Começo com dois dados: Brasil é o 5º país em feminicídio e o
país que mais mata população LGBT no mundo. Diante disso, imaginemos o medo de assumir-se
gay, de ser rejeitado pela família, de apanhar na rua apenas por andar de mãos
dadas com quem se gosta. Imaginemos, uma de nós mulheres, morrer apenas por
sermos mulher. Por isso, é injusto quando tentam silenciar a escola de um
compromisso social e a acusam de praticar ideologia de gênero ou que deve
ensinar apenas o currículo propedêutico.
Escola não pratica ideologia de gênero. Até porque esse termo
foi empregado pela primeira vez pelo Papa João Paulo II em ataque aos
movimentos feministas, como se essas fossem avessas à ideia de família. Esse
conceito colou e qualquer trabalho que a escola faça de refletir os papéis
sociais entre homens ou mulheres, violência e desigualdade de gênero é compreendido
como uma afronta à liberdade dos pais na educação dos filhos, em discursos de
“meu filho, minhas regras”, sob entendimento de que filho é objeto, é posse, é
propriedade.
Escola é um espaço republicano e como tal preza pela
coletividade. A contribuição das famílias pode ocorrer no Projeto Político
Pedagógico, nas reuniões, nos Conselhos, Associação de Pais, mas não é no
berro, não é na intimidação, não é estigmatizando professores como
doutrinadores. Como espaço republicano a escola deve caminhar de mãos dadas com
a democracia e com o bem comum. Nesse sentido, o objetivo não é destruir a
heterossexualidade, mas sim da temática de identidade (não ideologia) de gênero
e orientação sexual não ser apagada.
Basta lembrar que no artigo 205 da Constituição Federal
deixa-se claro que a educação visa o desenvolvimento do sujeito, da sua cidadania
e qualificação para o trabalho. Como será o desenvolvimento do sujeito que não
se entende na sua sexualidade? Como ocorre o desenvolvimento da cidadania se há
permissividade com o desrespeito e com a violência contra pessoas que não
seguem o padrão heteronormativo?
Então, por lei, pela Constituição Federal, não há como a
escola dar apenas aula de Trigonometria, Química Orgânica ou Oração
Subordinada. Não venham nos falar que a questão de valores é atributo apenas
das famílias, pois se assim bastasse, não teríamos níveis abismais de morte de
mulheres e pessoas LGBTQIAPN+. É necessário um trabalho em rede e pensar em
rede é extremamente orgânico e necessário para tratar de problemas sociais e a
escola, por sua vez, sendo um espaço privilegiado de socialização, tem sua
responsabilidade na formação de uma nova sociedade.
Como então a escola pode construir condições com vistas a
igualdade de gênero? Primeiro se abastecer de materiais de leitura, compreender
conceitos, tanto para lidar melhor com as juventudes (no plural para lembrarmos
da diversidade do que é ser jovem), como para construir o perfil republicano.
Reforço isso porque por mais que cada pessoa tenha a sua fé, seu modo de ver a
vida, na escola a perspectiva não é caseira, não é do quintal da nossa casa, é
no cumprimento de leis, na defesa dos Direitos Humanos, da coletividade, de
princípios basilares para se viver em sociedade.
E tendo em vista que a escola segue leis, que busquemos esse
respaldo legal. A Base Nacional Comum Curricular foi estrangulada na sua
redação com cortes das palavras “orientação sexual” e “identidade de gênero”. Por
outro lado, na Lei
de Diretrizes e Bases 9394/96, no seu artigo 26, tem-se o seguinte registro “Os currículos da
educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base
nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em
cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas
características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos
educandos”. Assim sendo, a escola, com base nas suas demandas locais, pode
sim incluir no seu currículo a discussão de assuntos que lhe façam sentido.
Como isso pode ser feito? Primeiro ponto é que não se resolve
com palestra. Palestra dificilmente deixa dever de casa, dificilmente tem um
caráter de um desenvolvimento contínuo. É o mesmo problema de falar sobre
feminismo apenas no 8 de março. Se a intenção é reverter a lógica de
desigualdade porque destinar apenas uma semana para falar da mulher e o
restante do ano contamos a história de generais, imperadores, escritores,
cientistas, todos eles homens cis, geralmente brancos e heterossexuais?
Docentes que querem subverter a lógica de opressão social, articulam pauta
classista, de gênero e de raça costurando com o currículo oficial. Isso é
possível! Vamos ensinar Estatística? Por que não interpretar gráficos que
representem a gritante violência de gênero? O conteúdo é Revolução Francesa? É
importante falar que no período que homens defendiam a ideia de liberdade,
fraternidade e igualdade, ironicamente guilhotinaram Olympe de Gouges porque
defendia direito das mulheres. O ensino será sobre a Revolução Russa? Precisamos
urgente enfatizar que uma das hipóteses da data 8 de março é porque as tecelãs
russas foram as ruas pedir por pão e justiça social em greve que antecedeu a
Revolução. O ensino é sobre a Segunda Guerra Mundial? Deixar às claras que
comunistas e homossexuais foram perseguidos, porque o fascismo mata esses dois
grupos.
Há inúmeras possibilidades de articulação curricular:
resgatar a importância de mulheres e população LGBT na ciência, na literatura,
no esporte; refletir sobre a linguagem estereotipada; em alimentação problematizar
os padrões estéticos e os danos à saúde. Contudo, além de compreensão de
conceitos por parte dos educadores, além de amparo na lei e de reorganização
curricular é fundamental a mudança do clima escolar. Há espaço acolhedor para
denúncias? Há campanhas de conscientização sobre as violências? Incentiva-se a
formação de coletivos juvenis, grêmios ou assembleias? É colocado em debate o
controle dos corpos, inclusive sobre a vestimenta estudantil, ou apenas a roupa
da menina que é censurada?
Os campos de concentração foram bem planejados por
engenheiros. Enfermeiras conseguiam cumprir tecnicamente seu papel no
extermínio de milhares de corpos. Médicos realizavam as tarefas médicas que
eram incumbidos pelos nazistas. Por isso, já salientava Adorno, que não basta
apropriação do conhecimento se nosso trabalho será para o apagamento, para a
violência, para o genocídio. Não há neutralidade na educação e nunca haverá e
se queremos uma sociedade longe do que foi Auschwitz, que nos repensemos,
enquanto profissionais e seres humanos.
Ana Paula Ferreira
Supervisora da rede estadual e
escritora
Texto publicado no Jornal da Cidade 27/04/2024