Alguém cuidou dele e foi possível que seguisse com o bando. Bando… grupo, coletivo. Abandono… estar fora do bando. Que nossa condição humana de cuidado, de generosidade, nos lembre que é possível um outro país, uma outra sociedade para que consigamos um lugar melhor para viver em comunhão uns com os outros e com o meio ambiente, sem deixar ninguém de fora de seus direitos humanos.

 

Ana Paula Ferreira

Supervisora escolar e mestre em Educação

Texto saiu no Jornal Mantiqueira do dia 14/10 e no Jornal da cidade.
https://www.jornalmantiqueira.com.br/2022/10/14/generosidade-e-mesquinhez/ 

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Árvore da igualdade e caixote da equidade

 É usual para defender uma educação inclusiva, a figura da macieira e três crianças de tamanhos diferentes tentando alcançar seus frutos. Uma delas a estatura já lhe é favorável; a outra, de tamanho mediano, precisa de um caixote para subir e a mais baixinha, só consegue pegar se tiver duas caixas embaixo dos pés. Cabe aqui a analogia com o espaço escolar, no qual o conhecimento seja de fato um direito democratizado e, para tanto, é basilar romper as cascas duras da naturalização da desigualdade e apostar nos nossos estudantes, em suas potencialidades e diversidades.

 Primeiro ponto é deixar claro que igualdade não é oposto de equidade e, em se tratando de tornar o fruto do saber acessível a todos e todas, tanto uma quanto a outra são importantes. Igualdade no direito de uma estrutura escolar com critérios básicos resguardados: merenda, biblioteca, limpeza, profissionais qualificados, materiais didáticos, internet rápida, quantidade reduzida de aluno por sala etc. Equidade no direito de possibilitar que pessoas que estão em alguma situação de desfavorecimento sejam percebidas em suas peculiaridades, como também sejam atendidas por políticas públicas ofertadas pela Rede de Apoio do município, do estado e do país. Assim sendo, por exemplo, a escola não acionará o Conselho Tutelar ou o CRAS para todos os estudantes, mas apenas para os casos específicos, visando que esse grupo vulnerável tenha protegido o direito à educação, a saúde, a moradia dentre outros direitos sociais previstos na Carta Magna brasileira.

 Segundo ponto a ser destacado é que existem agentes públicos, os quais são remunerados com dinheiro público, ou seja, aquele pago por toda a população em impostos, taxas e tributos, que são responsáveis por identificar os grupos vulnerabilizados e invisibilizados, por medir o “tamanho das caixas” e por colocar sob os pés destes a fim de que todos e todas consigam alcançar os frutos, inclusive os mais altos e melhores. Caso haja ausência de “caixas”, que isso seja pleiteado, para as chefias imediatas, conselhos municipais, canais de denúncia e/ou ouvidoria.

 Sendo assim, a equidade é um instrumento para uma sociedade com justiça social, na qual o Estado tem sua responsabilidade e o faz principalmente mediante o trabalho de agentes públicos visando proporcionar oportunidades para quem não teve inicialmente as mesmas condições. Isso dialoga com a frase de Marx quando diz “De cada um, de acordo com suas habilidades, a cada um, de acordo com suas necessidades”. Atualmente, existem inúmeras pessoas cujos direitos previstos na Constituição Federal de 1988 não estão sendo garantidos. Diversos são esses grupos: crianças e adolescentes, população negra, mulheres, população LGBTQIA+, moradores de rua, dentre tantos outros. Por isso, é justo que haja caixotes diferentes para que todos peguem a maçã, afinal, todos contribuem para a manutenção do Estado, como também, destes agentes públicos.

 Por outro lado, a igualdade não deve ser desconsiderada, pois como aceitar que algumas escolas tenham tantos recursos e outras tão poucos? Como achar que é justo que escolas privadas devam ensinar conhecimentos científicos e escolas públicas trabalhar apenas com conteúdo elementares?

