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terça-feira, 22 de março de 2022

A mulher e o sistema capitalista um diálogo das obras Calibã e a Bruxa e O Conto da Aia

 



  • Resumo

O presente artigo faz um diálogo entre duas obras, uma teórica, de Silvia Federici (2017), e outra literária, de Margaret Atwood (2017), mostrando os caminhos que o capitalismo define para a mulher, entre o extermínio e o controle de corpos. Para esse comparativo, há um breve histórico do capitalismo e sua problematização em relação a gênero.
PALAVRAS-CHAVE: Capitalismo. Mulheres. Igreja. Estado. Violências.

Link     https://seer.ufu.br/index.php/neguem/article/view/65098

  • Ana Paula Ferreira
  • Fernanda Mendes Resende
  • Maria Cláudia da C. F. S. D’A. de Andrades

DOI: 

https://doi.org/10.14393/CEF-v34n2-2021-11

domingo, 20 de março de 2022

Greve: potencial educativo

           


            Em 2006, quando li o livro “Professora sim, tia não!” ficou em mim que ensinamos pelo exemplo da greve, sobre democracia, direitos trabalhistas e tantas outras coisas. O que eu não sabia na época e só fui entender mais tarde é que não ensinamos apenas, pois a greve tem um enorme potencial pedagógico, e professores em greve também aprendem. E o que o ato de fazer greve nos ensina? Poderia enumerar diversas questões, mas vou sinalizar cinco: clareza de quem é o destinatário da greve, o protagonismo, o esperançar, o compromisso com o coletivo e a consciência de classe.

Quando buscamos que nossos estudantes tenham um olhar crítico, para além do que está no texto, de perceberem com clareza a origem das desigualdades e os sensibilizamos para que saiam da condição de inércia para a de denúncia, estamos possibilitando uma educação que fortaleça a participação cidadã, a vida em coletividade, a preocupação com a defesa dos direitos humanos e de uma sociedade mais justa e sustentável. Porém, o papel dos professores engajados com a vida pública, está muito além em tacar a bola para as novas gerações resolverem problemas dos mais velhos.

Daí que ao escolher pela participação no movimento grevista o professor abre duas vantagens para ter sua demanda atendida. Primeiro porque traz o incômodo da greve, de fazer com que mais pessoas saibam e discutam o problema. Segundo porque terá mais tempo disponível para se engajar nas ações grevistas, haja vista que sem elas, corre-se o risco de o movimento grevista sucumbir e até mesmo não adquirir o apoio da sociedade, tão necessário em tempos de perseguição à funcionalismo público. As atividades são várias, sejam elas de confecção de cartazes, panfletagem, textos para jornais, cartas à deputados, conversa com a comunidade, visita às escolas que não aderiram, manifestações. Essa vida participativa ensina que o ato de educar vai além da escola, isso porque os donos do poder não estão sentados nos bancos escolares e devem ser esses os destinatários reais da nossa indignação.

Toda essa atuação orgânica no movimento nos abre outro aprendizado. Saímos da condição de assujeitados e nos tornamos sujeitos da história, daqueles que avaliam o contexto e analisam que é possível uma intervenção enquanto grupo, categoria, classe social e não os que apenas vão cumprindo a rotina, extremamente centrados no imediato.  Outro ensinamento é a sensação de esperança vinda pelas nossas mãos, e daí fugimos da condição do fatalismo histórico, do “não adianta de nada”. Exemplos disso não faltam, pois se hoje temos plano de carreira, concurso, obrigação de pagamento do piso salarial (mesmo que não cumprido), se deve ao fato de inúmeros professores e professoras terem deixado esse legado. Às vezes não conseguimos conquistas tal qual nossa esperança desejava, mas podemos ao menos levantar um muro simbólico contra o trator neoliberal que tudo quer devastar e assim, conseguimos barrar algumas destruições.

Por fim, a greve participativa nos convida a olhar as coisas para além do individualismo, tão presente nesse mundo do consumo, em que o indivíduo é posto acima do coletivo. Não significa que não devamos ter prioridades também com nossa saúde, nossos familiares, nossa vida pessoal. É comum em determinadas circunstâncias colocarmos o peso da balança maior na vida privada ou na vida pública e aliás, e fazer esse movimento de reflexão é saudável. Ninguém pede que o grevista tenha a mesma disciplina de militantes tal como foi o Marighella. Mas, a participação mostra força, evita sobrecarregar os companheiros que estão na ativa, permite que olhemos para o conjunto, para o contexto sócio-político, e nos esforcemos em nos doar em alguma proporção para essa história.  

