Fico pensando às vezes como ensinamos as
crianças a ser injustas e aceitar a desigualdade. Não que eu ache o ser humano
bom por natureza, mas faça o teste: mostre simultaneamente balas a duas
crianças de quatro anos. Para uma entregue uma bala apenas e para outra um pote
cheio. A que se sentiu desfavorecida com certeza reclamará. Isso inclusive é
tema de pesquisa de Harvard desenvolvida em sete países, mostrando que
independente da cultura as crianças possuem senso de justiça.
Contudo, com o tempo as crianças se
inserem no nosso ritmo de viver e ensinamos que a menina deve ajudar a mãe nos
afazeres domésticos enquanto o irmão assiste TV ou se diverte com os amigos.
Justificamos que o presente de Natal é um carrinho de plástico made in China enquanto do primo é um
vídeo game porque o papai Noel quis, ou na melhor das hipóteses, explicamos que
a renda de cada família é diferente, mas não falamos o porquê da desigualdade
social. Reforçamos que o cabelo crespo deve ser escondido, cortado, alisado,
mas o cabelo liso da vizinha deve ser objeto de admiração.
Assim nossas crianças se tornam adultas
que naturalizam as injustiças. Ensinamos tão bem ao longo dos anos que criamos
condições para se acostumarem com a ideia de que iates e jatos não possuem
impostos e coincidentemente estão nas mãos dos mais ricos. Em contrapartida,
anualmente o brasileiro comum paga o IPVA de seus veículos. Torna-se aceitável
que mineradoras em Minas Gerais não contribuam com o ICMS, que o governo salve
bancos, ou até mesmo que o ministro da economia Paulo Guedes chame os
funcionários públicos de “parasitas”. Esses mesmos que se aquietam perante as
megalomaníacas oportunidades concedidas aos altos escalões da sociedade, se
duvidar dirão que os professores são doutrinadores, ficarão horrorizados com os
trabalhadores sem terra que lutam por Reforma Agrária e farão uso do famoso
discurso raso da meritocracia.
Tudo isso é absurdamente internalizado
pela grande maioria, pois nos acomodamos ano a ano a esse sistema capitalista
desigual, ao ponto de defender que burguesia tenha privilégios enquanto os
direitos são subtraídos da classe trabalhadora. Situação análoga de tratamento
diferenciado é percebida em Minas, no qual o governador Zema anunciou aumento
de 42% aos profissionais da segurança pública enquanto os demais são
negligenciados sob pretexto de ajuste fiscal. Apesar dessa discrepância,
milhares de servidores estaduais estão em silêncio perturbador sobre o fato.
Para o não envolvimento em defesa da
profissão ocorre um duplo movimento de negação à greve. Primeiro, há a
diplomacia de não entrar no assunto: abstém-se das reuniões que tratarão do
tema, justifica que há outras estratégias sem ser a greve, mas não participa de
nenhuma. O segundo movimento é de discursar de que greve não adianta e assim desapercebe
que os direitos trabalhistas foram conquistas dos trabalhadores que nos
antecederam, que alguns sofreram violência policial e outros tantos presos ou
até mortos.
Paralisa-se no medo de perder alunos,
mas não observa que estamos perdendo cidadãos, ensinando pelo exemplo sobre
passividade, o comportamento alheio a discussões políticas, e condicionamentos a
uma ação ordeira de meros cumpridores de normas. Somos bons cumpridores de
nossas funções, entretanto que consigamos não perder nossa capacidade reflexiva
de médio e longo prazo. Antônio Balduíno é um personagem de Jorge Amado que
aprendeu que greve era uma luta mais bonita e mais forte do que as lutas que travava
como malandro ou boxeador. Descobriu que é uma luta de quem não quer ser
escravo, é uma luta de união, em solidariedade aos trabalhadores, em defesa da
liberdade. Também espero que esse sentido seja recuperado e possamos nos unir
como professores, servidores públicos, trabalhadores. Só assim como educadora
ficarei feliz, lutando por igualdade e deixando o testemunho vivo desse
princípio para que as novas gerações resgatem o senso de justiça que nós
adultos fomos capazes de retirar.
Ana Paula Ferreira
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