 Continuando a metáfora entre árvore e conhecimento, por que junto ao tronco da macieira não se acrescentou uma escada? Afinal, muitas vezes, os melhores frutos estarão longe o bastante da mão humana. E daí vem a provocação: precisa-se de uma educação que não apenas promova equidade, como também igualdade, na distribuição de todos os frutos, em que tanto os de fácil acesso, quanto os mais distantes (abstratos na linguagem pedagógica) sejam compartilhados.

 Portanto, para haver essa condição da igualdade, o investimento na educação pública deve ser tomado como prioridade e o Custo Aluno-Qualidade (CAQ) que é um valor que deve ser ampliado para o desenvolvimento da educação. Prova de que os resultados educacionais do setor público melhoram quando há investimento são os Institutos Federais que atendem alunos de Ensino Médio e contam com uma estrutura de laboratórios e de profissionais que possibilitam que as maçãs que estão nos galhos mais distantes sejam acessadas.

 Embora se saiba que o espaço escolar também reproduz as exclusões da sociedade neoliberal sempre há uma utopia para fugirmos de um presente que parece perpétuo. Numa sociedade em que alguns plantam, mas outros comem; em que há toneladas de produção de alimento e em contrapartida, milhares de pessoas que passam fome; em que a grande maioria trabalha, enquanto uns poucos que lucram com as produções e riquezas; talvez seja difícil imaginar que igualdade e equidade possam existir. Mas, nós educadores, cidadãos ou agentes públicos, precisamos ao menos acreditar no nosso potencial de pequenos agricultores que usam caixotes da equidade e não abrem mão de sementes da árvore da igualdade, pois sabemos que muitas vingarão.

 

Ana Paula Ferreira, mestre em Educação e

Rebeca Frederico Fonseca, bacharel em Direito.

Texto publicado no Jornal da Cidade do dia 22 de setembro de 2022.


sexta-feira, 29 de julho de 2022

Educação e Política


                                        

Embora termos distintos, educação e política possuem muito em comum e compreendê-los na nossa história é possibilitar que percebamos onde estamos e para onde podemos caminhar, os desafios bem como as possibilidades de enfrentamento. Se temos 5 séculos de Brasil, desde a chegada dos portugueses, temos quase 4 séculos de escravidão, que por si só já subtraiu a participação da população negra das decisões políticas e dos bancos escolares. Mulher tampouco estudava e só adquiriu o direito ao voto no início do século XX. Pessoas com deficiência ficavam confinadas em casa e o Brasil só tiveram escolas especiais em meados do século XIX, mesmo assim, para um número extremamente reduzido perante a demanda. O pobre, até 1971, só tinha direito de estudar gratuitamente apenas os 4 primeiros anos e por isso era tão comum na geração dos nossos avós o analfabetismo. Aliás, embora a Proclamação da República tenha sido em 1889, apenas um século depois que todos no Brasil, inclusive os analfabetos, puderam votar.

O que tudo isso indica? Que tanto a política quanto a educação no Brasil foram ferramentas utilizadas para a manutenção de uma desigualdade econômica abismal e, portanto, historicamente segregadoras. Por que isso acontece? Porque de acordo com Althusser, no nosso modelo econômico capitalista, o Estado existe para manter a exploração e a propriedade privada e faz isso tanto pela via da repressão quanto pela inculcação ideológica, a qual ocorre pela escola, igrejas, mídia, ciência e política. 

Ora, se a intenção é a parca participação política para que menos cidadãos possam reivindicar seus direitos políticos, sociais e civis, será de fácil entrada discursos que depreciem a política ou caracterizem o Brasil como fundado no patrimonialismo, diminuindo seu povo como desonestos, caracterizados pelo seu “jeitinho brasileiro”. O sociólogo Jessé Souza enfatiza que o risco disso é que se esconde que as raízes de nossos problemas sociais não estão assentadas na corrupção, mas sobretudo, na desigualdade econômica atrelada ao histórico escravagista. Daí não se ouve na grande mídia programas para tratar da  Auditoria da dívida pública, a precarização do trabalho advinda com a Reforma Trabalhista, a injusta tributação de impostos que incide sobre os mais pobres, a dívida de empresas gigantescas com a Receita Federal, o entreguismo da Lava Jato enfraquecendo as empresas nacionais, são alguns dos pontos que não são colocados em pauta pelas matérias jornalísticas e que, seriam essas e outras medidas a verdadeira corrupção, uma vez que exploram tanto os recursos naturais do Brasil, quanto força de trabalho de seu povo, perante uma elite econômica nacional e internacional.

