Páginas

sábado, 27 de abril de 2024

Educação de gênero nas escolas

 

 

Começo com dois dados: Brasil é o 5º país em feminicídio e o país que mais mata população LGBT no mundo. Diante disso, imaginemos o medo de assumir-se gay, de ser rejeitado pela família, de apanhar na rua apenas por andar de mãos dadas com quem se gosta. Imaginemos, uma de nós mulheres, morrer apenas por sermos mulher. Por isso, é injusto quando tentam silenciar a escola de um compromisso social e a acusam de praticar ideologia de gênero ou que deve ensinar apenas o currículo propedêutico.

Escola não pratica ideologia de gênero. Até porque esse termo foi empregado pela primeira vez pelo Papa João Paulo II em ataque aos movimentos feministas, como se essas fossem avessas à ideia de família. Esse conceito colou e qualquer trabalho que a escola faça de refletir os papéis sociais entre homens ou mulheres, violência e desigualdade de gênero é compreendido como uma afronta à liberdade dos pais na educação dos filhos, em discursos de “meu filho, minhas regras”, sob entendimento de que filho é objeto, é posse, é propriedade.

Escola é um espaço republicano e como tal preza pela coletividade. A contribuição das famílias pode ocorrer no Projeto Político Pedagógico, nas reuniões, nos Conselhos, Associação de Pais, mas não é no berro, não é na intimidação, não é estigmatizando professores como doutrinadores. Como espaço republicano a escola deve caminhar de mãos dadas com a democracia e com o bem comum. Nesse sentido, o objetivo não é destruir a heterossexualidade, mas sim da temática de identidade (não ideologia) de gênero e orientação sexual não ser apagada.

Basta lembrar que no artigo 205 da Constituição Federal deixa-se claro que a educação visa o desenvolvimento do sujeito, da sua cidadania e qualificação para o trabalho. Como será o desenvolvimento do sujeito que não se entende na sua sexualidade? Como ocorre o desenvolvimento da cidadania se há permissividade com o desrespeito e com a violência contra pessoas que não seguem o padrão heteronormativo?

Então, por lei, pela Constituição Federal, não há como a escola dar apenas aula de Trigonometria, Química Orgânica ou Oração Subordinada. Não venham nos falar que a questão de valores é atributo apenas das famílias, pois se assim bastasse, não teríamos níveis abismais de morte de mulheres e pessoas LGBTQIAPN+. É necessário um trabalho em rede e pensar em rede é extremamente orgânico e necessário para tratar de problemas sociais e a escola, por sua vez, sendo um espaço privilegiado de socialização, tem sua responsabilidade na formação de uma nova sociedade.

Como então a escola pode construir condições com vistas a igualdade de gênero? Primeiro se abastecer de materiais de leitura, compreender conceitos, tanto para lidar melhor com as juventudes (no plural para lembrarmos da diversidade do que é ser jovem), como para construir o perfil republicano. Reforço isso porque por mais que cada pessoa tenha a sua fé, seu modo de ver a vida, na escola a perspectiva não é caseira, não é do quintal da nossa casa, é no cumprimento de leis, na defesa dos Direitos Humanos, da coletividade, de princípios basilares para se viver em sociedade.

E tendo em vista que a escola segue leis, que busquemos esse respaldo legal. A Base Nacional Comum Curricular foi estrangulada na sua redação com cortes das palavras “orientação sexual” e “identidade de gênero”. Por outro lado, na Lei de Diretrizes e Bases 9394/96, no seu artigo 26, tem-se o seguinte registro “Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos”. Assim sendo, a escola, com base nas suas demandas locais, pode sim incluir no seu currículo a discussão de assuntos que lhe façam sentido.

Como isso pode ser feito? Primeiro ponto é que não se resolve com palestra. Palestra dificilmente deixa dever de casa, dificilmente tem um caráter de um desenvolvimento contínuo. É o mesmo problema de falar sobre feminismo apenas no 8 de março. Se a intenção é reverter a lógica de desigualdade porque destinar apenas uma semana para falar da mulher e o restante do ano contamos a história de generais, imperadores, escritores, cientistas, todos eles homens cis, geralmente brancos e heterossexuais? Docentes que querem subverter a lógica de opressão social, articulam pauta classista, de gênero e de raça costurando com o currículo oficial. Isso é possível! Vamos ensinar Estatística? Por que não interpretar gráficos que representem a gritante violência de gênero? O conteúdo é Revolução Francesa? É importante falar que no período que homens defendiam a ideia de liberdade, fraternidade e igualdade, ironicamente guilhotinaram Olympe de Gouges porque defendia direito das mulheres. O ensino será sobre a Revolução Russa? Precisamos urgente enfatizar que uma das hipóteses da data 8 de março é porque as tecelãs russas foram as ruas pedir por pão e justiça social em greve que antecedeu a Revolução. O ensino é sobre a Segunda Guerra Mundial? Deixar às claras que comunistas e homossexuais foram perseguidos, porque o fascismo mata esses dois grupos.

Há inúmeras possibilidades de articulação curricular: resgatar a importância de mulheres e população LGBT na ciência, na literatura, no esporte; refletir sobre a linguagem estereotipada; em alimentação problematizar os padrões estéticos e os danos à saúde. Contudo, além de compreensão de conceitos por parte dos educadores, além de amparo na lei e de reorganização curricular é fundamental a mudança do clima escolar. Há espaço acolhedor para denúncias? Há campanhas de conscientização sobre as violências? Incentiva-se a formação de coletivos juvenis, grêmios ou assembleias? É colocado em debate o controle dos corpos, inclusive sobre a vestimenta estudantil, ou apenas a roupa da menina que é censurada?

Os campos de concentração foram bem planejados por engenheiros. Enfermeiras conseguiam cumprir tecnicamente seu papel no extermínio de milhares de corpos. Médicos realizavam as tarefas médicas que eram incumbidos pelos nazistas. Por isso, já salientava Adorno, que não basta apropriação do conhecimento se nosso trabalho será para o apagamento, para a violência, para o genocídio. Não há neutralidade na educação e nunca haverá e se queremos uma sociedade longe do que foi Auschwitz, que nos repensemos, enquanto profissionais e seres humanos.

 

Ana Paula Ferreira

Supervisora da rede estadual e escritora

Texto publicado no Jornal da Cidade 27/04/2024

Nenhum comentário:

Postar um comentário