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sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Eu no Brasil com as corporações

                                        Imagem: https://www.china-briefing.com/news/understanding-brand-building-in-china-lessons-from-the-rise-of-coca-cola/

             Quando era adolescente caiu na minha mão o livro “Henfil na China – antes da Coca-Cola” e achei o máximo as experiências relatadas pelo cartunista brasileiro no imenso país asiático de economia socialista. Aliás, o próprio título enfatiza esse período ao mencionar que foi num contexto anterior a chegada da grande corporação de refrigerante. Na obra, Henfil fica perplexo quando conversa com médicos que atuavam na zona rural e percebe que ganhavam apenas um pouco a mais do que os camponeses. Não se incomodavam com o fato porque a compreensão era de que todos os trabalhos são importantes e, portanto, todos precisavam de valorização, enquanto uns curam, outros põem comida na mesa dos cidadãos.

            É emblemático o “antes da Coca-Cola” porque quando uma corporação ocupa um espaço, não ocorre apenas a entrada de compra e venda desse produto. É a produção de um modo de agir, de ser e de compreender o mundo. Nesse caso em específico, fica no imaginário a figura da família sentada a mesa farta, entre risos brancos e conversas amigáveis bebendo esse refrigerante. Ou de um papai Noel esbanjando saúde com seus cabelos grisalhos tomando um gole ou outro da bebida.

            Nas prateleiras de supermercado não compramos família, nem amigos, nem felicidade. Por outro lado, o que a propaganda faz é produzir esse combo: compre um refrigerante e ganhe amigos. Os dentes que nos sorriem os personagens do comercial não são os mesmos dentes de quem toma frequentemente essa bebida, nem tampouco a pele lisa e lustrosa do bom velhinho é a mesma pele dos consumidores desse produto.

            A distância entre a propaganda e a realidade não é novidade. E, diga-se de passagem, é tão comum as pessoas saberem o poder corrosivo desse produto que usam para desentupir pias. Porém, os efeitos maléficos não se restringem a saúde humana de problemas com diabetes, ansiedade ou diminuição da quantidade de vitaminas no corpo. Os impactos também são ambientais e sociais.

            De acordo com o documentário “The Corporation” as corporações norte-americanas se fortaleceram em cima da 14ª emenda que as consideraram como se fossem pessoas. Num paralelo de que tipo de pessoas seriam, os documentaristas as comparam com o perfil psicopático, tendo em vista que são incapazes de seguir regras ou de sentirem culpa, não se preocupam com a segurança ou bem-estar alheio, usam da mentira para obter lucros ou vantagens, manifestam desprezo pelo sentimento alheio.

            Não é sem razão que houve denúncia em 2018 de que as nascentes dos rios de Minas Gerais estavam secando com a exploração da água pela empresa ou que ela se destaca na quantidade de lixo plástico nos mares e oceanos. Nega um compromisso com o meio ambiente e usurpa a qualidade de vida de gerações que dependem daquele meio para sua sobrevivência. Não satisfeita ao faturamento sempre crescente, a companhia evitou esforços para ajudar os pequenos empresários em período de pandemia. Isso aconteceu com Maria, uma amiga dona de um pequeno bar de bairro. Devido as quedas de consumo, a proprietária não conseguiu vender a quantidade de refrigerantes disposta no contrato e a consequência foi a retirada do freezer que era cedido para a dona do estabelecimento. Se já era difícil vender em plena pandemia num bar, sem freezer isso ficou mais insustentável. Essa recusa em perceber o outro não é caso isolado. Houve situação da distribuidora da bebida ser condenada pelo Ministério Público por estender a jornada de trabalho em 14 horas.

            Podemos enquanto consumidores comprar de empresas que sejam mais responsáveis com o meio ambiente e com a sociedade, mas isso é apenas um início de pressão social. É necessário que altas fortunas sejam taxadas de maneira a haver mais recursos para as políticas públicas; que haja regulamentações sérias por parte do Estado e que a fiscalização ambiental seja uma constante; que as propagandas de produtos nocivos ao desenvolvimento infantil sejam evitadas em canais destinados às crianças, evitando um consumismo inconsciente; e que leis trabalhistas forneçam direito ao descanso, ao salário digno e a segurança.

            Para isso, não é necessário resgatar uma China que já passou e que também teve seus percalços. Os tempos e as demandas são outras. Por outro lado, se precisamos das empresas, que haja um controle dessas, de modo que possamos ter um ambiente sustentavelmente seguro e uma sociedade com mais condições humanizatórias de desenvolvimento.

 

Ana Paula Ferreira

Supervisora escolar e Mestre em Educação

Texto publicado no Jornal da Cidade 04 de novembro de 2022

Um comentário:

  1. A educação tem que ser crítica a partir da primeira infância.

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