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terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Dia Nacional da Família: o que comemorar e o que ainda avançar

            

             Oito de dezembro é comemorado nacionalmente o dia da família, instituído por um decreto de 1963. Passados quase 60 anos, o mais adequado seria a nomeação no plural, como “Dia das Famílias”, evidenciando as diversas configurações, haja vista que a noção de família é construída historicamente e, portanto, muda diante de diferentes parâmetros sociais, culturais e econômicos.  Aliás, diferente do que se advoga sobre a naturalidade do modelo tradicional, foi também uma forma de organização produzida propositalmente, com vistas a manutenção da herança.

            De acordo com Friedrich Engels na obra “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, houve um tempo na história da humanidade que as sociedades eram organizadas em torno da figura da mãe e as relações não eram monogâmicas. Porém, à medida que o ser humano conheceu a agricultura, que se fixou em determinado território, a divisão das tarefas de acordo com gênero passaram a ocorrer. Mais tarde, estabelecida a propriedade privada e conhecida a participação do homem na reprodução, o corpo e a sexualidade da mulher são tolhidos como mecanismo de assegurar que os bens da família seriam herdados pelos filhos legítimos. Nasce, portanto, a família patriarcal, que pune até mesmo com morte a adúltera, enquanto ao homem lhe é permitido manter relações extraconjugais.

            Mesmo perdurando por séculos, desde a Roma Antiga, a família patriarcal foi uma imposição cultural sobre povos e diversas culturas. Numa pesquisa lúcida, a historiadora Silvia Federeci em “Calibã e a bruxa” mostra que o incipiente capitalismo percebeu a necessidade de controle da mulher, haja vista que ela que forneceria mão de obra barata, desde que produzisse em grande quantidade. Consequência:  mulheres que conheciam métodos contraceptivos, que evitavam filhos, que praticassem o aborto, todas elas poderiam ser queimadas nas fogueiras sob a justificativa de prática de bruxaria. Durante anos a ideia de “doce, recatada e do lar” foi duramente introjetada, fazendo parecer normal a mulher ter inúmeros filhos e obediência ao marido.

            Outra característica da família patriarcal era a defesa de rituais religiosos. Mulher deveria casar-se virgem, os filhos eram educados com base nos princípios da Igreja Católica, e se possível, a casa deveria ter um altar de oração. Defendia-se um culto a Deus, mas em contrapartida, negras e indígenas eram violentadas sexualmente, reconhecia-se ou não filhos fora do casamento, a esposa vivenciava o estupro marital ou a violência doméstica.

            Em “A elite do atraso” o sociólogo Jessé de Sousa nos conta sobre os impactos do Brasil Colonial na estrutura de nosso Brasil atual. Dentre as passagens, o autor relata que com o advento da abolição da escravidão, havia um projeto de embranquecimento de nossa sociedade e excluir a população negra fazia parte desse plano. Imigrantes europeus chegam em centenas de navios e ao desembarcarem, passam a ocupar tarefas braçais antes exercidas pelos escravizados. As negras continuavam como babás e empregadas, mas na ausência de ocupações para os trabalhadores negros, muitos se direcionam para a vadiagem ou para o crime. Ganha envergadura a família chefiada por mulheres, principalmente negras e moradoras da periferia... uma imagem comum na contemporaneidade.

            Do Brasil República para cá muitas coisas aconteceram. O movimento feminista conseguiu a aprovação de métodos contraceptivos, a mulher passou a ocupar cada vez mais espaço no mercado de trabalho, aprovaram a lei do divórcio (1977), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA 1990), o Estatuto do Idoso (2003), a Lei Maria da Penha (2006), casais homoafetivos tiveram o direito assegurado de contrair união estável (2011). Essas mudanças trouxeram inúmeras outras no cotidiano familiar. Se antes a relação entre pais e filhos se organizava no medo e nos castigos físicos, atualmente houve maior possibilidade de resolução dos conflitos com base no diálogo. Recentemente o idoso não tinha nem direitos resguardados e hoje há um estatuto que lhe protege e muitas vezes são os idosos o arrimo de família e que cuidam das gerações mais novas. Apesar números lastimáveis de violência doméstica no Brasil, ainda sim, hoje temos uma lei que nos protege e mais canais de denúncia.

