Dia 5 de
maio finalizamos um dos Projetos de Psicologia na escola Padrão. As
estagiárias, extremamente sensíveis, além de perceberem as incivilidades entre
os adolescentes, também observaram que o banheiro feminino era espaço para a
detração e “muro da maledicência”.
Cada uma que ia lá, via nas portas,
divisórias ou perto do espelho as ofensas destinadas às mulheres, nomes de
jovens que já passaram pela escola e que talvez até fossem conhecidas na comunidade.
Um simples gesto de veneno misturado com errorex ia plantando raiz de
desqualificar umas às outras pela aparência, pelo corpo, pela vida amorosa,
mostrando que a obra “Mito da Beleza” de Naomi Wolf ainda era atual, no
controle estético com vistas ao controle de gênero, tantas vezes incorporado
pelas próprias mulheres sem que se dessem conta.
Isso serviu para uma ação articulada
de 7 encontros, sendo um deles planejado com apoio dos docentes da escola. Em
dia combinado, os rapazes se reuniram com o professor responsável da aula e
conversavam sobre masculinidade tóxica. Enquanto isso, as adolescentes
participaram com as estagiárias de uma roda de conversa sobre sororidade,
machismo estrutural, cultura do linchamento moral.
Através desse diálogo foi possível a
consciência de que as violências verbais não eram coisas de espaços
desorganizados ou bárbaros, mas podem ocorrer em todo lugar, a partir do
momento que os sujeitos não estão refletindo sobre seus atos, com vistas à
mudança de comportamento.
Diante disso, as estagiárias
propuseram que as estudantes escrevessem frases de empoderamento para serem
coladas nos banheiros, por cima das ofensas. Não houve apagamento dos absurdos.
Isso foi simbólico, porque da mesma forma que é difícil limpar o que estava
registrado na pedra, também é moroso o processo de apagar grosserias que nos
dizem. Entretanto, por cima colou-se cartões de todas as cores, com frases
encorajadoras, para que quem lesse entendesse que havia alguém pensando num
mundo com mais boniteza.
A intervenção das estagiárias foi
carregada de sutileza e de sentido. Porque em tempos de redes sociais
denominadas “fofocas da escola”, em uma sociedade que consome em grande escala
a cultura do ódio, os indivíduos normalizam o menosprezo, a ofensa, a calúnia.
E o pior... como são inúmeras vozes, quase num coro, os ultrajados chegam em
algum momento a acreditar nos insultadores, mesmo que sejam palavras sem
coerência, sem fundamento para existir. Isso nada mais é do que a voz do
opressor existindo no oprimido.
Em relação a isso, há dois passos de
enfrentamento que vejo por ora.
O primeiro vai ao encontro do que o
Papa Francisco escreveu numa carta encíclica sobre o que significa amar o
opressor. Não é aceitar o que faz, mas sim, procurar mostrar o quão arbitrário
está agindo e criar condições para que deixe de oprimir. Assim, quando se
prefere expor diretamente aos insultadores as violências observadas há o
cumprimento dessa responsabilidade de se tirar o poder do opressor, mesmo que
naquele momento ele não tenha condições de refletir e de pedir desculpas.
Entretanto, como identificar se
realmente houve opressão, se por acaso não é algo que possamos estar
confundindo com brincadeiras ou com temperamento mais impulsivo? A opressão se
manifesta na diminuição do outro como ser humano, em montar narrativas que se
utilizam de ofensas, que menosprezam, que falsificam, ou na escolha de posturas
antidialógicas de se virar as costas num momento de conversa, de apontar o
dedo, de impedir a democratização do acesso a bens ou espaços que estão
consagrados para um pequeno número de pessoas.
Compreendida a opressão e como combatê-la, o
segundo passo, é saber que integridade exige não contar com a aprovação alheia,
mas sim com a própria consciência. Não é fácil. É mais comum seguir a onda,
imitar o que os outros fazem, rir das maledicências destinadas a terceiros,
postar mensagens nas redes que exponham e humilham a fim de ganhar aplausos do
grupo de convivência. Nessa perspectiva, lembrei de um trecho do livro “Persépolis”
da escritora iraniana Marjane Satrapi. Trata-se de um HQ autobiográfico que a
autora nos conta quando foi morar na Áustria e fingiu ser francesa, sendo alvo
de deboches. Por fim, ela se impõe, assume quem é, chega na conclusão de que
“Se eu não mantivesse a minha integridade, jamais poderia me integrar”.
Se a adaptação é para ganhar
credibilidade, para adquirir apreço, mesmo que isso venha às custas de xingar e
deixar recados maldosos no banheiro, a pessoa se integrará, porém se afastará
de um processo humanizatório, de desenvolvimento ético. Por fim, cabe reforçar
que haverá quem fere a história que construímos, quem planta detração, mas
haverá aqueles e aquelas que vão colocar por cima mensagem de gentileza, de
sinceridade misturada com acolhimento. Assim, há grupos íntegros que podemos
nos integrar sem que nos percamos de nós mesmos.
Ana
Paula Ferreira
Texto publicado no Jornal da Cidade de 16 de maio de 2023
Nenhum comentário:
Postar um comentário