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domingo, 30 de abril de 2023

O Novo Ensino Médio: é preciso fechar a torneira

 



Tem um livro que gosto muito que é o “Conto da Aia”. Trata-se de uma distopia na qual poucas mulheres conseguem gerar um filho e são transformadas em propriedade de famílias ricas para perpetuarem o patrimônio, mediante os herdeiros. O livro é narrado em primeira pessoa e quando a protagonista buscas pistas sobre como tudo começou, se dá conta que as mudanças nunca são instantâneas, é como uma banheira com água quente, que é possível levar a morte, caso o aquecimento seja gradual. 

Assim foi com o que chamamos de “Novo Ensino Médio”, que já está sendo gestado há algum tempo sem que nos déssemos conta, pois independente de assumir-se como propedêutico ou ensino profissional, há o que Tomaz Tadeu da Silva chama de currículo oculto, ou melhor, o que a escola não deixa escancarado, mas ensina através de seus discursos, posturas, comportamentos. Ora, sendo a hegemonia cultural organizada pelos ditames neoliberais, muitas vezes, se contribuí com essa ideologia, sem perceber.

Isso ocorre com o que vou chamar de pedagogia da conformação e pedagogia da desinformação. No primeiro caso, há um conjunto de ações na educação, nas quais o sujeito se mostra resignado, aceita a situação e até mesmo naturaliza. Exemplos não faltam. Ao invés da universidade pública tomar a frente na formação docente continuada, fundações e empresas passam a cumprir esse papel, mas nem é feita a pergunta sobre o quanto do cofre público foi destinado a isso. Embora haja uma lei de 2008 sobre o piso salarial, há caso de governantes que além de não cumprirem, recorrem à justiça para não pagar e enquanto isso, milhares de educadores ficam quietos. Iniciativas de privatizar a gestão de escolas estaduais começam a acontecer, mas como não é na unidade na qual se trabalha, não há o incômodo. Todo esse nosso apagamento enquanto cidadãos, esse silenciamento de nossas vozes é ensinado aos alunos, que nos observam e vão aprendendo a não se rebelar perante as injustiças.

Na complementação dessa inércia está a pedagogia da desinformação, que mostra um desprezo pelo saber e uma ênfase apenas em caráter prático, de modo acrítico, com vistas à adaptação e por isso, são comuns falas no âmbito educacional de não é necessário ensinar determinado conteúdo, pois os alunos nunca vão usar isso na vida. Uma das consequências é o avanço do negacionismo, sob defesas absurdas, tais como “A Terra é plana”, “o Brasil foi melhor durante a ditadura” ou o “aquecimento global foi inventado pela mídia”. Um risco que pode ocorrer nessa ênfase utilitarista é que ao invés de haver uma sequência didática na qual o conteúdo seja apresentado gradativamente de modo a construir habilidades cada vez mais complexas, as aulas viram noticiários de TV e num dia fala-se de meio ambiente, no outro de sexualidade, e no dia seguinte sobre violência no trânsito, mas nada com profundidade, tudo raso, sem conexão, e nessa poluição o que é importante de fato se perdeu no meio de tanto outros assuntos. É como se no excesso de informação, gerasse uma cegueira branca, pois não é a ausência de luminosidade, mas justamente luz em grandes proporções, semelhante ao que é vivenciado pelas personagens de Saramago no livro “Ensaio sobre a cegueira”, pois embora fosse uma sociedade urbana, que utilizasse tecnologias modernas, as pessoas perderam a capacidade de enxergar, de se perceber, de se humanizar.

Novamente aqui o Novo Ensino Médio se encaixa, pois na nova configuração curricular há um excesso de componentes curriculares, alguns inclusive de existência questionáveis, tais como “bolo de pote” ou “como se tornar um milionário”, enquanto disciplinas científicas perdem carga horária. Quais as consequências? Temos quatro principais: 1) maior distância entre o ensino da rede privada e o da rede pública, lembrando das diversas demandas estruturais da escola pública; 2) flexibilização trabalhista, pois o professor passa a lecionar em diversos componentes pedagógicos que não estão alinhados a sua graduação; 3) alterações pedagógicas na elaboração de livros, formação docente e ENEM ; 4) e construção do indivíduo neoliberal.

Nesse ponto, tanto a pedagogia conformista, que dá sequência na aula como se nada acontecesse em termos de desmonte de direitos sociais, quanto a pedagogia da desinformação, que trata o saber como algo dispensável, estão mostrando de maneira muitas vezes oculta a apatia pela coisa pública, a despreocupação com o futuro da sociedade, o individualismo em se furtar da defesa sistemática da escola pública, laica e de qualidade, permitindo que as empresas avancem sobre esse espaço cada vez mais.

Se não queremos nem a conformação, nem a desinformação, se o nosso objetivo é a transformação da sociedade com mais justiça social, na garantia de um Estado cumpridor de seu papel de concretizar direitos civis, políticos e sociais, é hora de fechar a torneira da água quente que está nos queimando aos poucos.

