Você é terra.
Tem pessoa que é ar, outras água, algumas
fogo. Mas você sem sombra de dúvida é terra. E tal como a terra silenciosa, o
senhor era lacônico, de poucas palavras, de quem mais observava do que falava e
quando conversava nos dizia sobre o passado, as notícias da TV, a natureza, as
passagens da Bíblia.
O passado estava fincado no senhor que nem
a marca do arado na terra. Tinha o seu modo tradicional de vestir, sempre de
calça de Oxford, camisa e botina. Não se sentia bem em comprar algo enquanto o
objeto anterior não estivesse totalmente gasto e por mais que ganhasse roupas,
ficariam guardadas até que de fato julgasse justo usar. Foi de uma geração que
a “palavra dada não se volta atrás” e de uma inteligência prática de quem se põe
a resolver qualquer desafio sem precisar consultar Youtube.
Assim como a terra chegou antes dos outros
elementos, o senhor era extremamente pontual. A bem da verdade é que chegava
antes e daí que nossos ponteiros, viravam e mexiam estavam desajustados e eu
dificilmente conseguia acompanhar o seu tempo, que era o da natureza, de acordar com o nascer do sol e dormir também cedo. Nesse ritmo, assim que o senhor percebia que
estava com a bateria social baixa, voltava para seu refúgio, contemplando os
bichos e as plantas, afinal seu mundo estava ali, nas suas terras, pois o
senhor saiu da roça, mas a roça não saiu do senhor.
Não é sem razão que tudo o que plantava,
nascia, vigorava e a gente teve a benção de viver uma infância e adolescência
com comida diretamente da horta: chás, chuchu, couve, abóbora, mamão,
limão, maracujá, banana e tantos outros alimentos orgânicos. A facilidade de
plantar era a mesma que a de construir casas. Da terra eram erguidas suas
construções, na qual o senhor acompanhava a parte hidráulica, elétrica, de
alvenaria e o que era apenas esboço num papel, se transformava em quartos,
cozinha, quintal. Quando não plantou, construiu casas; quando não construiu
casas, vendeu sementes para as fazendas da região. Lembro que o senhor colocava
as sacas de braquiara no seu Chevette para fazer as entregas e depois, ao me
buscar na escola, eu muito tonta, ficava com vergonha ao ver o carro sujo. Com
o tempo que percebemos a bobeira quando tentamos apagar quem somos e da onde
viemos.
Essa vergonha não era vivida pelo senhor.
Era autêntico e sempre foi. Era firme nas convicções que nem a solidez da rocha.
Foi sempre terra até na pouca flexibilidade, na intransigência em fazer as
coisas do seu modo, na teimosia. Por ser terra, a gente que precisava se
aproximar do seu mundo de Jornal Nacional, de horário para ver o jogo de
futebol, da sua rotina. O senhor não se mobilizava. Mas ali estava para
qualquer coisa. Terra que era, sempre estava no mesmo lugar.
E a terra, que lhe era tão familiar, tudo
brotava, atraindo tucanos, papagaios e dezenas de outros pássaros que para lá
voavam. Em comparação, o interesse do senhor não era de voar, e não faltavam
convites de viagem ou de passeios. Enquanto seus irmãos iam para os Estados
Unidos o senhor me contava orgulhoso que nunca iria para lá.
Eu, em contrapartida, me sentia um pouco
que nem essas aves livres, que podiam conhecer tantas coisas e ao voltar,
trocariam as histórias pelo seu acolhimento. O senhor, por sua vez, tinha gosto
de apreciar a natureza que cresceu em meio ao concreto, e assim, mirar os
passarinhos retornando e partindo, retornando e partindo.
Difícil agora é retornar e não te ver. Difícil é saber se serei boa semeadora que nem o senhor foi... Aliás, na nossa última conversa, o senhor contou novamente a parábola do semeador e depois terminou dizendo “De que adianta jogar a semente na pedra? Precisamos saber onde semear”.
Muita coisa está germinando em minha alma
desde sua partida. Ficam os conselhos, as lembranças, faz morada a música
sertaneja que o senhor tanto gostava. Se antes o senhor chorava ao ouvir
“Travessia do Araguaia” porque lembrava do tio Zezé, hoje sou eu quem choro
pelo boi que morreu para dar passagem aos mais novos e fico na esperança que
nós, as gerações que precedem, possamos deixar a terra um local mais bonito
para se viver.
Obrigada, pai!
E não esquece que te amo.
Esse texto virou capítulo do livro "Cartas para meu pai" da Editora Literíssima, publicado em 2024.
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