            Se por um lado a compreensão e as configurações de famílias mudaram, a mudança não pode se estacionar. O comercial bonito de margarina não é igual para todos e nem precisa ser. A cada cidadão, cabe olhar para sua família e tentar criar um ambiente de paz, confiança, respeito, diálogo e apoio. Em relação ao Estado cabe realizar políticas públicas que realmente tragam dignidade, seja investimento em Programas de habitação; seja distribuindo melhor as riquezas; seja reduzindo a carga horária dos trabalhadores e trabalhadoras, de modo que as pessoas consigam vivenciar mais a paternagem e maternagem. O processo continua histórico, basta pensarmos qual modelo de sociedade queremos, que podemos imaginar qual família precisamos ainda construir.


Ana Paula Ferreira

Pós graduada em História Contemporânea;

Militante do grupo feminista Mulheres pela Democracia

 


quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Mulheres pela democracia

Quando penso nesse título, penso no que ele significa para mim, sobre quais utopias desejo para as mulheres e sob qual democracia. Aliás, é interessante também observar a palavra “pela”, sugerindo algo inconcluso, que ainda está no horizonte, afinal se não vivemos numa ditadura, tampouco a democracia está consolidada. No meu imaginário a democracia real funcionária com um Executivo que promovesse políticas públicas emancipadoras, um Legislativo com um olhar atento às demandas do povo, um Judiciário que fizesse seu papel, sem fazer julgamento pautado na cor da pele, na roupa, ou gênero. Uma democracia que mobilizasse uma participação cada vez maior da sociedade civil organizada, na qual os bens sociais não fossem tratados como “favores”, mas como direitos e, portanto, públicos e de qualidade, em que o cidadão se sentisse protegido e confiasse no Estado como instância promotora de justiça social.

            Para alcançar uma democracia cada vez maior é necessário ser feminista, pois como já dizia bell hooks, “O feminismo é para todo mundo”. De acordo com a autora há dois tipos principais de compreensão do feminismo, o reformista e o revolucionário. O primeiro pretende avanço de pautas importantes, porém não questiona o sistema capitalista e se fôssemos resumir, poderíamos usar as três palavras de ordem da Revolução Francesa: igualdade, liberdade e fraternidade.

A igualdade se daria, por exemplo, na equiparação salarial entre homens e mulheres, na divisão das tarefas domésticas e no cuidado com os filhos. A ideia de liberdade está difundida nos discursos de estar com quem quiser, com a vestimenta que achar adequada, ocupar a profissão de interesse, ter o direito assegurado do aborto. Já a fraternidade para o movimento feminista foi readequada para sororidade, porém, bell hooks questiona se há sororidade de fato, enquanto mulheres brancas de poder se projetam profissionalmente e deixam os afazeres domésticos geralmente para uma mulher negra, sob opressão de classe e de raça.

Daí a importância de um feminismo que não questione apenas a injustiça de gênero, mas que busque acabar com o racismo, o elitismo e o imperialismo, num mundo no qual homens e mulheres interajam sem dominação. Esse é o feminismo revolucionário, que leva em conta as pautas do feminismo reformista, mas percebe ao mesmo tempo suas limitações.

Aliás, estamos vivenciando essas limitações de forma contínua, pois conquistas asseguradas em outros períodos são desafiadas na atual conjuntura. O aborto que é previsto em lei desde 1940 em casos de abuso sexual, foi duramente questionado em pleno ano de 2020, tornando a vida de uma menina de 10 anos, grávida do tio, um suplício ainda maior. Uma jovem denunciou um caso de estupro e foi humilhada pelo advogado do réu, num julgamento que abre precedentes para a contínua violência sexual. Embora legalmente haja um decreto de 2016 que regulamenta o uso do nome social, a ministra da Família, Mulher e Direitos Humanos discursa num formato binário, transfóbico e com uma visão míope sobre identidade e orientação sexual. Em 2015, sob gestão do PT, a política de enfrentamento à violência contra mulher deu um salto com a inauguração das Casas da Mulher Brasileira, que é um espaço de acolhimento às vítimas de agressão doméstica, entretanto, infelizmente em 2019, o presidente Bolsonaro publicou um decreto que desresponsabiliza o governo federal na manutenção desses espaços.  

O que isso significa para nós? Que a luta é contínua, enquanto as desigualdades não forem superadas, principalmente as pautadas no tripé classe, raça e gênero. Caso contrário, todos os avanços, correm o risco de sucumbir, pois serão propostas de governo e não uma política de Estado.