Encerro com a questão da consciência de classe lembrando da primorosa peça de teatro “Eles não usam black tie”, que sob o pano de fundo da greve, mostra a relação conflituosa entre os que aderem ou não ao movimento. No final da peça, de modo bastante metafórico, a música de um sambista do morro é reconhecida no rádio, porém, os moradores identificam que a letra recebe o nome de outro músico. A produção mais valiosa de um artista foi roubada, nomeando outra pessoa no lugar. Trazendo para nossa atualidade, podemos comparar com o que produzimos... nosso trabalho acaba sendo roubado cada vez que desempenhamos zelosamente nossas funções, mas quem ganha o crédito é o governo, o qual nos retira o reconhecimento social e o reconhecimento financeiro. Somos saqueados anualmente, por um valor que deveríamos receber e não recebemos (uma defasagem de mais 50%), e enquanto isso, em contraposição, em 2019 o governo abriu mão de mais de 6 bilhões em impostos para diversas empresas.

Portanto, participar da greve, embora cansativo e extenuante, é um movimento que nos traz compensações de quem vive, participa, interage, aprende. Vale a pena seguir na luta.  

Ana Paula Ferreira - Educadora e grevista

Texto publicado no Jornal da Cidade, 18 de março de 2022 



quinta-feira, 17 de março de 2022

Passado, presente e futuro: sempre greve?


           

Foto: Professora de Arte Andrea Dalva (assembleia em BH 16/06/2022)

            
Onde a greve começa e onde ela termina? Ela termina? Ou termina para depois já começar outra? Como a greve nos atravessa? Ano de 1999. Esse foi meu último ano da Educação Básica e novamente uma greve foi deflagrada em Minas Gerais. Lembro da professora de Língua Portuguesa nos falando em aula com muita propriedade sobre gramática, literatura, vestibular e também da greve. Ela me chamava atenção por dois motivos. Primeiro porque ela tinha um pé calcado no futuro e outro no presente, e assim nos empurrava para que pensássemos na vida do pós Ensino Médio, mas sem que nos distanciássemos da leitura crítica do cotidiano, da luta diária, dos ataques que eram cometidos contra os trabalhadores. O segundo ponto de destaque era porque ela se mostrava uma imensa defensora do espaço público. Ela frisava que fazia questão que seu filho estudasse no ensino público e que ela, docente em duas redes diferentes, buscava trazer o mesmo plano de aula elaborado para escola privada para ser desenvolvido por seus alunos da escola David Campista. Sua prática antecedia o discurso e, portanto, não media esforços para que visitássemos livrarias, teatros, Instituto Moreira Salles, cinema. Ela dizia que os espaços devem ser democratizados e o acesso deve ser para todos.

            Hoje, ano de 2022, também sou educadora na rede pública, também estou em greve e também defendo o espaço público como forma de possibilitar que toda a riqueza simbólica produzida seja distribuída e não concentrada em apenas uma determinada classe social. Sei que muitos professores e professoras progressistas também se engajam nesse sentido, e até evitam a greve para que os estudantes não fiquem dias sem acesso ao conteúdo. Daí que volto na minha experiência escolar. A professora não se furtou de sua obrigação docente, de nos ensinar e nos ajudar na nossa formação linguística, literária, cidadã e de pensar em seus alunos. Por outro lado, também não abandonou seus colegas sozinhos no front da greve, nem se aconchegou no seu lar, enquanto outros iam para as ruas, assembleias ou manifestações.

Findada a greve, podemos traduzir novamente nossa preocupação com os estudantes, repondo com qualidade os dias paralisados, pois que espécie de defensores da escola pública que seríamos se defendêssemos apenas nossos salários, nossos direitos, nossas questões? É possível isso da nossa parte. Podemos continuar pensando no imediato, nos nossos estudantes e todas as suas demandas. Porém, é importante também uma preocupação com o médio e longo prazo, com questões que vão afetar a vida de todos, e, nesse momento, pensar sobre os serviços públicos é inadiável.