Mas, de fato o que é política? O que é educação? Usando da filosofia grega que tanto amparou a organização ocidental, vemos em Aristóteles que o ser humano é um ser político, justamente porque ao conviver com outros, necessita negociar, argumentar, convencer e pensar no bem coletivo sobrepondo o bem individual. É claro que na história não faltam exemplos que não foi o que ocorreu. Porém, se há dominação, há resistência e onde houve política feita apenas por homens, brancos, ricos, em Câmaras ou palacetes também houve política feita pelos marginalizados sociais nas ruas, sindicatos ou espaços públicos. De acordo com Marilena Chauí isso isso é luta de classe, a qual não se dá apenas no confronto armado, mas na contraposição ao discurso dominante.

E qual a política que sonhamos? Paulo Freire já dizia que a educação precisava ser progressista, popular e diretiva. E eu deixo essas mesmas palavras para política, principalmente pensando em políticas públicas. Progressista porque é necessário ter uma compreensão cabal da história e de seu processo, de se sentir pertencente a esse movimento de mudança a favor da coletividade, dos oprimidos, dos menos afortunados, de contrapor esse sistema econômico excludente. Popular porque se compreende que o povo é o motor de mudança, que nós não lutamos pelo povo, em que uns pensam e outros devem agir; pelo contrário, nós somos o povo, e, portanto, devemos lutar com o povo, unindo teoria e prática, como parte do movimento de todos preocupados com uma sociedade mais igualitária. Por fim, uma política e uma educação diretivas, no sentido de uma educação que se compromete em resistir, em contrapor, em se repensar a favor de um projeto de dignidade humana.  

Em tempos nos quais vemos o Brasil voltar para o mapa da fome, em que famílias compram osso para as refeições, em que a violência nas periferias e nas aldeias indígenas está cada vez mais cruel e a repressão policial maior, numa necropolítica imensa, falar em ter um plano para país, um sonho de outro tipo de mundo parece impossível. Porém, a direção é importante para isso, para lembrarmos que não podemos ter apenas projeto de vida, é imprescindível um projeto de sociedade, de país, de nação, é preciso lembrar que nós seres humanos não estamos dia a dia apenas para sobreviver dentro de um presente que se repete sem esperança, mas devemos nos agarrar na utopia de outro futuro, e fazer disso nossa força de luta, de mudança, de inclusão social. E isso se dá pela política pública, isso se dá pela educação, desde que ancoradas num ideal humanizatório, progressista, popular e diretivo.

 

Ana Paula Ferreira

Mestre em Educação, supervisora escolar


 Texto publicado no Jornal da Mantiqueira/ Poços de Caldas- MG, do dia 28/07/2022


Sugestões de leitura:
Paulo Freire- Pedagogia da Esperança
Jessé Souza - A elite do atraso
Marilena Chauí - O que é ideologia
Althusser - Aparelhos ideológicos do Estado

terça-feira, 5 de abril de 2022

O preço do amanhã

 


        Quando assisti ao filme que dá nome a esse texto, considerei a sacada do roteiro muito perspicaz, apesar de ser uma produção que nem sempre segura a emoção do telespectador. A história se passa num futuro distópico em que os cidadãos após o 25º aniversário não envelhecem e o tempo serve como moeda de troca. Cada pessoa tem um marcador de anos, dias e horas grudado na pele para identificar quanto que há para gastarem ou pouparem de tempo e isso lhes fornece uma previsão se estão próximos da morte ou não. A cada trabalho realizado há uma recompensa em tempo e a cada produto ou serviço adquirido, há o desconto. Assim, à medida que o salário diminuí ou a inflação sobe, mais as pessoas na ânsia de não morrerem, compram mais créditos de tempo, sob altas taxas de juros. Algumas, não conseguem a mesma sorte e chegam a morrer ainda jovens. Inversamente proporcional, enquanto isso ocorre, grupos privilegiados de milionários, conseguem ganhar com todo esse acúmulo de tempo produzido e possuem uma eternidade.