Esse controle de impedir a saída de água em alta temperatura é essencial. É a pausa necessária, é o fôlego fundamental para que a sociedade civil organizada se posicione e amadureça propostas sobre essa importante etapa da Educação Básica. Ao invés da arbitrariedade da medida provisória que rege o Novo Ensino Médio, é imprescindível uma consulta popular ampliada, buscando tornar o Ensino Superior acessível a alunos da classe popular e contribuindo na formação de sujeitos compromissados com o mundo. 

 

Ana Paula Ferreira

Supervisora da rede estadual


Texto publicado no Jornal da Cidade 03/05/2023

sexta-feira, 14 de abril de 2023

Precisamos falar sobre o Kevin: quem é Kevin?

 

Imagem retirada do site racismoambiental.net.br 

        “Precisamos falar sobre Kevin” é o nome de um filme que trata sobre um jovem com perfil de perversão. Sem empatia, nem demonstração de carinho ou de sentimento de culpa, Kevin manipula, mente, manifesta prazer na dor alheia. Ele planeja um massacre e declara que uma das intenções era receber o holofote da fama, uma vez que sabe que um número expressivo de pessoas consome audiências sangrentas e sensacionalistas.

            Kevin é esse rapaz. Meticuloso, astuto e diante desse comportamento frio, muitos acabam por atribuir que a responsabilidade seja individual, de um sujeito desviante da norma social.

            Mas em que medida nossa sociedade também não tem elevados índices de perversão? Quando nos preocupamos mais com a história do assassino do que com as vítimas, o que indicamos com isso? Ao consumir ou produzir discursos de ódio ou notícias falsas que modelo social estamos construindo? Quando as famílias não possuem diálogo, ninguém se interessa pelo cotidiano uns dos outros, não há afeto, o que essas pessoas estão comunicando entre si?

            Alguns elementos de Kevin podem estar em nós, pertencentes a uma cultura narcísica, de restrição à participação social, acostumados que somos ao individualismo. Aliado a isso, um Brasil que tem em sua gênese colonial o genocídio dos povos originários, as marcas irreparáveis de uma escravidão que foi uma das últimas a ser abolida, e a morte de mulheres, que nos coloca no lastimável ranking mundial de 5º lugar de feminicídio.

            Ora, mas se temos enquanto seres humanos condições sociais que nos possibilitam a frieza no trato com o outro ou um histórico de Brasil declaradamente violento, por que o crescimento de ataques às escolas foi maior nos últimos anos?

            Múltiplos fatores podem ser elencados, mas não tem como deixar de mencionar o crescimento do discurso de ódio, validado inclusive por personalidades públicas e concomitante, um aumento de 270% de grupos nazistas em 3 anos. Cabe lembrar que nazismo é um regime da extrema direita, violento e que tem cooptado através da internet um público jovem, sedento por visibilidade, vínculos e valorização.

            É importante chamar a atenção que foram ataques “às escolas” e não apenas “na” escola. Não aconteceu em shopping, símbolo do capitalismo, nem ataque a metrô, símbolo das metrópoles. E o que a escola ainda representa? Local do convívio com a diferença, de encontro com a diversidade, onde a democracia tem um enorme potencial, o que é algo inaceitável por ultraconservadores que tentam silenciar professores e currículos. Além disso, o massacre em escola também é um indicativo da necessidade de gerar o caos, o pânico, o medo e junto a isso, a preocupação em se armar.

            Assim, para os acionistas da Taurus, para os “Senhor das Armas” não adianta liberar o porte de armas se as pessoas não se sentem inseguras o suficiente para se armarem. Essa foi a conclusão que Michel Moore chegou no documentário “Tiros em Columbine” na (ir)responsabilidade do discurso midiático que propaga veementemente o medo para gerar a necessidade de aquisição de armas, câmaras e todos aparatos para as pessoas se blindarem umas contra as outras, afinal o inimigo pode estar em qualquer lugar. No interesse capitalista em vender armas sobrepondo o valor da vida, alguma semelhança com o personagem Kevin?

            Contra a lei do mais forte e contra a ideia do “cada um por si” é necessário uma segurança que seja PÚBLICA, com alto nível de preparo técnico e de abordagem humana, de modo que consigam exercer com zelo suas obrigações perante o povo brasileiro, na defesa da vida e da justiça. Reforço que isso é um trabalho fora das escolas, na vigilância das mediações, na utilização da inteligência policial para prevenção de crimes. Só isso basta? Claro que não. Faz-se necessário uma política que seja ampla, porque onde a sociedade é mais desigual mais a violência brota. Portanto, é imprescindível a valorização salarial, geração de renda e de emprego, investimentos em educação, saúde, segurança pública e regulamentação da mídia.

