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terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Dia Nacional da Família: o que comemorar e o que ainda avançar

            

             Oito de dezembro é comemorado nacionalmente o dia da família, instituído por um decreto de 1963. Passados quase 60 anos, o mais adequado seria a nomeação no plural, como “Dia das Famílias”, evidenciando as diversas configurações, haja vista que a noção de família é construída historicamente e, portanto, muda diante de diferentes parâmetros sociais, culturais e econômicos.  Aliás, diferente do que se advoga sobre a naturalidade do modelo tradicional, foi também uma forma de organização produzida propositalmente, com vistas a manutenção da herança.

            De acordo com Friedrich Engels na obra “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, houve um tempo na história da humanidade que as sociedades eram organizadas em torno da figura da mãe e as relações não eram monogâmicas. Porém, à medida que o ser humano conheceu a agricultura, que se fixou em determinado território, a divisão das tarefas de acordo com gênero passaram a ocorrer. Mais tarde, estabelecida a propriedade privada e conhecida a participação do homem na reprodução, o corpo e a sexualidade da mulher são tolhidos como mecanismo de assegurar que os bens da família seriam herdados pelos filhos legítimos. Nasce, portanto, a família patriarcal, que pune até mesmo com morte a adúltera, enquanto ao homem lhe é permitido manter relações extraconjugais.

            Mesmo perdurando por séculos, desde a Roma Antiga, a família patriarcal foi uma imposição cultural sobre povos e diversas culturas. Numa pesquisa lúcida, a historiadora Silvia Federeci em “Calibã e a bruxa” mostra que o incipiente capitalismo percebeu a necessidade de controle da mulher, haja vista que ela que forneceria mão de obra barata, desde que produzisse em grande quantidade. Consequência:  mulheres que conheciam métodos contraceptivos, que evitavam filhos, que praticassem o aborto, todas elas poderiam ser queimadas nas fogueiras sob a justificativa de prática de bruxaria. Durante anos a ideia de “doce, recatada e do lar” foi duramente introjetada, fazendo parecer normal a mulher ter inúmeros filhos e obediência ao marido.

            Outra característica da família patriarcal era a defesa de rituais religiosos. Mulher deveria casar-se virgem, os filhos eram educados com base nos princípios da Igreja Católica, e se possível, a casa deveria ter um altar de oração. Defendia-se um culto a Deus, mas em contrapartida, negras e indígenas eram violentadas sexualmente, reconhecia-se ou não filhos fora do casamento, a esposa vivenciava o estupro marital ou a violência doméstica.

            Em “A elite do atraso” o sociólogo Jessé de Sousa nos conta sobre os impactos do Brasil Colonial na estrutura de nosso Brasil atual. Dentre as passagens, o autor relata que com o advento da abolição da escravidão, havia um projeto de embranquecimento de nossa sociedade e excluir a população negra fazia parte desse plano. Imigrantes europeus chegam em centenas de navios e ao desembarcarem, passam a ocupar tarefas braçais antes exercidas pelos escravizados. As negras continuavam como babás e empregadas, mas na ausência de ocupações para os trabalhadores negros, muitos se direcionam para a vadiagem ou para o crime. Ganha envergadura a família chefiada por mulheres, principalmente negras e moradoras da periferia... uma imagem comum na contemporaneidade.

            Do Brasil República para cá muitas coisas aconteceram. O movimento feminista conseguiu a aprovação de métodos contraceptivos, a mulher passou a ocupar cada vez mais espaço no mercado de trabalho, aprovaram a lei do divórcio (1977), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA 1990), o Estatuto do Idoso (2003), a Lei Maria da Penha (2006), casais homoafetivos tiveram o direito assegurado de contrair união estável (2011). Essas mudanças trouxeram inúmeras outras no cotidiano familiar. Se antes a relação entre pais e filhos se organizava no medo e nos castigos físicos, atualmente houve maior possibilidade de resolução dos conflitos com base no diálogo. Recentemente o idoso não tinha nem direitos resguardados e hoje há um estatuto que lhe protege e muitas vezes são os idosos o arrimo de família e que cuidam das gerações mais novas. Apesar números lastimáveis de violência doméstica no Brasil, ainda sim, hoje temos uma lei que nos protege e mais canais de denúncia.

            Se por um lado a compreensão e as configurações de famílias mudaram, a mudança não pode se estacionar. O comercial bonito de margarina não é igual para todos e nem precisa ser. A cada cidadão, cabe olhar para sua família e tentar criar um ambiente de paz, confiança, respeito, diálogo e apoio. Em relação ao Estado cabe realizar políticas públicas que realmente tragam dignidade, seja investimento em Programas de habitação; seja distribuindo melhor as riquezas; seja reduzindo a carga horária dos trabalhadores e trabalhadoras, de modo que as pessoas consigam vivenciar mais a paternagem e maternagem. O processo continua histórico, basta pensarmos qual modelo de sociedade queremos, que podemos imaginar qual família precisamos ainda construir.