           Muitos paralelos são possíveis entre essa sinopse e a questão do trabalhador de países periféricos como o Brasil, principalmente após ataques sistemáticos por aqueles que planejaram o Golpe de 2016. Dois abalos sísmicos profundos em nossos tempos de vida foram a aprovação da Reforma Trabalhista e da Previdência, que abriram brechas para as terceirizações e para precarizações. Exemplifico... um vendedor que contava com o salário mais os bônus por venda, agora é possível que ganhe apenas por produtividade e o valor estabelecido entre trabalhador e empresa vale mais do que constava na CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas). Em se tratando da Previdência é o retardo do tempo em se aposentar e com salários que podem a não chegar a 100% da contribuição, haja vista que o cálculo incide pelo total de tempo de contribuição.       

É a lógica da produtividade sendo imposta de maneira cruel: não importa se você está doente, se há problemas de ordem emocional ou social, se você não produzir, é uma mercadoria altamente dispensável. Não importa se não tem mais forças suficientes para o trabalho, você deve ter 35 anos de contribuição para se aposentar com o valor integral. Se formos comparar em termos metafóricos com o filme, ao não produzir você está fadado a morte prematura, pois sem renda, não terá recursos para custear sua subsistência mais elementar. Por outro lado, para sobreviver você precisará trabalhar bem mais, ter menos tempo para sua saúde física e mental, possuir menos tempo para lazer ou para a família e tudo isso também impactará no seu tempo de vida. Não é sem razão que a classe social privilegiada tem o desfrute duplo do tempo: primeiro porque há mais chance do tempo livre e segundo porque o padrão de vida é tão elevado, de alimentos ou de serviços com saúde, que isso prorroga as possibilidades de acumulo de anos de vida.  

     Em termos de trabalhador público estamos vivendo o mesmo impacto de precarização, independentemente de ser governo federal, estadual ou municipal e todos os demais que se intitulam “técnicos”, jeito suavizado para dizer “neoliberal”. Sob a semântica empresarial, falam de austeridade, de poupar para pagar dívidas e isso às custas do tempo e do trabalho exaustivo do servidor. No caso do governo estadual observa-se uma perversidade ainda maior em se tratando dos trabalhadores da educação. Isso porque os trabalhadores estão a 5 anos sem receber nem ao menos o reajuste inflacionário, o que os empurra para a necessidade de trabalhar dois ou três períodos para minimamente pagarem suas dívidas, o que impacta de maneira descomunal no desempenho e na qualidade de vida. Ironicamente há uma verba própria para pagamento do servidor em educação que é o FUNDEB (Fundo de Desenvolvimento Educação Básica), ou a obrigatoriedade de se gastar 25% dos orçamentos com Educação, valores esses que não estão sendo aplicados na sua totalidade. Bem... até aqui a história é similar a vivência de todos que possuem seus salários subtraídos por governos que não pagam o que deveriam, mesmo havendo verbas específicas para isso.

            A crueldade vai além do não pagamento. Lembrando que um dos impostos do FUNDEB é o IPVA, esse fundo pode ter queda na arrecadação, pois o governador já sinalizou uma isenção para o grupo Localiza e outras empresas de locação de carro, numa redução de 4% para 1%. Ao fazer essa isenção, o valor arrecadado para o FUNDEB diminuí e consequentemente pode diminuir o montante para se pagar os professores.

            É assim que funciona a lógica neoliberal, de escolhas “técnicas”, a favor da manutenção da vida econômica de empresas, de bilionários que ganham com a riqueza que poderia ser devidamente distribuída aos trabalhadores. Enquanto isso, somos sacados não apenas do dinheiro, de um piso salarial garantido por lei (lei nacional de 2008 e estadual de 2015), como também estamos pagando o valor do hoje, do arroz, do óleo e do combustível, e sem termos a previsão se de fato estaremos em condições dignas de custear o preço do amanhã.