            Esse último é um ponto nevrálgico! Enquanto não houver um regramento da internet e da comunicação de massa, enquanto for possível a propagação de notícias falsas, ou o acesso a canais que potencializam a violência e a perseguição a grupos mais vulneráveis, haverá o destaque na sociedade de todo esgoto humano passando em céu aberto, sem controle, sem pudor, sem sentimento de culpa, mostrando que Kevin está mais presente do que imaginamos.

            Enquanto isso não é uma realidade, que a família, pais e mães abracem seus filhos, mostrem o quanto são importantes, sejam presentes. E… também estejam na vida em sociedade para defesa e luta por uma sociedade mais justa. Afinal, não há como escolher entre “criar um filho bom para o mundo ou um mundo bom para o filho”. É urgente e necessário que sejam as duas coisas.

 

Ana Paula Ferreira

Supervisora da rede estadual

Mãe da Isabela de 11 anos

Texto publicado no Jornal da Cidade 14/04/2023

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Transporte público e o acesso à cidade

             


            Eu trabalho na zona sul de Poços de Caldas desde 2008 e uma coisa que sempre me chamou a atenção era o hábito dos alunos dizerem que gostavam de vir para a cidade. Vou repetir: gostavam de vir para a cidadeNão falavam para o centro da cidade. É como se diante da distância de 8 quilômetros não se considerassem pertencentes a Poços de Caldas ou se sentissem estrangeiro na própria terra.

Mas é compreensível esse tipo de pensamento, afinal a história da nossa cidade com seus balneários de grande estilo arquitetônico, hotéis e cassinos de luxo, evidencia uma opulência que se contradiz com a segregação de moradores de baixa renda que foram empurrados para os bairros mais distantes, sob pressão do valor do imóvel. O problema é que essa mudança das regiões mais centrais não foi acompanhada por uma vivência num espaço acolhedor. Cabe lembrar, por exemplo, que na inauguração do Conjunto Habitacional não havia creche, nem escola, nem rua asfaltada e a falta de água era uma constância. Em linhas gerais: era um bairro que servia como um imenso dormitório urbano daqueles que trabalhavam no centro, mas não usufruíram de seus bens.

Na música “Cidadão” interpretada por Zé Geraldo, há o trecho no qual o construtor civil olha para o prédio e se lembra das dificuldades e das “4 condução, duas para ir e duas para voltar”. E nessa distância entre o produto do trabalho e o trabalhador, tentam nos fazer crer que não devemos participar daquilo que ajudamos a construir.

E isso não impacta apenas na marginalização social, a qual, diga-se de passagem, ficará pior com a privatização dos pontos turísticos. O outro impacto é a alienação. Alienação é estar alheio a algo, e pela corrente marxista é um termo utilizado para mostrar quando o trabalhador não se reconhece no próprio produto do seu trabalho, atribuindo a outros o que foi fruto do seu esforço.

Não é a prefeitura que cuida de jardins, que asfalta ruas, que limpa canos de distribuição de água. Não são construtoras que fazem edifícios. Não é o comércio que vende. Para tudo isso acontecer teve a mão do homem e da mulher, de trabalhadores muitas vezes invisíveis. É certo que há aqueles que participam mais a frente do direcionamento, da tomada de decisão, mas se não fosse a energia despendida pelos trabalhadores a cidade não teria crescimento, movimento, serviços nem nada disso.

Ora, sabendo da importância dos trabalhadores onde está a valorização dos cidadãos poços caldenses de baixa renda? Como terão acesso ao que foi produzido com os altos preços do transporte público? E isso não está acontecendo apenas no trajeto bairro/ centro, como também no acesso à escola.

É o caso da escola Padrão, que atua na região sul, uma área estimada em 60 mil habitantes. Situada no bairro Parque das Nações, a distância com alguns bairros nos quais atende, pode chegar a mais de 3 quilômetros e o problema de acessibilidade se intensifica em 2023 por falta de ônibus escolar. Isso porque até o ano passado havia uma parceria entre município e rede estadual, seguindo o disposto na Lei 10.709 de 2003, no seu artigo 3º. Porém, esse ano, diante do Novo Ensino Médio que amplia o tempo escolar, nossos estudantes não mais saem no mesmo horário que os da rede municipal, acarretando não apenas em grandes probabilidades de evasão escolar, como na insegurança de famílias, isso porque, adolescentes de 14 e 15 anos saem às 18h10 da escola.

O que estamos ensinando com isso? Que o direito à educação pode não ser acessado, pode não ser cumprido. E não estou falando de poucas famílias nessa situação, porque de acordo com respostas levantadas via formulário, há em torno de 200 estudantes que precisariam do transporte e não podem custear.

É preciso transporte público de qualidade e com tarifas mais reduzidas. É preciso a acessibilidade a bens culturais e comerciais da cidade. É preciso transporte escolar para que nossos estudantes façam o trajeto casa e escola em segurança. É preciso vontade política para defender que a cidade deve ser usufruída por todos.

Ana Paula Ferreira

Supervisora da rede estadual 


Texto publicado no Jornal da Cidade 7/04/2023