Por isso, em se tratando de segurança pública, dentro de uma perspectiva de um feminismo revolucionário, não há apenas a resistência para não sermos agredidas por nossos companheiros. Luta-se também por um sistema penitenciário que possibilite uma reeducação e humanização da população carcerária. Não se defende somente sermos médicas, advogadas, gerentes ou qualquer outra profissão que nos atraía. Defende-se que meninas e meninos tenham uma educação pública de qualidade e fácil acesso ao Ensino Superior se assim desejarem. Vai além da mulher ter remuneração equiparável ao homem, pois acredita-se que com a distribuição das riquezas seja possível que todos tenham um salário digno e numa jornada de trabalho reduzida que lhes possibilite conviver com a família, os amigos, ter tempo para o lazer, cultura e esporte. Levanta a bandeira de pautas que nos são específicas, mas sem perder o foco das questões de grande envergadura, que também nos são caras porque indiretamente ou diretamente também nos impactam no dia a dia.

Sabendo do que quero, posso pensar quais caminhos tomar e quais atalhos evitar. Se a utopia está distante, que eu me lembre que mulher e democracia são palavras de ação. Não se fez história da humanidade sem o protagonismo da mulher e menos ainda se faz democracia sem que nós sejamos também autoras.

 

Ana Paula Ferreira

Integrante do movimento feminista

“Mulheres pela Democracia”


quarta-feira, 26 de agosto de 2020

A terra e nosso senso de (in) justiça

           Não nascemos injustos. Somos educados a (re) produzir um senso de justiça e é curioso saber que a palavra senso está atrelada a percepção, ao sentido. Portanto, nossa qualidade de discernimento entre o que seria ou não justo estaria baseada não tanto no campo da racionalidade, mas no sentimento.

Ora, se nossas emoções estão vulneráveis a uma construção social e cultural e esse controle das mentes e corações é exercido habilmente pela indústria cultural, que enaltece a verdade dos heróis e valoriza a história dos vencedores, começamos a compreender o quanto que nosso senso de justiça está em defesa dos poderosos. Compartilho o exemplo da história “Os três porquinhos” narrada à exaustão na nossa primeira infância.

Podemos pensar em dois aspectos da história: sua estrutura linguística e pedagógica. Na primeira, nota-se que os porquinhos que quiseram se dar ao luxo do lazer, ócio e prazer musical, fizeram casas de palha e de madeira e tiveram suas construções destruídas pelo predador. Valores capitalistas tais como trabalho, dedicação, disciplina são reverenciados na figura de Pedrito, tornando-se explícito que se o indivíduo arduamente se entregar a uma tarefa, conquistará a prosperidade. Na questão pedagógica é importante levamos em consideração como que geralmente o conto é trabalhado: as crianças são levadas a contar até três junto com o “lobo” para que o porquinho saísse; são incentivados a soprar as casinhas e a desalojar o suíno que não tem outro recurso senão fugir. O que pedagogicamente ensinamos, seja com a linguagem da história ou com a didática da contação? Que o que é digno de valor é a história dos vencedores. Na medida em que o lobo era o animal mais forte, as crianças eram conduzidas a acabar com a vida que os porquinhos construíram para si. Contamos a história tal como aprendemos e nem refletimos sobre os seus vários sentidos com as crianças, o qual poderia também ser a importância da união entre os mais vulneráveis num processo de resistência contra aquele que tem mais poder.

Isso aconteceu durante a história da humanidade. Ameríndios e africanos foram também retirados de suas propriedades, houve saque, tortura, escravidão com esses povos sob a narrativa de que não tinham alma, de que se buscava um processo civilizacional e a violência era necessária para domesticar os bárbaros. Durante tempo nossos livros de história traziam essa leitura dos fatos e muitas pessoas criaram seu senso de justiça nesse paradigma, acreditando que indígenas e negros eram preguiçosos e estão em situação de desigualdade porque não se esforçaram tanto quanto deveriam. É a mesma lógica que sustenta o fato de não nos sensibilizarmos com o despejo de moradores do Movimento Sem Terra no argumento de que a terra não foi comprada nem herdada por esses trabalhadores.

