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quinta-feira, 4 de maio de 2023

Ensino Médio e o canto da sereia

 


            A expressão “canto da sereia” é comum para designar algo encantador, sedutor, num ritmo musical que enfeitiça, no qual o ouvinte fica tão inebriado ao ponto de não se dar conta que está se afogando, numa morte certeira. Ulisses, o grande herói grego de Homero, sabia que em determinado local, tripulantes dos navios morriam ao ouvir a melodia das sereias, e muito astuto, pediu para seus guerreiros colocarem cera nos ouvidos para evitar que fossem capturados pelo som. Entretanto, na sua curiosidade, mandou que o amarrassem no mastro da embarcação para que pudesse escutar, sem correr o risco de se jogar em alto-mar.

            Há diversos cantos da sereia que também nos seduzem. Um deles, foi o discurso do MEC de anos anteriores e de empresas da área da educação para capturar mentes e corações na aceitação do Novo Ensino Médio, estipulado via Medida Provisória em 2016 e oficializado em 2017 por lei federal. Aliás, um parêntesis. Se as mudanças eram tão positivas assim para os estudantes, porque usar de um procedimento arbitrário, como Medida Provisória? Por que fazer uma alteração curricular de tal peso com um governo de legitimidade duvidosa, que foi o Michel Temer? Pois bem… então onde está o canto da sereia?

            Nessa nova configuração, há aumento da carga horária, para que estudantes tenham mais acesso a educação integral e em período integral. Ora, se ficarão mais tempo na unidade, haverá necessidade de mais recurso para alimentação para duas refeições, mais contratação de professores, mais investimento em laboratórios de informática ou de ciências no desenvolvimento de metodologias ativas. Daí vem a pergunta, de como é possível aumentar o tempo na escola sem aumentar gastos? Isso porque no mesmo período que Michel Temer aprovou o Novo Ensino Médio, também assinou a Lei de teto de gastos, que congela por 20 anos os recursos em educação.

            O canto da sereia embutido aí é que o problema da educação não é de falta de recurso, mas de gestão, o famoso slogan “fazer mais com menos”. A comunidade escolar não conseguirá aumentar o número de salas com festas juninas. Nenhum professor conseguirá saber das demandas de todos alunos, de suas características peculiares dando aula em 40 turmas, cada uma com mais de trinta alunos. Não se trata apenas de doação, de compromisso, é questão de política pública, de um Estado cumpridor com suas obrigações constitucionais, para que o funcionário público desempenhe suas funções com qualidade.

            A ideia propagada com o Novo Ensino Médio é de algo cativante, no qual o estudante pode escolher o que cursar, de acordo com seus interesses. Falam de autonomia na decisão sobre o itinerário, porém, não avisam que mais de 50% dos municípios possuem apenas uma escola de Ensino Médio, sem a estrutura adequada para ofertar os 4 itinerários de modo que haja a escolha estudantil. Qual seria a alternativa? A família se mudar para outra cidade de modo que o jovem conseguisse acesso? Além disso, é uma realidade educacional que faltam professores, espaço físico, laboratórios e, por isso, nem sempre a escola conseguirá atender as áreas de interesse dos estudantes.

            Outro canto da sereia reproduzido pelos burocratas da educação é que o Ensino Médio anterior era chato, desinteressante e que isso causava evasão. Quem trabalha nessa etapa do ensino sabe o quanto é falacioso isso, pois um dos maiores motivos é a necessidade de jovens em se inserirem no mundo do trabalho, em garantir um dinheiro no final do mês, mesmo que para isso, se subordinem a trabalhos precarizados. É a realidade de inúmeros estudantes em Poços de Caldas, que são garçons, atendentes, recreadores em hotéis de luxo da cidade, que além de não fazerem o registro em carteira de trabalho, cobram mais carga horária, e, consequentemente acabam levando essa juventude a abandonar a escola. Ora, por que em vez de se mudar o currículo, não há fiscalização desses empregos? Por que não há geração de renda suficiente para as famílias brasileiras, de modo a não permitir que jovens se antecipem em serviços que os levarão a desistir dos estudos?

           Diante do Novo Ensino Médio, as aulas serão mais dinâmicas, sob mais metodologia ativa e novos componentes curriculares – é o que diz a propaganda. Se será tão bom assim, por que a família de um apresentador global, que se mostrou a favor dessa mudança, não coloca os filhos no Novo Ensino Médio na rede pública de ensino? A verdade escondida nessa capa é que haverá uma distância ainda maior entre as redes pública e privada de ensino, pois enquanto a primeira estará suscetível ao destino de carga horária para ensinar a fazer bolo de pote ou brigadeiro, o ensino da rede privada tende a caminhar para reforçar o modelo propedêutico, preparando para o acesso ao Ensino Superior.

            O discurso é de melhorar o ensino público. Mas, sem investimento no valor do Custo Aluno Qualidade (CAQ), sem a formação de qualidade dos professores, sem um currículo que realmente valorize o saber, o Novo Ensino Médio será um canto da sereia com vistas a afogar os tripulantes de navios, preferencialmente os de escolas públicas. Não se trata de não escutar o canto, nem de ficar paralisado perante ele, mas de entender seus engodos, e nos articularmos enquanto sociedade para a sua revogação, enquanto há possibilidade democrática para tal.

 

Ana Paula Ferreira

Supervisora da rede estadual de ensino

Texto publicado no Jornal da Cidade 4/05/2023

E no Jornal Poços Já https://www.pocosja.com.br/2023/05/02/ensino-medio-e-o-canto-da-sereia/  

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