Desde
crianças somos marcados por violências veladas que definem o que podemos ou não
fazer, ser, falar de acordo com nossa chegada ao mundo enquanto meninos ou
meninas. Se por um lado, o garoto foi incentivado o tempo todo a ocupar o
espaço público, seja nas brigas por causa de pipa ou num conflito de futebol de
rua, a mulher foi a condicionada ao espaço doméstico: cuidar de bonecas, preparar
comidinha. Não é sem razão que muitas profissões aceitáveis para o público
feminino são um prolongamento do cuidar e por isso é tão comum a mulher
enfermeira ou professora, mas não é visto como natural se são engenheiras ou
deputadas.
Aceita-se
a impulsividade, a energia, a força masculina em se posicionar, e por outro
lado, criamos as meninas inseguras, doceis, amarradas no ideário da felicidade conjugal
do “príncipe encantado”. Assim, se tornam vítimas fáceis de relacionamentos
abusivos, desencorajadas em retrucar o patrão e consumidoras até mesmo
compulsivas do setor de cosméticos e vestuários. Por fim, elas são, nós somos,
segundo sexo (tomando por base o título do livro de Beauvoir) de três palavras
no masculino: do marido ou pai, (na figura de esposas ou filhas), do mercado de
trabalho (na posição de trabalhadoras e/ou consumidoras) e do Estado (no papel
subalterno de cidadãs).
Essa
opressão sentida em termos simbólicos ou físicos é o que marca a violência de
gênero, o que é chamado por algumas feministas por “patriarcado”, ou seja, uma
nítida demarcação de poder do homem na sociedade em relação a mulher, um
problema de ordem estrutural, pois está na política, nas relações trabalhistas,
na cultura e na nossa subjetividade.
Contudo, embora tenhamos o
patriarcado a séculos, ele não é igual em todas as épocas nem em todos lugares.
Cito dois países para evidenciar de como a economia interfere na relação de
gênero: Estados Unidos e Cuba. No caso do primeiro, as mulheres não contam com
a salário maternidade, creches públicas são quase inexistentes e a porcentagem
de mulheres no Congresso é menos que 30%. Em contrapartida, no país de economia
socialista, a presença feminina em cargos políticos na Assembleia é mais de
50%, as creches são públicas, 100% das crianças são atendidas, liberando as
mães para o trabalho. Além disso, a licença maternidade é de 4 meses e até que
a criança complete um ano de idade há o benefício social que é pago para que
algum tutor (mãe, pai ou avó) cuide da criança. O estudo técnico de Cláudia
Virgínia Brito de Melo mostra alguns desses dados.
Por
que a diferença? Porque de acordo com a linha neoliberal, o Estado deve
intervir o mínimo possível, de modo que as empresas e os indivíduos possam
operar por si só. A retórica é de democracia, mas a evidência na concretude e
nas porcentagens é que a vida digna é apenas para usufruto de algumas. Uma
ilustração disso é pensarmos nas inúmeras mulheres invisibilizadas vendendo de
porta em porta os produtos de revistas de cosméticos em troca de um percentual
ínfimo e sem nenhuma garantia trabalhista, enquanto poucas, na maioria das
vezes brancas, são colocadas nas capas, como símbolo do poder, numa lógica de
evidenciar o sucesso individual.
No
Brasil além do patriarcado e do capitalismo, ambas estruturas que condicionam a
mulher em papel subalterno, temos também outro fator: a questão de nosso
subdesenvolvimento econômico, que empurra as mulheres pobres para serviços
precarizados, de baixa remuneração e nem sempre com direitos trabalhistas
garantidos. Assim a mulher é duplamente explorada, haja vista que sofre
exploração por ser trabalhadora e por ser mulher, lembrando que seu salário é geralmente
inferior ao do homem, mesmo realizando as mesmas funções. Somada a essa
desigualdade econômica, a violência doméstica no Brasil mata mais que câncer e
acidente de trânsito. Quando se destaca não apenas a condição de gênero, mas
também a questão étnica, tem-se um dado ainda mais perverso contra a mulher
negra, que representa 74% da violência de gênero no Brasil.
É
importante percebermos que não diminuímos a violência simplesmente com leis
mais enérgicas. É necessário que cidadãs usufruam de direitos políticos,
econômicos e sociais. Já é comprovado na Sociologia que quanto mais
investimento social, menos violência se tem, e por isso, que um feminismo
branco, liberal, que apenas nos fale “Você pode ser o que quiser”, é um
feminismo falso, ardiloso, porque deixa apenas a cargo do indivíduo um problema
que é social, e assim, nada muda a situação de incontáveis mulheres que estão abaixo
da linha da miséria, que são objetificadas pela sociedade como propriedade do
marido, do mercado ou do Estado.
Enquanto
não conseguimos a superação de um modelo econômico de sociedade no qual o ser
humano deixe de explorar o trabalho alheio, enquanto não superamos a abismal
desigualdade entre homens e mulheres, é necessário um feminismo visionário transformador, tal como nos fala bell hooks, ou seja, aquele que não
se coaduna nem com o capitalismo nem com o patriarcado, que fortalece as
trincheiras na consolidação de políticas públicas e que não abandona as mulheres
a própria sorte.
Ana Paula Ferreira
Texto publicado no Jornal Mantiqueira 08/03/2022
https://www.jornalmantiqueira.com.br/2022/03/07/mulher-violencia-e-economia/