Os defensores dessa justificativa desconsideram que a própria Constituição Federal prevê a desapropriação de terras improdutivas e o que o MST faz é forçar essa distribuição, haja vista que a Reforma Agrária nunca foi política pública séria no Brasil. Para os apoiadores do latifúndio, “o Agro é tech, o Agro é pop, o Agro é tudo” e não se percebe que defender essa desigual estrutura fundiária é continuarmos na dinâmica de desmatamento para que nosso país seja o celeiro e o curral do mundo, é permanecermos liderando o ranking de nação com o maior consumo de agrotóxicos do mundo, é colocarmos vidas de tribos indígenas a própria sorte, é de forma desumana aceitar que famílias pobres sejam retiradas de sua terra num processo arbitrário de reintegração de posse.

A violência não vem apenas em formato de força física. Antes, mata sua capacidade de pensar e de se sensibilizar com os mais fracos. Que possamos enfim, pensar em que medida estamos defendendo os opressores e renunciando a vida dos mais oprimidos, em que medida nossos sentimentos já foram capturados para abastecer a história do vencedores, e o que achamos ter de senso de justiça, nada mais é do que uma mercadoria que já foi adquirida por aqueles que tem poder.  

 

Ana Paula Ferreira


                   Foto de Sebastião Salgado 


quarta-feira, 8 de abril de 2020

Educação inclusiva: uma bandeira contínua



O dia 21 de setembro é datado como o Dia Nacional da Luta das Pessoas com Deficiência e nos possibilita pensar que escola queremos, que tipo de mundo pretendemos construir. Um filme que alarga essa reflexão e que me surpreendeu é “Corcunda de Notre Dame” dirigido por Peter Medak. Traz um Quasímodo que não era apenas a pessoa com deficiência física e de alma generosa que defende a amiga, tal qual apresentado no desenho da Disney. Era também um leitor voraz, alguém que encontra no conhecimento o poder da libertação de si e do outro e ao acreditar na propagação de uma ideia, escreveu panfletos e os distribuiu lutando por justiça.

O saber lhe deu condições de se colocar perante o mundo, de ecoar sua voz e suas demandas, de enfrentar barreiras para a construção de uma sociedade mais democrática. Não estava salvando Esmeralda. Estava desafiando um sistema político extremamente arbitrário, uma religião fechada em si mesma, e evidenciando que marginalizados de todas as ordens poderiam se unir para colocar suas pautas.

Historicamente, vimos que as pessoas com deficiência eram afastadas do convívio, e que, aliás, a escolarização desse grupo é muito recente, pois, em se tratando de Brasil, se passaram mais de três séculos para que houvesse uma instituição que olhasse para essa demanda (Instituto dos Meninos Cegos/ Instituto de surdos-mudos) e em relação à deficiência mental se passaram mais de 400 anos (Sociedade Pestalozzi e APAE). Entretanto, a educação era, sobretudo em escolas especializadas, embora a LDB de 1961 já manifestasse que na medida do possível era para ser no Sistema Geral de ensino.

Hoje temos mais alunos nas classes regulares por conta de todo advento de acordos internacionais, legislações e políticas públicas que fomentaram a matrícula e o atendimento ao aluno com deficiência. Mas, ficam duas perguntas: Em que medida essas políticas ainda precisam avançar? E como cada profissional da educação pode materializar a lei para que a inclusão não seja apenas mero documento?

Paulo Freire nos fala de uma educação que seja libertadora, para professores e alunos. Para isso, preciso ir além do que é visível, além do que o texto traz, ou do que o aluno traz. Cada aluno é um baú de passado, de experiências guardadas, de conhecimento assimilado, mas também é um campo de futuras possibilidades. Hoje ele não consegue, amanhã ele pode conseguir com mediação e depois poderá conseguir sozinho. Ninguém se resume apenas ao hoje, ninguém se resume às suas dificuldades.

Como salientou Kassar (2011) a dificuldade da inclusão é também uma dificuldade da escola pública, historicamente também colocada nas margens, e, portanto, lutar por educação inclusiva é somar na luta por uma educação pública que seja de qualidade a começar por menos alunos por sala, metodologias ativas que primem pelo trabalho coletivo, relações mais horizontais, salário digno no qual o professor não precisasse trabalhar vários turnos e mal conhecer sobre a comunidade das diversas escolas que leciona.

