Tem
um livro que gosto muito que é o “Conto da Aia”. Trata-se de uma distopia na
qual poucas mulheres conseguem gerar um filho e são transformadas em
propriedade de famílias ricas para perpetuarem o patrimônio, mediante os
herdeiros. O livro é narrado em primeira pessoa e quando a protagonista buscas
pistas sobre como tudo começou, se dá conta que as mudanças nunca são
instantâneas, é como uma banheira com água quente, que é possível levar a morte,
caso o aquecimento seja gradual.
Assim
foi com o que chamamos de “Novo Ensino Médio”, que já está sendo gestado há
algum tempo sem que nos déssemos conta, pois independente de assumir-se como propedêutico
ou ensino profissional, há o que Tomaz Tadeu da Silva chama de currículo
oculto, ou melhor, o que a escola não deixa escancarado, mas ensina através de
seus discursos, posturas, comportamentos. Ora, sendo a hegemonia cultural
organizada pelos ditames neoliberais, muitas vezes, se contribuí com essa
ideologia, sem perceber.
Isso
ocorre com o que vou chamar de pedagogia da conformação e pedagogia da
desinformação. No primeiro caso, há um conjunto de ações na educação, nas quais
o sujeito se mostra resignado, aceita a situação e até mesmo naturaliza. Exemplos
não faltam. Ao invés da universidade pública tomar a frente na formação docente
continuada, fundações e empresas passam a cumprir esse papel, mas nem é feita a
pergunta sobre o quanto do cofre público foi destinado a isso. Embora haja uma
lei de 2008 sobre o piso salarial, há caso de governantes que além de não cumprirem,
recorrem à justiça para não pagar e enquanto isso, milhares de educadores ficam
quietos. Iniciativas de privatizar a gestão de escolas estaduais começam a
acontecer, mas como não é na unidade na qual se trabalha, não há o incômodo. Todo
esse nosso apagamento enquanto cidadãos, esse silenciamento de nossas vozes é
ensinado aos alunos, que nos observam e vão aprendendo a não se rebelar perante
as injustiças.
Na
complementação dessa inércia está a pedagogia da desinformação, que mostra um
desprezo pelo saber e uma ênfase apenas em caráter prático, de modo acrítico,
com vistas à adaptação e por isso, são comuns falas no âmbito educacional de não
é necessário ensinar determinado conteúdo, pois os alunos nunca vão usar isso
na vida. Uma das consequências é o avanço do negacionismo, sob defesas
absurdas, tais como “A Terra é plana”, “o Brasil foi melhor durante a ditadura”
ou o “aquecimento global foi inventado pela mídia”. Um risco que pode ocorrer
nessa ênfase utilitarista é que ao invés de haver uma sequência didática na
qual o conteúdo seja apresentado gradativamente de modo a construir habilidades
cada vez mais complexas, as aulas viram noticiários de TV e num dia fala-se de
meio ambiente, no outro de sexualidade, e no dia seguinte sobre violência no
trânsito, mas nada com profundidade, tudo raso, sem conexão, e nessa poluição o
que é importante de fato se perdeu no meio de tanto outros assuntos. É como se
no excesso de informação, gerasse uma cegueira branca, pois não é a ausência de
luminosidade, mas justamente luz em grandes proporções, semelhante ao que é vivenciado
pelas personagens de Saramago no livro “Ensaio sobre a cegueira”, pois embora
fosse uma sociedade urbana, que utilizasse tecnologias modernas, as pessoas perderam
a capacidade de enxergar, de se perceber, de se humanizar.
Novamente
aqui o Novo Ensino Médio se encaixa, pois na nova configuração curricular há um
excesso de componentes curriculares, alguns inclusive de existência
questionáveis, tais como “bolo de pote” ou “como se tornar um milionário”,
enquanto disciplinas científicas perdem carga horária. Quais as consequências?
Temos quatro principais: 1) maior distância entre o ensino da rede privada e o
da rede pública, lembrando das diversas demandas estruturais da escola pública;
2) flexibilização trabalhista, pois o professor passa a lecionar em diversos
componentes pedagógicos que não estão alinhados a sua graduação; 3) alterações
pedagógicas na elaboração de livros, formação docente e ENEM ; 4) e construção
do indivíduo neoliberal.
Nesse
ponto, tanto a pedagogia conformista, que dá sequência na aula como se nada
acontecesse em termos de desmonte de direitos sociais, quanto a pedagogia da
desinformação, que trata o saber como algo dispensável, estão mostrando de
maneira muitas vezes oculta a apatia pela coisa pública, a despreocupação com o
futuro da sociedade, o individualismo em se furtar da defesa sistemática da
escola pública, laica e de qualidade, permitindo que as empresas avancem sobre
esse espaço cada vez mais.
Se
não queremos nem a conformação, nem a desinformação, se o nosso objetivo é a
transformação da sociedade com mais justiça social, na garantia de um Estado
cumpridor de seu papel de concretizar direitos civis, políticos e sociais, é
hora de fechar a torneira da água quente que está nos queimando aos poucos.
Esse
controle de impedir a saída de água em alta temperatura é essencial. É a pausa
necessária, é o fôlego fundamental para que a sociedade civil organizada se
posicione e amadureça propostas sobre essa importante etapa da Educação Básica.
Ao invés da arbitrariedade da medida provisória que rege o Novo Ensino Médio, é
imprescindível uma consulta popular ampliada, buscando tornar o Ensino Superior
acessível a alunos da classe popular e contribuindo na formação de sujeitos compromissados
com o mundo.
Ana Paula Ferreira
Supervisora da rede estadual
Texto publicado no Jornal da Cidade 03/05/2023
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