            Isso porque esse ano é específico. Por ser ano de eleição, os políticos observam se perdem ou não o poder perante o eleitorado. Portanto, é importante que outras escolas somem na luta, pois vão olhar números: quantos alunos estão sem aula, quantos professores estão em greve, quanto de aprovação se está perdendo. Na hora que o perfil autoritário perde o controle, o que faz? Aciona a força judiciária para suspender a greve e começa a atacar o funcionalismo público, como se o fato de possuirmos a estabilidade, tivéssemos que aceitar metade do que é o piso salarial.   

A educação não pede que o governo faça enormes esforços, até porque temos verba vinculada que é o FUNDEB, um fundo que provê nosso pagamento e que teve um crescimento de quase 40% desde 2019. Contudo, mesmo que a receita tenha aumentado, o governo mantém a política de onerar milhares de servidores da educação, cujo salário não acompanha a inflação. Além disso, foram 6,6 bilhões de recursos da educação que não foram investidos, e enquanto isso, faz 5 anos que os salários estão congelados.

O governador é um patrão temporário. Não temos o salário dele, nem tampouco seu poder político, nem a influência na mídia. Mas, uma hora ele sairá e nós ficaremos. Aliás, talvez por saber dessa condição do funcionalismo público e de nosso potencial de contraponto, que o atual governo esteja pressionando a Assembleia pela aprovação do Regime de Recuperação Fiscal, que nada mais é do que um pacote de ações que nos massacram enquanto trabalhadores. Nesse Regime há previsão de suspender o repasse do piso salarial, não haverá férias-prêmio, nem promoção por escolaridade, nem progressão na carreira por 9 anos. Concursos e salários ficarão congelados. Essa brutal Regime afeta trabalhador público, mas impacta também todos moradores da zona rural ou da zona urbana, que dependem da escola, da saúde ou da segurança pública, pois os cidadãos terão que conviver com uma precarização dos serviços, seja pela falta de servidor público, afinal não haverá concurso e a folha de pagamento ficará contida, ou pelas privatizações previstas que acabam por aumentar o valor dos serviços.

A greve existia na nossa infância, existiu na nossa adolescência e permeia nossa vida adulta. Existe diante da ineficiência do governo em conversar com a categoria. Pode ser que tenhamos a ideia de que elas são eternas, tal como o castigo de Sísifo que empurrava uma grande rocha até o topo de um monte e assim que a pedra caí, o processo se inicia tudo novamente. Mas, não é. Embora sejam cíclicas, não são iguais, nem nos motivos, nem na historicidade e por isso que com elas já avançamos em direitos e em outras, apenas barramos para que a devastação não fosse maior. Daí a importância de aprendermos com essas experiências, porque se defendemos a escola pública, não permitir a aprovação do Regime de Recuperação Fiscal é um dos caminhos urgentes.

Ana Paula Ferreira

Educadora e grevista

Texto publicado no Jornal da Cidade, 17 de março de 2022 e no Jornal da Mantiqueira 18 de março.
https://www.jornalmantiqueira.com.br/2022/03/18/passado-presente-e-futuro-sempre-greve/ 

terça-feira, 8 de março de 2022

Mulher, patriarcado e capitalismo

             


            Desde crianças somos marcados por violências veladas que definem o que podemos ou não fazer, ser, falar de acordo com nossa chegada ao mundo enquanto meninos ou meninas. Se por um lado, o garoto foi incentivado o tempo todo a ocupar o espaço público, seja nas brigas por causa de pipa ou num conflito de futebol de rua, a mulher foi a condicionada ao espaço doméstico: cuidar de bonecas, preparar comidinha. Não é sem razão que muitas profissões aceitáveis para o público feminino são um prolongamento do cuidar e por isso é tão comum a mulher enfermeira ou professora, mas não é visto como natural se são engenheiras ou deputadas.

Aceita-se a impulsividade, a energia, a força masculina em se posicionar, e por outro lado, criamos as meninas inseguras, doceis, amarradas no ideário da felicidade conjugal do “príncipe encantado”. Assim, se tornam vítimas fáceis de relacionamentos abusivos, desencorajadas em retrucar o patrão e consumidoras até mesmo compulsivas do setor de cosméticos e vestuários. Por fim, elas são, nós somos, segundo sexo (tomando por base o título do livro de Beauvoir) de três palavras no masculino: do marido ou pai, (na figura de esposas ou filhas), do mercado de trabalho (na posição de trabalhadoras e/ou consumidoras) e do Estado (no papel subalterno de cidadãs).

