Oito de dezembro é comemorado nacionalmente o dia da família, instituído por um decreto de 1963. Passados quase 60 anos, o mais adequado seria a nomeação no plural, como “Dia das Famílias”, evidenciando as diversas configurações, haja vista que a noção de família é construída historicamente e, portanto, muda diante de diferentes parâmetros sociais, culturais e econômicos. Aliás, diferente do que se advoga sobre a naturalidade do modelo tradicional, foi também uma forma de organização produzida propositalmente, com vistas a manutenção da herança.
De acordo com Friedrich Engels na obra “A origem da
família, da propriedade privada e do Estado”, houve um tempo na história da
humanidade que as sociedades eram organizadas em torno da figura da mãe e as
relações não eram monogâmicas. Porém, à medida que o ser humano conheceu a
agricultura, que se fixou em determinado território, a divisão das tarefas de
acordo com gênero passaram a ocorrer. Mais tarde, estabelecida a propriedade
privada e conhecida a participação do homem na reprodução, o corpo e a
sexualidade da mulher são tolhidos como mecanismo de assegurar que os bens da
família seriam herdados pelos filhos legítimos. Nasce, portanto, a família
patriarcal, que pune até mesmo com morte a adúltera, enquanto ao homem lhe é
permitido manter relações extraconjugais.
Mesmo perdurando por séculos, desde a Roma Antiga, a
família patriarcal foi uma imposição cultural sobre povos e diversas culturas.
Numa pesquisa lúcida, a historiadora Silvia Federeci em “Calibã e a bruxa”
mostra que o incipiente capitalismo percebeu a necessidade de controle da
mulher, haja vista que ela que forneceria mão de obra barata, desde que produzisse
em grande quantidade. Consequência:
mulheres que conheciam métodos contraceptivos, que evitavam filhos, que
praticassem o aborto, todas elas poderiam ser queimadas nas fogueiras sob a
justificativa de prática de bruxaria. Durante anos a ideia de “doce, recatada e
do lar” foi duramente introjetada, fazendo parecer normal a mulher ter inúmeros
filhos e obediência ao marido.
Outra característica da família patriarcal era a defesa
de rituais religiosos. Mulher deveria casar-se virgem, os filhos eram educados com
base nos princípios da Igreja Católica, e se possível, a casa deveria ter um
altar de oração. Defendia-se um culto a Deus, mas em contrapartida, negras e
indígenas eram violentadas sexualmente, reconhecia-se ou não filhos fora do
casamento, a esposa vivenciava o estupro marital ou a violência doméstica.
Em “A elite do
atraso” o sociólogo Jessé de Sousa nos conta sobre os impactos do Brasil
Colonial na estrutura de nosso Brasil atual. Dentre as passagens, o autor
relata que com o advento da abolição da escravidão, havia um projeto de
embranquecimento de nossa sociedade e excluir a população negra fazia parte
desse plano. Imigrantes europeus chegam em centenas de navios e ao
desembarcarem, passam a ocupar tarefas braçais antes exercidas pelos
escravizados. As negras continuavam como babás e empregadas, mas na ausência de
ocupações para os trabalhadores negros, muitos se direcionam para a vadiagem ou
para o crime. Ganha envergadura a família chefiada por mulheres, principalmente
negras e moradoras da periferia... uma imagem comum na contemporaneidade.
Do Brasil República para cá muitas coisas aconteceram. O
movimento feminista conseguiu a aprovação de métodos contraceptivos, a mulher
passou a ocupar cada vez mais espaço no mercado de trabalho, aprovaram a lei do
divórcio (1977), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA 1990), o Estatuto
do Idoso (2003), a Lei Maria da Penha (2006), casais homoafetivos tiveram o
direito assegurado de contrair união estável (2011). Essas mudanças trouxeram
inúmeras outras no cotidiano familiar. Se antes a relação entre pais e filhos
se organizava no medo e nos castigos físicos, atualmente houve maior
possibilidade de resolução dos conflitos com base no diálogo. Recentemente o
idoso não tinha nem direitos resguardados e hoje há um estatuto que lhe protege
e muitas vezes são os idosos o arrimo de família e que cuidam das gerações mais
novas. Apesar números lastimáveis de violência doméstica no Brasil, ainda sim,
hoje temos uma lei que nos protege e mais canais de denúncia.
Se por um lado a compreensão e as configurações de
famílias mudaram, a mudança não pode se estacionar. O comercial bonito de
margarina não é igual para todos e nem precisa ser. A cada cidadão, cabe olhar
para sua família e tentar criar um ambiente de paz, confiança, respeito,
diálogo e apoio. Em relação ao Estado cabe realizar políticas públicas que
realmente tragam dignidade, seja investimento em Programas de habitação; seja
distribuindo melhor as riquezas; seja reduzindo a carga horária dos
trabalhadores e trabalhadoras, de modo que as pessoas consigam vivenciar mais a
paternagem e maternagem. O processo continua histórico, basta pensarmos qual
modelo de sociedade queremos, que podemos imaginar qual família precisamos
ainda construir.
Ana Paula Ferreira
Pós graduada em História Contemporânea;
Militante do grupo feminista Mulheres pela
Democracia
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