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terça-feira, 16 de maio de 2023

Contra a cultura do ódio

 


            Dia 5 de maio finalizamos um dos Projetos de Psicologia na escola Padrão. As estagiárias, extremamente sensíveis, além de perceberem as incivilidades entre os adolescentes, também observaram que o banheiro feminino era espaço para a detração e “muro da maledicência”.

            Cada uma que ia lá, via nas portas, divisórias ou perto do espelho as ofensas destinadas às mulheres, nomes de jovens que já passaram pela escola e que talvez até fossem conhecidas na comunidade. Um simples gesto de veneno misturado com errorex ia plantando raiz de desqualificar umas às outras pela aparência, pelo corpo, pela vida amorosa, mostrando que a obra “Mito da Beleza” de Naomi Wolf ainda era atual, no controle estético com vistas ao controle de gênero, tantas vezes incorporado pelas próprias mulheres sem que se dessem conta. 

            Isso serviu para uma ação articulada de 7 encontros, sendo um deles planejado com apoio dos docentes da escola. Em dia combinado, os rapazes se reuniram com o professor responsável da aula e conversavam sobre masculinidade tóxica. Enquanto isso, as adolescentes participaram com as estagiárias de uma roda de conversa sobre sororidade, machismo estrutural, cultura do linchamento moral.

            Através desse diálogo foi possível a consciência de que as violências verbais não eram coisas de espaços desorganizados ou bárbaros, mas podem ocorrer em todo lugar, a partir do momento que os sujeitos não estão refletindo sobre seus atos, com vistas à mudança de comportamento.

            Diante disso, as estagiárias propuseram que as estudantes escrevessem frases de empoderamento para serem coladas nos banheiros, por cima das ofensas. Não houve apagamento dos absurdos. Isso foi simbólico, porque da mesma forma que é difícil limpar o que estava registrado na pedra, também é moroso o processo de apagar grosserias que nos dizem. Entretanto, por cima colou-se cartões de todas as cores, com frases encorajadoras, para que quem lesse entendesse que havia alguém pensando num mundo com mais boniteza.

            A intervenção das estagiárias foi carregada de sutileza e de sentido. Porque em tempos de redes sociais denominadas “fofocas da escola”, em uma sociedade que consome em grande escala a cultura do ódio, os indivíduos normalizam o menosprezo, a ofensa, a calúnia. E o pior... como são inúmeras vozes, quase num coro, os ultrajados chegam em algum momento a acreditar nos insultadores, mesmo que sejam palavras sem coerência, sem fundamento para existir. Isso nada mais é do que a voz do opressor existindo no oprimido.

            Em relação a isso, há dois passos de enfrentamento que vejo por ora.

            O primeiro vai ao encontro do que o Papa Francisco escreveu numa carta encíclica sobre o que significa amar o opressor. Não é aceitar o que faz, mas sim, procurar mostrar o quão arbitrário está agindo e criar condições para que deixe de oprimir. Assim, quando se prefere expor diretamente aos insultadores as violências observadas há o cumprimento dessa responsabilidade de se tirar o poder do opressor, mesmo que naquele momento ele não tenha condições de refletir e de pedir desculpas.

            Entretanto, como identificar se realmente houve opressão, se por acaso não é algo que possamos estar confundindo com brincadeiras ou com temperamento mais impulsivo? A opressão se manifesta na diminuição do outro como ser humano, em montar narrativas que se utilizam de ofensas, que menosprezam, que falsificam, ou na escolha de posturas antidialógicas de se virar as costas num momento de conversa, de apontar o dedo, de impedir a democratização do acesso a bens ou espaços que estão consagrados para um pequeno número de pessoas.

             Compreendida a opressão e como combatê-la, o segundo passo, é saber que integridade exige não contar com a aprovação alheia, mas sim com a própria consciência. Não é fácil. É mais comum seguir a onda, imitar o que os outros fazem, rir das maledicências destinadas a terceiros, postar mensagens nas redes que exponham e humilham a fim de ganhar aplausos do grupo de convivência. Nessa perspectiva, lembrei de um trecho do livro “Persépolis” da escritora iraniana Marjane Satrapi. Trata-se de um HQ autobiográfico que a autora nos conta quando foi morar na Áustria e fingiu ser francesa, sendo alvo de deboches. Por fim, ela se impõe, assume quem é, chega na conclusão de que “Se eu não mantivesse a minha integridade, jamais poderia me integrar”.

            Se a adaptação é para ganhar credibilidade, para adquirir apreço, mesmo que isso venha às custas de xingar e deixar recados maldosos no banheiro, a pessoa se integrará, porém se afastará de um processo humanizatório, de desenvolvimento ético. Por fim, cabe reforçar que haverá quem fere a história que construímos, quem planta detração, mas haverá aqueles e aquelas que vão colocar por cima mensagem de gentileza, de sinceridade misturada com acolhimento. Assim, há grupos íntegros que podemos nos integrar sem que nos percamos de nós mesmos.

 

Ana Paula Ferreira



Texto publicado no Jornal da Cidade de 16 de maio de 2023

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