Há inúmeras lendas
sobre a criação do homem e muitas convergem de que o ser humano foi criado do
barro. Barro, material flexível e com tamanha plasticidade que permite vários
contornos e reconfigurações. A partir dele se molda, dá forma, transforma e reforma,
criando um objeto mutável pelas leis da ação externa. E assim, o ser humano, concebido
nas mitologias como oriundo da argila se apresenta: imprevisível, dinâmico,
atendendo aos condicionantes externos, mas não sem certa resistência permitida
pela sua matéria plástica.
A ilustração disso pode
ser encontrada na mitologia ioruba, do povo situado onde hoje compreende a
Nigéria. Tentando criar o ser humano do ferro o orixá Oxalá não obteve êxito,
pois o ferro era rígido demais. Depois, ao usar a água como matéria-prima seu
objetivo tornou-se um fracasso, pois o objeto não constituía uma forma
definida. O sucesso adveio quando utilizou o barro e moldou o ser humano.
Não somos, portanto nem
tão endurecidos nem tão maleáveis, o que nos torna em grande sentido sujeitos e
assujeitados, criadores e criação de um contexto que interfere na nossa
identidade, a qual não está posta nem fechada, mas semiaberta para o mundo e
transformando o mesmo.
Esta abertura acontece,
por exemplo, quando a criança situada no meio urbano de uma cidade de médio
porte e moradora da periferia se defronta com uma realidade que não é a sua,
mas se interessa em captar essa nova (es)cultura.
Habituada que está com
o lápis e o papel se diverte na manipulação da argila. Se no manuseio da folha a
criança faz o rabisco, o nome, o texto ou o desenho com traços e dentro de um
espaço bidimensional, no barro o movimento de pinça não basta. Na escultura há
o encontro da unha e de cada dedo para com o objeto, o tato é a pedra de toque
para se perceber a textura e a necessidade de mais ou menos água e a paciência
é treinada para se dar forma ao pensamento que se também se cria e se recria
através da ação das mãos.
Uma inteligência que
supera o abstracionismo, partindo da concretude da matéria amorfa para lhe
fornecer corpo numa relação entre saber técnico e arte que os indígenas
aprofundaram tão bem através das cerâmicas artisticamente desenhadas e cujo
saber deve ser não somente valorado como objeto de estudo de nossas crianças.
Quando a criança molda
o barro representa o gesto da criação, pois coloca nele seu toque, sua firmeza
e sensibilidade, suas marcas e suas ações. Mas, essas ações não estão
isoladas... Representam todo o universo cultural que a criança está exposta,
traz a memória de suas raízes, de sua personalidade e por isso, a criança cria
diante de sua criação e se inova com os procedimentos utilizados por outros
grupos.
Uma forma concreta de
apresentar às crianças a cultura indígena: sem estereotipias e com imenso valor
simbólico em que criador e criatura se misturam.
Ana Paula Ferreira
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