Que inclusão deve ser nossa bandeira? Uma inclusão que não se faça apenas do aluno com deficiência dentro da sala de aula regular, mas que possibilite aquilo que Quasímodo sabia: que a educação é uma ferramenta contra desigualdades e, portanto, todos devem ter acesso a ela, na perspectiva de humanização e de aumento da participação popular em prol de uma sociedade mais justa.

Ana Paula Ferreira

Supervisora pedagógica da rede estadual,

Mestre em Educação

Texto também publicado no Jornal da Cidade e Jornal da Mantiqueira 
https://www.jornalmantiqueira.com.br/2020/09/21/opiniao-educacao-inclusiva-uma-bandeira-continua/ 







quarta-feira, 11 de março de 2020

Mulher, educadora e grevista

Estamos no mês de março e não há como esquecer o dia internacional da mulher. A data não surgiu porque as mulheres reivindicavam batons, flores, cartões e mensagens, mas porque lutavam por “Pão e Paz”. Essa greve ocorreu na Rússia czarista, na qual mulheres foram às ruas contra as jornadas extenuantes, os baixíssimos salários e por condições dignas no ambiente fabril. Ao mesmo tempo, gritavam pelo retorno de seus filhos e esposos que estavam nas trincheiras da 1ª Guerra Mundial, diante de um governo arbitrário num país que sucumbia a fome. Teve tamanha força essa greve do dia 8 de março de 1917 que serviu de estopim para a Revolução Russa.

Porém, a História ao longo dos anos foi escrita por homens e por acadêmicos, pessoas letradas e fortemente impactadas pela ideologia burguesa. Portanto, era comum que a história de mulheres, de trabalhadores, dos mais pobres, ficasse escondida debaixo dos escombros e ruínas, enquanto fatos e memória dos vencedores tinham o holofote das páginas da história da humanidade.

Se quisermos hoje saber sobre a história das mulheres, precisamos escavar boas referências e dentre elas, uma que me chama a atenção é a historiadora Silvia Federici. No seu livro “Calibã e a Bruxa” a autora nos conta que na transição entre a economia feudal para a economia de mercado, diversos governos entenderam a importância do crescimento populacional como forma de conseguir mais consumidor e mão-de-obra barata. A consequência foi tornar a mulher como mero útero, escravizando-a no ambiente doméstico e transmitindo um novo modelo feminino a ser seguido: dócil, submissa, calada, resignada ao marido. As que não se sujeitavam a isso eram consideradas bruxas e mortas na fogueira.

Ainda hoje milhares de mulheres são mortas sob o fogo do feminicídio. Há também aquelas que são feridas em sua integridade moral e psicológica diante das palavras de baixo calão das redes sociais, da humilhação em público, sob a chama de palavrões e obscenidades. Os machistas tentam incessantemente silenciar as mulheres, pois essas ainda são concebidas como propriedade do homem, sendo inadmissível as que vão a público, que confrontam as ideias dos poderosos, que denunciam um presidente ignóbil, que fazem greve.

É nesse cenário que as líderes do movimento grevista em Minas Gerais foram recebidas pelos representantes do governo, quando sentaram à mesa de negociação. Tons de deboche, ironia, comunicação com desdém, aumento do volume da voz, várias artimanhas para minimizar e intimidar. Essa desvalorização profissional de mulheres que são líderes sindicais é efeito de um país onde a desigualdade gênero é naturalizada e cargos e funções menos valorizados são mais propagandeados ao universo feminino sob estereótipo de que a mulher é zelosa, paciente, amorosa e, portanto, se encaixaria mais nessas profissões sendo, portanto, absurdo aquelas que se encaminham para a política, local de excelência do homem.

Ora, numa sociedade sexista, com raízes profundas na desigualdade de rendimento entre homem e mulher e cujas profissões a mulher terá mais aceitabilidade porque não fazem parte da ambição masculina, é de se esperar que sejam áreas tratadas com menos destaque das pautas políticas. Isso é o que ocorre na área da educação básica no Brasil, tendo em vista que as professoras compunham 81,5% do quadro do magistério em 2010 e sabemos o quão o salário docente é defasado se comparado com profissionais graduados em outras áreas.

