A
expressão “canto da sereia” é comum para designar algo encantador, sedutor, num
ritmo musical que enfeitiça, no qual o ouvinte fica tão inebriado ao ponto de
não se dar conta que está se afogando, numa morte certeira. Ulisses, o grande
herói grego de Homero, sabia que em determinado local, tripulantes dos navios
morriam ao ouvir a melodia das sereias, e muito astuto, pediu para seus
guerreiros colocarem cera nos ouvidos para evitar que fossem capturados pelo
som. Entretanto, na sua curiosidade, mandou que o amarrassem no mastro da
embarcação para que pudesse escutar, sem correr o risco de se jogar em
alto-mar.
Há diversos cantos da sereia que
também nos seduzem. Um deles, foi o discurso do MEC de anos anteriores e de
empresas da área da educação para capturar mentes e corações na aceitação do
Novo Ensino Médio, estipulado via Medida Provisória em 2016 e oficializado em
2017 por lei federal. Aliás, um parêntesis. Se as mudanças eram tão positivas
assim para os estudantes, porque usar de um procedimento arbitrário, como
Medida Provisória? Por que fazer uma alteração curricular de tal peso com um
governo de legitimidade duvidosa, que foi o Michel Temer? Pois bem… então onde
está o canto da sereia?
Nessa
nova configuração, há aumento da carga horária, para que estudantes tenham mais
acesso a educação integral e em período integral. Ora, se ficarão mais tempo na
unidade, haverá necessidade de mais recurso para alimentação para duas
refeições, mais contratação de professores, mais investimento em laboratórios de
informática ou de ciências no desenvolvimento de metodologias ativas. Daí vem a
pergunta, de como
é possível aumentar o tempo na escola sem aumentar gastos? Isso porque no mesmo
período que Michel Temer aprovou o Novo Ensino Médio, também assinou a Lei de
teto de gastos, que congela por 20 anos os recursos em educação.
O canto da sereia embutido aí é que
o problema da educação não é de falta de recurso, mas de gestão, o famoso
slogan “fazer mais com menos”. A comunidade escolar não conseguirá aumentar o número
de salas com festas juninas. Nenhum professor conseguirá saber das demandas de
todos alunos, de suas características peculiares dando aula em 40 turmas, cada
uma com mais de trinta alunos. Não se trata apenas de doação, de compromisso, é
questão de política pública, de um Estado cumpridor com suas obrigações
constitucionais, para que o funcionário público desempenhe suas funções com
qualidade.
A ideia propagada com o Novo Ensino
Médio é de algo cativante, no qual o estudante pode escolher o que cursar, de
acordo com seus interesses. Falam de autonomia na decisão sobre o itinerário,
porém, não avisam que mais de 50% dos municípios possuem apenas uma escola de
Ensino Médio, sem a estrutura adequada para ofertar os 4 itinerários de modo
que haja a escolha estudantil. Qual seria a alternativa? A família se mudar
para outra cidade de modo que o jovem conseguisse acesso? Além disso, é uma
realidade educacional que faltam professores, espaço físico, laboratórios e,
por isso, nem sempre a escola conseguirá atender as áreas de interesse dos
estudantes.
Outro canto da sereia reproduzido
pelos burocratas da educação é que o Ensino Médio anterior era chato,
desinteressante e que isso causava evasão. Quem trabalha nessa etapa do ensino
sabe o quanto é falacioso isso, pois um dos maiores motivos é a necessidade de
jovens em se inserirem no mundo do trabalho, em garantir um dinheiro no final
do mês, mesmo que para isso, se subordinem a trabalhos precarizados. É a
realidade de inúmeros estudantes em Poços de Caldas, que são garçons,
atendentes, recreadores em hotéis de luxo da cidade, que além de não fazerem o
registro em carteira de trabalho, cobram mais carga horária, e,
consequentemente acabam levando essa juventude a abandonar a escola. Ora, por
que em vez de se mudar o currículo, não há fiscalização desses empregos? Por
que não há geração de renda suficiente para as famílias brasileiras, de modo a
não permitir que jovens se antecipem em serviços que os levarão a desistir dos
estudos?
Diante do Novo Ensino Médio, as aulas serão mais dinâmicas, sob mais metodologia ativa e novos componentes curriculares – é o que diz a propaganda. Se será tão bom assim, por que a família de um apresentador global, que se mostrou a favor dessa mudança, não coloca os filhos no Novo Ensino Médio na rede pública de ensino? A verdade escondida nessa capa é que haverá uma distância ainda maior entre as redes pública e privada de ensino, pois enquanto a primeira estará suscetível ao destino de carga horária para ensinar a fazer bolo de pote ou brigadeiro, o ensino da rede privada tende a caminhar para reforçar o modelo propedêutico, preparando para o acesso ao Ensino Superior.
O discurso é de melhorar o ensino
público. Mas, sem investimento no valor do Custo Aluno Qualidade (CAQ), sem a
formação de qualidade dos professores, sem um currículo que realmente valorize
o saber, o Novo Ensino Médio será um canto da sereia com vistas a afogar os
tripulantes de navios, preferencialmente os de escolas públicas. Não se trata
de não escutar o canto, nem de ficar paralisado perante ele, mas de entender
seus engodos, e nos articularmos enquanto sociedade para a sua revogação,
enquanto há possibilidade democrática para tal.
Ana Paula Ferreira
Supervisora da
rede estadual de ensino
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