 (Texto publicado no Jornal da Cidade 05/04/2022 e no Jornal da Mantiqueira 06/04/2022)

Ana Paula Ferreira

Educadora e grevista

terça-feira, 22 de março de 2022

A mulher e o sistema capitalista um diálogo das obras Calibã e a Bruxa e O Conto da Aia

 



  • Resumo

O presente artigo faz um diálogo entre duas obras, uma teórica, de Silvia Federici (2017), e outra literária, de Margaret Atwood (2017), mostrando os caminhos que o capitalismo define para a mulher, entre o extermínio e o controle de corpos. Para esse comparativo, há um breve histórico do capitalismo e sua problematização em relação a gênero.
PALAVRAS-CHAVE: Capitalismo. Mulheres. Igreja. Estado. Violências.

Link     https://seer.ufu.br/index.php/neguem/article/view/65098

  • Ana Paula Ferreira
  • Fernanda Mendes Resende
  • Maria Cláudia da C. F. S. D’A. de Andrades

DOI: 

https://doi.org/10.14393/CEF-v34n2-2021-11

domingo, 20 de março de 2022

Greve: potencial educativo

           


            Em 2006, quando li o livro “Professora sim, tia não!” ficou em mim que ensinamos pelo exemplo da greve, sobre democracia, direitos trabalhistas e tantas outras coisas. O que eu não sabia na época e só fui entender mais tarde é que não ensinamos apenas, pois a greve tem um enorme potencial pedagógico, e professores em greve também aprendem. E o que o ato de fazer greve nos ensina? Poderia enumerar diversas questões, mas vou sinalizar cinco: clareza de quem é o destinatário da greve, o protagonismo, o esperançar, o compromisso com o coletivo e a consciência de classe.

Quando buscamos que nossos estudantes tenham um olhar crítico, para além do que está no texto, de perceberem com clareza a origem das desigualdades e os sensibilizamos para que saiam da condição de inércia para a de denúncia, estamos possibilitando uma educação que fortaleça a participação cidadã, a vida em coletividade, a preocupação com a defesa dos direitos humanos e de uma sociedade mais justa e sustentável. Porém, o papel dos professores engajados com a vida pública, está muito além em tacar a bola para as novas gerações resolverem problemas dos mais velhos.

Daí que ao escolher pela participação no movimento grevista o professor abre duas vantagens para ter sua demanda atendida. Primeiro porque traz o incômodo da greve, de fazer com que mais pessoas saibam e discutam o problema. Segundo porque terá mais tempo disponível para se engajar nas ações grevistas, haja vista que sem elas, corre-se o risco de o movimento grevista sucumbir e até mesmo não adquirir o apoio da sociedade, tão necessário em tempos de perseguição à funcionalismo público. As atividades são várias, sejam elas de confecção de cartazes, panfletagem, textos para jornais, cartas à deputados, conversa com a comunidade, visita às escolas que não aderiram, manifestações. Essa vida participativa ensina que o ato de educar vai além da escola, isso porque os donos do poder não estão sentados nos bancos escolares e devem ser esses os destinatários reais da nossa indignação.

Toda essa atuação orgânica no movimento nos abre outro aprendizado. Saímos da condição de assujeitados e nos tornamos sujeitos da história, daqueles que avaliam o contexto e analisam que é possível uma intervenção enquanto grupo, categoria, classe social e não os que apenas vão cumprindo a rotina, extremamente centrados no imediato.  Outro ensinamento é a sensação de esperança vinda pelas nossas mãos, e daí fugimos da condição do fatalismo histórico, do “não adianta de nada”. Exemplos disso não faltam, pois se hoje temos plano de carreira, concurso, obrigação de pagamento do piso salarial (mesmo que não cumprido), se deve ao fato de inúmeros professores e professoras terem deixado esse legado. Às vezes não conseguimos conquistas tal qual nossa esperança desejava, mas podemos ao menos levantar um muro simbólico contra o trator neoliberal que tudo quer devastar e assim, conseguimos barrar algumas destruições.

