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quinta-feira, 2 de maio de 2024

Carta ao meu pai

 


Você é terra.

Tem pessoa que é ar, outras água, algumas fogo. Mas você sem sombra de dúvida é terra. E tal como a terra silenciosa, o senhor era lacônico, de poucas palavras, de quem mais observava do que falava e quando conversava nos dizia sobre o passado, as notícias da TV, a natureza, as passagens da Bíblia.

O passado estava fincado no senhor que nem a marca do arado na terra. Tinha o seu modo tradicional de vestir, sempre de calça de Oxford, camisa e botina. Não se sentia bem em comprar algo enquanto o objeto anterior não estivesse totalmente gasto e por mais que ganhasse roupas, ficariam guardadas até que de fato julgasse justo usar. Foi de uma geração que a “palavra dada não se volta atrás” e de uma inteligência prática de quem se põe a resolver qualquer desafio sem precisar consultar Youtube.

Assim como a terra chegou antes dos outros elementos, o senhor era extremamente pontual. A bem da verdade é que chegava antes e daí que nossos ponteiros, viravam e mexiam estavam desajustados e eu dificilmente conseguia acompanhar o seu tempo, que era o da natureza, de acordar com o nascer do sol e dormir também cedo. Nesse ritmo, assim que o senhor percebia que estava com a bateria social baixa, voltava para seu refúgio, contemplando os bichos e as plantas, afinal seu mundo estava ali, nas suas terras, pois o senhor saiu da roça, mas a roça não saiu do senhor.

Não é sem razão que tudo o que plantava, nascia, vigorava e a gente teve a benção de viver uma infância e adolescência com comida diretamente da horta: chás, chuchu, couve, abóbora, mamão, limão, maracujá, banana e tantos outros alimentos orgânicos. A facilidade de plantar era a mesma que a de construir casas. Da terra eram erguidas suas construções, na qual o senhor acompanhava a parte hidráulica, elétrica, de alvenaria e o que era apenas esboço num papel, se transformava em quartos, cozinha, quintal. Quando não plantou, construiu casas; quando não construiu casas, vendeu sementes para as fazendas da região. Lembro que o senhor colocava as sacas de braquiara no seu Chevette para fazer as entregas e depois, ao me buscar na escola, eu muito tonta, ficava com vergonha ao ver o carro sujo. Com o tempo que percebemos a bobeira quando tentamos apagar quem somos e da onde viemos.

Essa vergonha não era vivida pelo senhor. Era autêntico e sempre foi. Era firme nas convicções que nem a solidez da rocha. Foi sempre terra até na pouca flexibilidade, na intransigência em fazer as coisas do seu modo, na teimosia. Por ser terra, a gente que precisava se aproximar do seu mundo de Jornal Nacional, de horário para ver o jogo de futebol, da sua rotina. O senhor não se mobilizava. Mas ali estava para qualquer coisa. Terra que era, sempre estava no mesmo lugar.

E a terra, que lhe era tão familiar, tudo brotava, atraindo tucanos, papagaios e dezenas de outros pássaros que para lá voavam. Em comparação, o interesse do senhor não era de voar, e não faltavam convites de viagem ou de passeios. Enquanto seus irmãos iam para os Estados Unidos o senhor me contava orgulhoso que nunca iria para lá.

Eu, em contrapartida, me sentia um pouco que nem essas aves livres, que podiam conhecer tantas coisas e ao voltar, trocariam as histórias pelo seu acolhimento. O senhor, por sua vez, tinha gosto de apreciar a natureza que cresceu em meio ao concreto, e assim, mirar os passarinhos retornando e partindo, retornando e partindo.

Difícil agora é retornar e não te ver. Difícil é saber se serei boa semeadora que nem o senhor foi... Aliás, na nossa última conversa, o senhor contou novamente a parábola do semeador e depois terminou dizendo “De que adianta jogar a semente na pedra? Precisamos saber onde semear”.

Muita coisa está germinando em minha alma desde sua partida. Ficam os conselhos, as lembranças, faz morada a música sertaneja que o senhor tanto gostava. Se antes o senhor chorava ao ouvir “Travessia do Araguaia” porque lembrava do tio Zezé, hoje sou eu quem choro pelo boi que morreu para dar passagem aos mais novos e fico na esperança que nós, as gerações que precedem, possamos deixar a terra um local mais bonito para se viver.

Obrigada, pai!

E não esquece que te amo.


Esse texto virou capítulo do livro "Cartas para meu pai" da Editora Literíssima, publicado em 2024. 
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