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terça-feira, 5 de novembro de 2024

Controlar é colonizar




        Vicente, meu irmão, sempre foi uma pessoa calma, contemplativo, do tipo que gosta de se deslocar a pé ou de bicicleta. Contudo, começou a trabalhar num local que dista nove quilômetros da sua casa e eu como irmã mais velha fiquei preocupada de talvez ele estar se esforçando demais para ir e voltar pedalando.

O que fiz? Convenci de que era melhor ter uma moto. Ele queria? Não! Eu achei que era insegurança, medo de ousar, falta de perspectiva de futuro, ausência de ambição e que era necessário da minha parte incentivá-lo, buscar que vivesse para além do tempo presente. Consequência: a moto está no quintal com uma capa de chuva para protegê-la e meu irmão continua se transportando de bicicleta.

Ele não precisou falar nada verbalmente, mas percebi o quanto minha postura foi colonizadora. Avancei sobre o território de decisão dele, tal qual a Europa fez no mundo e considerei que a visão dele era errada, e, portanto, precisava ser superada.

Quantas coisas me passaram na cabeça com essa história e que compartilho aqui. Uma delas é o documentário “Escolarizando o mundo: o último legado do homem branco”, no qual é apresentada a ideia do quanto uniformizamos a educação num modelo ocidental, de produtividade, na arrogância que povos tradicionais necessitam de uma civilização.

Freud já dizia sobre o mal-estar na civilização que oprime nossos desejos e subjetividades, trazendo inúmeras infelicidades. Diante de uma sociedade que gira em torno do capital, do mercado, ludibria-se que a liberdade está na aquisição de uma moto, transformando um desejo autêntico (liberdade) em um desejo de consumo. Daí nos aprisionamos num trabalho alienado a fim de pagar uma dívida adquirida e depois de um tempo novamente volta a ausência de sentido, pois o consumo não preenche esse vazio.

Por isso, grupos originários não são bem vistos pelo sistema. Não são bárbaros, mas quebram a lógica de consumo de “corrida para vender cigarro e cigarro para vender remédio”, tal qual cantava Engenheiros do Hawaii. Vicente também rompe com essa ordem e não precisa gastar nem com moto, nem com academia porque não cedeu ao controle social e assim, permanece conectado com seu próprio ritmo e sem palavras, me fez refletir que embora eu defenda a liberdade, fui controladora, mesmo que eu critique o capitalismo, segui a bula produtivista.

O controle é colonizador. Em busca de uma produção insana, coloniza-se a terra, a natureza, os seres humanos, os corpos, as mentes. Aumenta-se exorbitantemente o lucro de alguns perante a baixa qualidade de vida da maioria da população que fica apartada de usa história, cultura, escolhas. O controle é o anabolizante para aumentar artificialmente os músculos; é o fertilizante químico que força as plantas no seu crescimento; é o hormônio aplicado nas vacas para geração de mais leite. Controlar é aumentar a velocidade de modo alucinado, ao ponto de nos enchermos de afazeres e estarmos na “sociedade do cansaço”.

O contraponto do controle é o respeito ao ritmo da natureza, ao ritmo alheio e ao nosso próprio ritmo, tal qual a pulsação que precisa de uma batida regular, para manter a vida. A observância desse ritmo traria uma educação mais atenta aos próprios estudantes para resgatar sua história e encorajá-los na resistência frente a monocultura curricular; contribuiria para uma sociedade que primasse pela preservação ambiental; acolheria as diversas formas de olhar o mundo como uma riqueza que temos para humanidade.

Controlar é minar escolhas, é diminuir o potencial criativo, é seguir na arbitrariedade de decidir pelo outro. Que eu consiga me lembrar disso, potencializando a autonomia e evitando outros tipos de motos guardadas na garagem.   

 

 

Ana Paula Ferreira

Educadora


Texto também publicado no Jornal da Cidade, 05 de novembro de 2024.

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Mulher na política

 Entrevista sobre a importância da mulher na política


https://globoplay.globo.com/v/12849425/  

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Quanto vale ou é por quilo?

 


Antes de situarmos o cenário de Minas, preciso explicar o título. “Quanto vale ou é por quilo?” é um filme de Sérgio Bianchi e traz a analogia entre a atualidade e o passado escravocrata de vidas tratadas como mercadoria. A comparação é perspicaz, pois identifica o lucrativo comércio de escravizados no período colonial e põe holofote em tempos atuais com a saga de diversas instituições e Organizações Não Governamentais (ONGs) que buscam sua fonte de riqueza mediante a pobreza alheia.

            Uma história é ambientada no século XVIII de uma escrava fugitiva, capturada pelo capitão do mato e, depois, num corte cronológico, há cenas contemporâneas de uma funcionária de ONG que corre perigo quando descobre o superfaturamento dos computadores do Projeto. Nesse sentido, em ambas situações o Estado é um aliado da elite econômica, a qual dita as regras, seja em relação à escravidão, seja em relação ao espaço aberto para as instituições privadas.

            Aliás, para satirizar o quanto as ricas senhoras ganham com a imagem de benfeitoria sobre os pobres, a capa do filme ilustra uma grã-fina, com seu porte elegante e sorriso de ostentação, e ao seu redor, crianças miseráveis pressionadas a posar para foto com os brinquedinhos descartáveis que acabaram de ganhar. Figura similar com a de governadores que se ajeitam em suas gravatas e ternos, centralizando-se em fotos na qual estudantes ficam a margem, enquanto as escolas são paulatinamente cada vez mais geridas por Organização da Sociedade Civil (OSC), em Projetos que não “Somam” em nada.