Por fim, a greve participativa nos convida a olhar as coisas para além do individualismo, tão presente nesse mundo do consumo, em que o indivíduo é posto acima do coletivo. Não significa que não devamos ter prioridades também com nossa saúde, nossos familiares, nossa vida pessoal. É comum em determinadas circunstâncias colocarmos o peso da balança maior na vida privada ou na vida pública e aliás, e fazer esse movimento de reflexão é saudável. Ninguém pede que o grevista tenha a mesma disciplina de militantes tal como foi o Marighella. Mas, a participação mostra força, evita sobrecarregar os companheiros que estão na ativa, permite que olhemos para o conjunto, para o contexto sócio-político, e nos esforcemos em nos doar em alguma proporção para essa história.  

Encerro com a questão da consciência de classe lembrando da primorosa peça de teatro “Eles não usam black tie”, que sob o pano de fundo da greve, mostra a relação conflituosa entre os que aderem ou não ao movimento. No final da peça, de modo bastante metafórico, a música de um sambista do morro é reconhecida no rádio, porém, os moradores identificam que a letra recebe o nome de outro músico. A produção mais valiosa de um artista foi roubada, nomeando outra pessoa no lugar. Trazendo para nossa atualidade, podemos comparar com o que produzimos... nosso trabalho acaba sendo roubado cada vez que desempenhamos zelosamente nossas funções, mas quem ganha o crédito é o governo, o qual nos retira o reconhecimento social e o reconhecimento financeiro. Somos saqueados anualmente, por um valor que deveríamos receber e não recebemos (uma defasagem de mais 50%), e enquanto isso, em contraposição, em 2019 o governo abriu mão de mais de 6 bilhões em impostos para diversas empresas.

Portanto, participar da greve, embora cansativo e extenuante, é um movimento que nos traz compensações de quem vive, participa, interage, aprende. Vale a pena seguir na luta.  

Ana Paula Ferreira - Educadora e grevista

Texto publicado no Jornal da Cidade, 18 de março de 2022 



quinta-feira, 17 de março de 2022

Passado, presente e futuro: sempre greve?


           

Foto: Professora de Arte Andrea Dalva (assembleia em BH 16/06/2022)

            
Onde a greve começa e onde ela termina? Ela termina? Ou termina para depois já começar outra? Como a greve nos atravessa? Ano de 1999. Esse foi meu último ano da Educação Básica e novamente uma greve foi deflagrada em Minas Gerais. Lembro da professora de Língua Portuguesa nos falando em aula com muita propriedade sobre gramática, literatura, vestibular e também da greve. Ela me chamava atenção por dois motivos. Primeiro porque ela tinha um pé calcado no futuro e outro no presente, e assim nos empurrava para que pensássemos na vida do pós Ensino Médio, mas sem que nos distanciássemos da leitura crítica do cotidiano, da luta diária, dos ataques que eram cometidos contra os trabalhadores. O segundo ponto de destaque era porque ela se mostrava uma imensa defensora do espaço público. Ela frisava que fazia questão que seu filho estudasse no ensino público e que ela, docente em duas redes diferentes, buscava trazer o mesmo plano de aula elaborado para escola privada para ser desenvolvido por seus alunos da escola David Campista. Sua prática antecedia o discurso e, portanto, não media esforços para que visitássemos livrarias, teatros, Instituto Moreira Salles, cinema. Ela dizia que os espaços devem ser democratizados e o acesso deve ser para todos.