Lembrando que 8 de março é a luta da mulher trabalhadora por uma sociedade mais justa, resgatemos esse princípio para trazer a tona a luta das feministas que diversas vezes foram às ruas por creche e educação de qualidade para seus filhos ou a luta de milhares de professoras que historicamente deram aos seus alunos o “testemunho de luta, lições de democracia”, como dizia Paulo Freire. Não somos tias de nossos alunos e isso não significa menosprezar a figura da tia, mas sim tratar com profissionalismo nossa profissão, lutando por ela. Tias não fazem greve, professoras sim e, portanto, que nós, mulheres e professoras não deixemos que apaguem nossa história.
Ana Paula Ferreira 
Educadora e grevista

quinta-feira, 5 de março de 2020

Grevear: ação de justiça social

Fico pensando às vezes como ensinamos as crianças a ser injustas e aceitar a desigualdade. Não que eu ache o ser humano bom por natureza, mas faça o teste: mostre simultaneamente balas a duas crianças de quatro anos. Para uma entregue uma bala apenas e para outra um pote cheio. A que se sentiu desfavorecida com certeza reclamará. Isso inclusive é tema de pesquisa de Harvard desenvolvida em sete países, mostrando que independente da cultura as crianças possuem senso de justiça.
Contudo, com o tempo as crianças se inserem no nosso ritmo de viver e ensinamos que a menina deve ajudar a mãe nos afazeres domésticos enquanto o irmão assiste TV ou se diverte com os amigos. Justificamos que o presente de Natal é um carrinho de plástico made in China enquanto do primo é um vídeo game porque o papai Noel quis, ou na melhor das hipóteses, explicamos que a renda de cada família é diferente, mas não falamos o porquê da desigualdade social. Reforçamos que o cabelo crespo deve ser escondido, cortado, alisado, mas o cabelo liso da vizinha deve ser objeto de admiração.
Assim nossas crianças se tornam adultas que naturalizam as injustiças. Ensinamos tão bem ao longo dos anos que criamos condições para se acostumarem com a ideia de que iates e jatos não possuem impostos e coincidentemente estão nas mãos dos mais ricos. Em contrapartida, anualmente o brasileiro comum paga o IPVA de seus veículos. Torna-se aceitável que mineradoras em Minas Gerais não contribuam com o ICMS, que o governo salve bancos, ou até mesmo que o ministro da economia Paulo Guedes chame os funcionários públicos de “parasitas”. Esses mesmos que se aquietam perante as megalomaníacas oportunidades concedidas aos altos escalões da sociedade, se duvidar dirão que os professores são doutrinadores, ficarão horrorizados com os trabalhadores sem terra que lutam por Reforma Agrária e farão uso do famoso discurso raso da meritocracia.
Tudo isso é absurdamente internalizado pela grande maioria, pois nos acomodamos ano a ano a esse sistema capitalista desigual, ao ponto de defender que burguesia tenha privilégios enquanto os direitos são subtraídos da classe trabalhadora. Situação análoga de tratamento diferenciado é percebida em Minas, no qual o governador Zema anunciou aumento de 42% aos profissionais da segurança pública enquanto os demais são negligenciados sob pretexto de ajuste fiscal. Apesar dessa discrepância, milhares de servidores estaduais estão em silêncio perturbador sobre o fato.
Para o não envolvimento em defesa da profissão ocorre um duplo movimento de negação à greve. Primeiro, há a diplomacia de não entrar no assunto: abstém-se das reuniões que tratarão do tema, justifica que há outras estratégias sem ser a greve, mas não participa de nenhuma. O segundo movimento é de discursar de que greve não adianta e assim desapercebe que os direitos trabalhistas foram conquistas dos trabalhadores que nos antecederam, que alguns sofreram violência policial e outros tantos presos ou até mortos.
Paralisa-se no medo de perder alunos, mas não observa que estamos perdendo cidadãos, ensinando pelo exemplo sobre passividade, o comportamento alheio a discussões políticas, e condicionamentos a uma ação ordeira de meros cumpridores de normas. Somos bons cumpridores de nossas funções, entretanto que consigamos não perder nossa capacidade reflexiva de médio e longo prazo. Antônio Balduíno é um personagem de Jorge Amado que aprendeu que greve era uma luta mais bonita e mais forte do que as lutas que travava como malandro ou boxeador. Descobriu que é uma luta de quem não quer ser escravo, é uma luta de união, em solidariedade aos trabalhadores, em defesa da liberdade. Também espero que esse sentido seja recuperado e possamos nos unir como professores, servidores públicos, trabalhadores. Só assim como educadora ficarei feliz, lutando por igualdade e deixando o testemunho vivo desse princípio para que as novas gerações resgatem o senso de justiça que nós adultos fomos capazes de retirar.    
                                                                                Ana Paula Ferreira





terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Nome ignorado: sem RG na história


