Não. Generosidade não é caridade.
Trata-se de doar, de partilhar, mas não é para fins rasteiros de promoção ou de
status social. Está ligada a uma percepção de ética planetária, de que tudo
está interligado.
Vou dar um exemplo de quem manifestou um olhar pleno sobre
o todo. Tio Vicente é marceneiro aposentado, pessoa forte e de coração enorme.
Outro dia arrancou com a enxada os matos que nasciam na beirada do meio-fio de
todo o quarteirão da rua e antes que eu perguntasse o motivo ele se explicou
“olha, se eu deixasse crescer teria mais insetos que poderiam picar o vizinho e
se ele ficasse doente, poderia passar doença para dentro da minha casa”.
Ser generoso é compreender que o bem
faz bem, não porque se vai para o céu. Generosidade faz bem porque saímos da
condição de parasita, daqueles que apenas consomem o que está posto, a água,
ar, solo e alimentos e nos colocamos no papel de quem também quer contribuir
para o espaço ambiental e social. É o oposto de mesquinhez.
Mesquinharia é a perspectiva
estreita de querer benefícios apenas para os seus e por isso pouco agrega para
a humanidade. É o banqueiro que lucra com alta taxa de juros mesmo sob o
endividamento de milhões, a mulher de elite que não quer pagar os direitos
trabalhistas da emprega doméstica, é o latifundiário que incendeia matas para
produzir pasto, o pastor que ganha propina do Ministério da Educação ou o
presidente que nega que a fome exista no Brasil.
A mesquinharia não está apenas nos
gestos, no comportamento humano, mas num campo de pensamento que transfere
apenas para o indivíduo a carga de sua inteira responsabilidade. Nesse campo, é
como se não existisse o infortúnio. É como se não houvesse o acidente de
trabalho que não é coberto pela Previdência Social; ou o desalojamento por
falta de pagamento do aluguel, ou a mulher que está sem moradia porque fugiu do
marido agressor. É como se tudo se resolvesse na força de vontade do indivíduo
e na sua perseverança.
Fé e força são ótimos combustíveis
para ação humana. Mas é necessário mais que isso e daí que entram as políticas
públicas. Quando há construção de creches, postos de saúde, universidades, há
emprego para o pessoal da construção civil. Assim que construídos esses prédios
públicos, há contratação de outros trabalhadores e tudo isso gira a economia e
a empregabilidade. Se há política pública séria, de fiscalização e multa, isso
diminuí a queimada e consequentemente ocorre um controle do preço do alimento,
favorecendo a preservação ambiental como também a alimentação acessível.
Mesquinhez é umbigo. Generosidade é
mão que acolhe, é braço que trabalha, é cabeça que sabe que o mundo é bem mais
amplo do que pessoas ligadas pela religião ou tipo sanguíneo. Mesquinhez é
motociata enquanto famílias perdem entes queridos para o coronavírus.
Generosidade é o trabalho invisível de médicos e enfermeiras que se doaram no
atendimento aos enfermos. Mesquinhez é o legado da morte, da não vacina, do
deboche, da necropolítica. Generosidade foi a luta incessante para que as
pessoas tivessem o que comer.
Conceição Evaristo já dizia que a
periferia e a população pobre e negra sobrevivem porque “combinaram de nos
matar, mas nós combinamos de não morrer”. Só há humanidade porque ainda há
preocupação uns com os outros. Aliás, segundo Bauman, nos diferenciamos de
outros animais por conta da nossa capacidade de cuidar do próximo e isso foi
observado entre os antropólogos diante de um fóssil de criatura humanóide que
tinha o osso quebrado nos primeiros anos de vida. O interessante foi que esse
ser só veio a falecer na vida adulta. Isso significa que não foi largado ao
azar da fratura óssea. Alguém cuidou dele e foi possível que seguisse com o
bando. Bando… grupo, coletivo. Abandono… estar fora do bando. Que nossa
condição humana de cuidado, de generosidade, nos lembre que é possível um outro
país, uma outra sociedade para que consigamos um lugar melhor para viver em
comunhão uns com os outros e com o meio ambiente, sem deixar ninguém de fora de
seus direitos humanos.
Ana Paula Ferreira
Supervisora escolar e
mestre em Educação
https://www.jornalmantiqueira.com.br/2022/10/14/generosidade-e-mesquinhez/
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