Ana Paula Ferreira

Pós graduada em História Contemporânea;

Militante do grupo feminista Mulheres pela Democracia

 


quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Mulheres pela democracia

Quando penso nesse título, penso no que ele significa para mim, sobre quais utopias desejo para as mulheres e sob qual democracia. Aliás, é interessante também observar a palavra “pela”, sugerindo algo inconcluso, que ainda está no horizonte, afinal se não vivemos numa ditadura, tampouco a democracia está consolidada. No meu imaginário a democracia real funcionária com um Executivo que promovesse políticas públicas emancipadoras, um Legislativo com um olhar atento às demandas do povo, um Judiciário que fizesse seu papel, sem fazer julgamento pautado na cor da pele, na roupa, ou gênero. Uma democracia que mobilizasse uma participação cada vez maior da sociedade civil organizada, na qual os bens sociais não fossem tratados como “favores”, mas como direitos e, portanto, públicos e de qualidade, em que o cidadão se sentisse protegido e confiasse no Estado como instância promotora de justiça social.

            Para alcançar uma democracia cada vez maior é necessário ser feminista, pois como já dizia bell hooks, “O feminismo é para todo mundo”. De acordo com a autora há dois tipos principais de compreensão do feminismo, o reformista e o revolucionário. O primeiro pretende avanço de pautas importantes, porém não questiona o sistema capitalista e se fôssemos resumir, poderíamos usar as três palavras de ordem da Revolução Francesa: igualdade, liberdade e fraternidade.

A igualdade se daria, por exemplo, na equiparação salarial entre homens e mulheres, na divisão das tarefas domésticas e no cuidado com os filhos. A ideia de liberdade está difundida nos discursos de estar com quem quiser, com a vestimenta que achar adequada, ocupar a profissão de interesse, ter o direito assegurado do aborto. Já a fraternidade para o movimento feminista foi readequada para sororidade, porém, bell hooks questiona se há sororidade de fato, enquanto mulheres brancas de poder se projetam profissionalmente e deixam os afazeres domésticos geralmente para uma mulher negra, sob opressão de classe e de raça.

Daí a importância de um feminismo que não questione apenas a injustiça de gênero, mas que busque acabar com o racismo, o elitismo e o imperialismo, num mundo no qual homens e mulheres interajam sem dominação. Esse é o feminismo revolucionário, que leva em conta as pautas do feminismo reformista, mas percebe ao mesmo tempo suas limitações.

Aliás, estamos vivenciando essas limitações de forma contínua, pois conquistas asseguradas em outros períodos são desafiadas na atual conjuntura. O aborto que é previsto em lei desde 1940 em casos de abuso sexual, foi duramente questionado em pleno ano de 2020, tornando a vida de uma menina de 10 anos, grávida do tio, um suplício ainda maior. Uma jovem denunciou um caso de estupro e foi humilhada pelo advogado do réu, num julgamento que abre precedentes para a contínua violência sexual. Embora legalmente haja um decreto de 2016 que regulamenta o uso do nome social, a ministra da Família, Mulher e Direitos Humanos discursa num formato binário, transfóbico e com uma visão míope sobre identidade e orientação sexual. Em 2015, sob gestão do PT, a política de enfrentamento à violência contra mulher deu um salto com a inauguração das Casas da Mulher Brasileira, que é um espaço de acolhimento às vítimas de agressão doméstica, entretanto, infelizmente em 2019, o presidente Bolsonaro publicou um decreto que desresponsabiliza o governo federal na manutenção desses espaços.  

O que isso significa para nós? Que a luta é contínua, enquanto as desigualdades não forem superadas, principalmente as pautadas no tripé classe, raça e gênero. Caso contrário, todos os avanços, correm o risco de sucumbir, pois serão propostas de governo e não uma política de Estado.

Por isso, em se tratando de segurança pública, dentro de uma perspectiva de um feminismo revolucionário, não há apenas a resistência para não sermos agredidas por nossos companheiros. Luta-se também por um sistema penitenciário que possibilite uma reeducação e humanização da população carcerária. Não se defende somente sermos médicas, advogadas, gerentes ou qualquer outra profissão que nos atraía. Defende-se que meninas e meninos tenham uma educação pública de qualidade e fácil acesso ao Ensino Superior se assim desejarem. Vai além da mulher ter remuneração equiparável ao homem, pois acredita-se que com a distribuição das riquezas seja possível que todos tenham um salário digno e numa jornada de trabalho reduzida que lhes possibilite conviver com a família, os amigos, ter tempo para o lazer, cultura e esporte. Levanta a bandeira de pautas que nos são específicas, mas sem perder o foco das questões de grande envergadura, que também nos são caras porque indiretamente ou diretamente também nos impactam no dia a dia.

Sabendo do que quero, posso pensar quais caminhos tomar e quais atalhos evitar. Se a utopia está distante, que eu me lembre que mulher e democracia são palavras de ação. Não se fez história da humanidade sem o protagonismo da mulher e menos ainda se faz democracia sem que nós sejamos também autoras.

 

Ana Paula Ferreira

Integrante do movimento feminista

“Mulheres pela Democracia”