      Não sou “dona”, nem “doninha”, nem “tia”, me chamo Ana Paula e não abro mão do reconhecimento pelo nome. No livro “O conto da aia”, da canadense Atwood, a personagem principal chamava-se Offred e vivia numa república teocrática no qual as mulheres férteis eram destinadas a meras reprodutoras. Aliás, todas as aias, mudavam de nome ao se tornarem servas sexuais de determinada família. Lembrando que “of” em inglês significa “de”, o restante do nome nada mais era do que o nome de seu proprietário.
Essa mudança do nome não é ocasional. Nome é a identidade de uma pessoa e retirar a identidade de alguém faz parte de uma proposta de diminuir o sujeito, retirá-lo de seu eixo cultural e de suas raízes, da onde ela se ancora. Não é a toa que a cristianização nas Américas subtraiu nomes indígenas, forçando-os ideologicamente a adotarem nomes cristãos. É também pela mesma razão que pessoas transexuais não puderam legalmente mudar de nome. Suas identidades de gênero não correspondiam a seu sexo biológico e o reconhecimento do nome social só foi permitido no Brasil em 2016.
Retirar o nome pelo qual o indivíduo se identifica é diminuir a pessoa como se fosse tão sem importância, que nem seu nome pudesse ser falado, repetido ou registrado. Atribuir nome é reconhecer a importância ou o vínculo com aquele sujeito. Pensemos nos animais: o gado das grandes fazendas o máximo que recebem é um número de identificação, pois são apenas mais um; já os nossos animais domésticos, por outro lado são chamados por um nome, possuem histórias e quando morrem choramos por eles.
Tiramos o nome do ser humano o tempo todo, ainda mais quando esse ocupa funções socialmente desprezadas. Daí num bar, não perguntamos o nome do atendente e o chamamos por “garçom”. Na escola professora vira “tia” ou “dona” e um cliente é tratado por “senhor” ou “senhora”. Mas o engraçado é que em cargos com alto reconhecimento social dificilmente não é dito o nome. Há o vereador “Fulano”, o doutor “Ciclano” e a artista “Beltrana”. Nesse sentido, o nome tem força e serve de abertura para venda de produtos ou de uma ideia. Aliás, esses nomes que serão registrados em instituições como símbolo de poder e de memória de determinadas histórias.
Isto não é o mesmo que acontece aos descamisados nos semáforos, os camponeses sem tetos, os desvalidos, os jovens sem empregos que são fortemente cooptados pelo tráfico. Estão em condições parecidas aos do gado para abate: são apenas um número e peças vulneráveis de um Estado que superdimensiona a necropolítica, onde uns são protegidos e outros à beira da morte, são desassistidos pela política pública e por um sistema econômico que trata a classe trabalhadora como mera força de trabalho substituível.
Se nos tratamos como roldanas, engrenagens, enxadas, pás, giz, pincel, nosso nome realmente é descartável tal como é nosso trabalho que pode ser realizado por outros ou por máquinas. Entretanto, queremos superar o contexto de “Vidas Secas” no qual os filhos do vaqueiro Fabiano não foram nomeados por Graciliano Ramos. O propósito talvez fosse mostrar a situação de privação que viviam, inclusive do próprio nome, ou então para que facilmente identificássemos essas crianças com milhares de outras pelo Brasil. Num sentido ou no outro, nota-se novamente a relação entre nome e memória, nome e capital político ou econômico. É certo que o verdadeiro reconhecimento do cidadão como ser humano seria num outro modelo de sociedade, que não o tratasse como número eleitoral em época de campanha política ou número de cartão de crédito. Seria necessária uma sociedade que o homem não fosse o algoz do próprio homem, ou que a força do dinheiro ou do poder não fosse mais importante do que a integridade das pessoas. Contudo, talvez como um primeiro passo para o respeito à  pessoa, seja lembrar seu nome, ao se entender que por detrás desse há toda uma história que não pode ser apagada.

Ana Paula Ferreira
Mestre em Educação e
Supervisora Escolar da Rede Estadual/ MG