            Hoje, ano de 2022, também sou educadora na rede pública, também estou em greve e também defendo o espaço público como forma de possibilitar que toda a riqueza simbólica produzida seja distribuída e não concentrada em apenas uma determinada classe social. Sei que muitos professores e professoras progressistas também se engajam nesse sentido, e até evitam a greve para que os estudantes não fiquem dias sem acesso ao conteúdo. Daí que volto na minha experiência escolar. A professora não se furtou de sua obrigação docente, de nos ensinar e nos ajudar na nossa formação linguística, literária, cidadã e de pensar em seus alunos. Por outro lado, também não abandonou seus colegas sozinhos no front da greve, nem se aconchegou no seu lar, enquanto outros iam para as ruas, assembleias ou manifestações.

Findada a greve, podemos traduzir novamente nossa preocupação com os estudantes, repondo com qualidade os dias paralisados, pois que espécie de defensores da escola pública que seríamos se defendêssemos apenas nossos salários, nossos direitos, nossas questões? É possível isso da nossa parte. Podemos continuar pensando no imediato, nos nossos estudantes e todas as suas demandas. Porém, é importante também uma preocupação com o médio e longo prazo, com questões que vão afetar a vida de todos, e, nesse momento, pensar sobre os serviços públicos é inadiável.

            Isso porque esse ano é específico. Por ser ano de eleição, os políticos observam se perdem ou não o poder perante o eleitorado. Portanto, é importante que outras escolas somem na luta, pois vão olhar números: quantos alunos estão sem aula, quantos professores estão em greve, quanto de aprovação se está perdendo. Na hora que o perfil autoritário perde o controle, o que faz? Aciona a força judiciária para suspender a greve e começa a atacar o funcionalismo público, como se o fato de possuirmos a estabilidade, tivéssemos que aceitar metade do que é o piso salarial.   

A educação não pede que o governo faça enormes esforços, até porque temos verba vinculada que é o FUNDEB, um fundo que provê nosso pagamento e que teve um crescimento de quase 40% desde 2019. Contudo, mesmo que a receita tenha aumentado, o governo mantém a política de onerar milhares de servidores da educação, cujo salário não acompanha a inflação. Além disso, foram 6,6 bilhões de recursos da educação que não foram investidos, e enquanto isso, faz 5 anos que os salários estão congelados.

O governador é um patrão temporário. Não temos o salário dele, nem tampouco seu poder político, nem a influência na mídia. Mas, uma hora ele sairá e nós ficaremos. Aliás, talvez por saber dessa condição do funcionalismo público e de nosso potencial de contraponto, que o atual governo esteja pressionando a Assembleia pela aprovação do Regime de Recuperação Fiscal, que nada mais é do que um pacote de ações que nos massacram enquanto trabalhadores. Nesse Regime há previsão de suspender o repasse do piso salarial, não haverá férias-prêmio, nem promoção por escolaridade, nem progressão na carreira por 9 anos. Concursos e salários ficarão congelados. Essa brutal Regime afeta trabalhador público, mas impacta também todos moradores da zona rural ou da zona urbana, que dependem da escola, da saúde ou da segurança pública, pois os cidadãos terão que conviver com uma precarização dos serviços, seja pela falta de servidor público, afinal não haverá concurso e a folha de pagamento ficará contida, ou pelas privatizações previstas que acabam por aumentar o valor dos serviços.

A greve existia na nossa infância, existiu na nossa adolescência e permeia nossa vida adulta. Existe diante da ineficiência do governo em conversar com a categoria. Pode ser que tenhamos a ideia de que elas são eternas, tal como o castigo de Sísifo que empurrava uma grande rocha até o topo de um monte e assim que a pedra caí, o processo se inicia tudo novamente. Mas, não é. Embora sejam cíclicas, não são iguais, nem nos motivos, nem na historicidade e por isso que com elas já avançamos em direitos e em outras, apenas barramos para que a devastação não fosse maior. Daí a importância de aprendermos com essas experiências, porque se defendemos a escola pública, não permitir a aprovação do Regime de Recuperação Fiscal é um dos caminhos urgentes.

Ana Paula Ferreira

Educadora e grevista

Texto publicado no Jornal da Cidade, 17 de março de 2022 e no Jornal da Mantiqueira 18 de março.
https://www.jornalmantiqueira.com.br/2022/03/18/passado-presente-e-futuro-sempre-greve/