Essa opressão sentida em termos simbólicos ou físicos é o que marca a violência de gênero, o que é chamado por algumas feministas por “patriarcado”, ou seja, uma nítida demarcação de poder do homem na sociedade em relação a mulher, um problema de ordem estrutural, pois está na política, nas relações trabalhistas, na cultura e na nossa subjetividade.

            Contudo, embora tenhamos o patriarcado a séculos, ele não é igual em todas as épocas nem em todos lugares. Cito dois países para evidenciar de como a economia interfere na relação de gênero: Estados Unidos e Cuba. No caso do primeiro, as mulheres não contam com a salário maternidade, creches públicas são quase inexistentes e a porcentagem de mulheres no Congresso é menos que 30%. Em contrapartida, no país de economia socialista, a presença feminina em cargos políticos na Assembleia é mais de 50%, as creches são públicas, 100% das crianças são atendidas, liberando as mães para o trabalho. Além disso, a licença maternidade é de 4 meses e até que a criança complete um ano de idade há o benefício social que é pago para que algum tutor (mãe, pai ou avó) cuide da criança. O estudo técnico de Cláudia Virgínia Brito de Melo mostra alguns desses dados.

Por que a diferença? Porque de acordo com a linha neoliberal, o Estado deve intervir o mínimo possível, de modo que as empresas e os indivíduos possam operar por si só. A retórica é de democracia, mas a evidência na concretude e nas porcentagens é que a vida digna é apenas para usufruto de algumas. Uma ilustração disso é pensarmos nas inúmeras mulheres invisibilizadas vendendo de porta em porta os produtos de revistas de cosméticos em troca de um percentual ínfimo e sem nenhuma garantia trabalhista, enquanto poucas, na maioria das vezes brancas, são colocadas nas capas, como símbolo do poder, numa lógica de evidenciar o sucesso individual.

No Brasil além do patriarcado e do capitalismo, ambas estruturas que condicionam a mulher em papel subalterno, temos também outro fator: a questão de nosso subdesenvolvimento econômico, que empurra as mulheres pobres para serviços precarizados, de baixa remuneração e nem sempre com direitos trabalhistas garantidos. Assim a mulher é duplamente explorada, haja vista que sofre exploração por ser trabalhadora e por ser mulher, lembrando que seu salário é geralmente inferior ao do homem, mesmo realizando as mesmas funções. Somada a essa desigualdade econômica, a violência doméstica no Brasil mata mais que câncer e acidente de trânsito. Quando se destaca não apenas a condição de gênero, mas também a questão étnica, tem-se um dado ainda mais perverso contra a mulher negra, que representa 74% da violência de gênero no Brasil.

É importante percebermos que não diminuímos a violência simplesmente com leis mais enérgicas. É necessário que cidadãs usufruam de direitos políticos, econômicos e sociais. Já é comprovado na Sociologia que quanto mais investimento social, menos violência se tem, e por isso, que um feminismo branco, liberal, que apenas nos fale “Você pode ser o que quiser”, é um feminismo falso, ardiloso, porque deixa apenas a cargo do indivíduo um problema que é social, e assim, nada muda a situação de incontáveis mulheres que estão abaixo da linha da miséria, que são objetificadas pela sociedade como propriedade do marido, do mercado ou do Estado.  

Enquanto não conseguimos a superação de um modelo econômico de sociedade no qual o ser humano deixe de explorar o trabalho alheio, enquanto não superamos a abismal desigualdade entre homens e mulheres, é necessário um feminismo visionário transformador, tal como nos fala bell hooks, ou seja, aquele que não se coaduna nem com o capitalismo nem com o patriarcado, que fortalece as trincheiras na consolidação de políticas públicas e que não abandona as mulheres a própria sorte.

Ana Paula Ferreira

Texto publicado no Jornal Mantiqueira 08/03/2022
https://www.jornalmantiqueira.com.br/2022/03/07/mulher-violencia-e-economia/