Dia 19 de setembro o grande mestre brasileiro em educação completaria 100 anos. É uma alegria revisitar seus textos, porque dá a impressão que sempre há algo escondidinho entre uma linha e outra e que passa desapercebido numa primeira leitura. Aliás, se há um termo muito usual na obra de Freire é “leitura”, que além de juntar letras e compreender um texto, seria um movimento de ação e reflexão, no qual vão se juntando pistas econômicas, culturais, sociais e políticas, para se ler o mundo, objetivando-se intervenções compromissadas com a mudança para uma sociedade mais justa.
Sociedade
justa, de acordo com esse educador, seria quando superássemos as opressões de
classe social, de dominação do homem sobre a mulher, do branco sobre o negro e
todas as diversas formas que subtraem, que oprimem uns aos outros. A caridade é
necessária para suprir a fome, os desassistidos, mas “A grande generosidade
está em lutar para que, cada vez mais, estas mãos, sejam de homens ou de povos,
se estendam menos, em gestos de súplica (Freire, 1987).
E
como fazemos isso? Paulo Freire indica alguns caminhos. Um deles é entender que
o ser humano deva ser sujeito e não assujeitado, pois se há uma prescrição do
que deva ser feito para apenas o outro cumprir, continua-se a cisão na
sociedade tão comum e tão reforçada de que alguns devam pensar e outros apenas
obedecer. Justamente por acreditar na capacidade de pensar e agir, em relação
pautada na horizontalidade, no respeito ao senso comum como ponto de partida,
que Paulo Freire frisava que o ato educativo deva ser em comunhão.
O
contrário disso seria uma educação que objetifica o estudante, que reforça a
desigualdade, formando subcidadãos apáticos em relação a política; inseguros e
acríticos em relação aos patrões; mulheres ou homens cujos corpos e mentes
foram docilizados. Nos dicionários que essas pessoas levam consigo, palavras
como “liberdade”, “emancipação” e “resistência” estariam apagadas.
A
propósito, apagar e escrever são duas faces da mesma moeda. Enquanto a história
dos oprimidos é apagada dos livros, monumentos, mídia e da escola, a história
dos opressores é contada tão fortemente que repetimos em práticas coloniais sem
perceber. Quando não se apaga a história de resistência e de luta de um
determinado grupo social, ocorre também de seus feitos serem dissolvidos numa
outra narrativa, onde o “quem” e o “como” perdem espaço para que a ideologia de
exploração do grupo dominante impere.
Em
se tratando da educação não são raros o apagamento, o silenciamento e a
opressão quanto mais vulnerável for o grupo atendido. Isso pode ser ilustrado
quando se ignora os estudantes que possuem dificuldade de ensino ou no
tratamento excludente direcionado a alunos da classe popular. No campo da
gestão o discurso do opressor se manifesta quando diretores tendem naturalizar
a sobrecarga abusiva de trabalho ou supervisores que vivem estritamente em prol
da burocracia de ensino. Inclusive, na própria educação há áreas com mais
valorização do que outras, reforçando assimetrias.
A
EJA foi e talvez seja ainda a filha bastarda da educação até porque dar
visibilidade a ela é evidenciar o lado cruel do ensino regular que transfere
alunos de baixo aproveitamento para EJA, um problema estrutural de séculos de
uma educação sem substancial investimento e sem condições para lidar com a
inclusão de todos. Não é sem razão que há inúmeros escritos de Freire mostrando
sua preocupação com a EJA.
Sua
pedagogia não é clientelista, não se faz no assistencialismo, nem tampouco
abandona o estudante a própria sorte sob o discurso do “sempre evadiram, então
sempre será assim”. Compreende que o currículo é vasto e é papel do educador
selecionar conteúdos indispensáveis para uma leitura mais atenda da realidade,
sob um processo dialógico entre o pensar e o fazer, o micro e o macro, o local
e o global, educandos e professores.
100
anos de Paulo Freire nos mostram o quanto ele é atual em época de protofascismo
e de ultraconservadorismo religioso que impossibilitam esse diálogo tão
valoroso que ele defendia. Enquanto houver desigualdade haverá necessidade de
se falar desse educador pernambucano que nos aponta alguns caminhos para uma
libertação em comunhão. Por isso, Paulo Freire: presente!
Referência:
FREIRE, P.
Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 17ª ed., 1987.
Ana Paula Ferreira
Excelente texto, parabéns pelo poder de concisão.
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