            O que significa na prática essa entrada agressiva das OSCs? Tem-se vários impactos que cabem ser mencionados. Um deles é a falta de transparência na contratação e na demissão, já que o vínculo passa a ser com a organização e não mais com o Estado. Nas escolas isso é visível na contratação de empresas para gerir a limpeza, parte administrativa e até mesmo a gestão escolar. Isso por si só já é um problema grave, pois a estabilidade para funcionários públicos é justamente para garantir a permanência do serviço prestado independentemente se houver a troca de poder no governo. Portanto, deixar esse contrato nas mãos das OSCs não se trata apenas da demissão de servidores que não compactuam com o governo eleito, mas a ausência da continuidade de política pública. E sim... nessa lógica, todos usuários do serviço público saem perdendo.

            Outro problema da presença das OSCs na educação é a fragilidade de uma gestão democrática. Escola é espaço de decisão política! Decidimos sobre metodologias, organização do planejamento, parcerias, formações pedagógicas, e tudo isso é uma decisão política entre acolher ou excluir, comprometer ou cumprir ordens, pensar na educação como bem comum ou como trampolim social. Quando a gestão é eleita, houve o reconhecimento por parte da equipe, uma confiança depositada num trabalho que julgaram como bom. Nesse sentido, se torna mais fácil a cobrança de cumprimento de um plano de gestão, ou de uma coerência entre o que se discursava e o que se cumpre. O problema de uma gestão não eleita é que carrega esse peso colonial, do autoritarismo, do não diálogo, do “obedeça” transcrita em metas infindáveis e “validadas” por avaliações externas. E sim... há uma ênfase numa gestão gerencial.

            E aliás, esse é outro impacto, pois o gerenciamento escolar por parte de uma OSC o critério deixa de ser pedagógico para ser empresarial. A equipe vai aos poucos deixando de olhar para sua comunidade e passa a olhar números, trazidos por avaliações que traçam critérios de eficiência como se a escola tivesse que sozinha, fazer “mudança de rotas” diante do feedback dos dados. E sim... o discurso vai se tornando mercadológico e cheio de estrangeirismo.

            Trazem conceitos do mundo corporativo porque as OSCs estão entrelaçadas a empresas privadas, mas se utilizam de recursos públicos para sua manutenção. Verbas, tal qual o FUNDEB, que seriam destinadas diretamente para escola pública, custeiam o funcionamento desses intermediários cujo objetivo é o lucro e, portanto, a formação republicana com vistas a cidadania e de aquisição de um saber comum, fica de escanteio.  Em Poços de Caldas, exemplo disso é o pagamento de mensalidades a unidades privadas da Educação Infantil ao invés de mais vagas no setor público.

            Neste ínterim, professores continuam sem o piso salarial e é frequente o adoecimento profissional, consequência de acúmulos de aula. Rema-se assim na direção contrária de Estados de Bem-Estar social que possuem em média o dobro de servidores públicos e valorizam financeiramente seus docentes, sob a lógica de se dedicarem a só uma escola e, portanto, construção de mais vínculo e continuidade de um trabalho com aquela comunidade atendida.

            Mas, será que isso importa? Quanto vale a nossa vida profissional ou dos e das estudantes? Ou será que é calculada em quilo? 

 

 

            Ana Paula Ferreira

Mestre em Educação e servidora da rede estadual


Texto também publicado no Jornal da Cidade do dia 09/08/2024 e no link 

https://www.jornaldacidade1.com.br/quanto-vale-ou-e-por-quilo/#:~:text=Uma%20hist%C3%B3ria%20%C3%A9%20ambientada%20no,superfaturamento%20dos%20computadores%20do%20Projeto.  



sexta-feira, 24 de maio de 2024

Pedagoga e o compromisso de conduzir a educação

         


          Vou colocar no feminino o nome da profissão, pois sabemos que essa tem a questão de gênero bem demarcada: é feita principalmente por mulheres! Pedagoga é a profissional que investiga, elabora, realiza práticas educativas que podem ocorrer em diversos espaços e não apenas o escolar. Isso porque enquanto seres humanos, somos animais políticos, sociais, construtores de cultura, de linguagem. Além da nossa capacidade de criar casas, poesias, tecnologias e várias outras coisas, podemos também ensinar e é dessa maravilha de partilhar saberes que a pedagoga se ocupa, possibilitando que as novas gerações se apropriem e recriem do que foi construído pelas gerações que as precederam.

            Não é sem razão que a origem da palavra é paidós (criança) e agogé (condução), para se referir às pessoas que acompanhavam os mais novos até a escola. Essa cena da condução é muito simbólica, pois é possível imaginar lá na Grécia Antiga, palco da etimologia da palavra, a figura de um adulto guiando, orientando a criança para ela chegar a seu destino, que é justamente o espaço privilegiado do saber, do conhecimento. Significa dar autonomia, de estar perto no seu período de desenvolvimento, mas sem sufocar; de ajudar nas trilhas do saber, mas sem infantilizar; de democratizar o que foi produzido pela humanidade.

            Nessa relação já existente entre o ensinar e o aprender, o desenvolvimento da criança e o contexto a que pertence; a pedagoga alia conhecimentos da psicologia com a sociologia; de visão de indivíduo, sem abrir mão de visão de mundo, entendendo que as coisas funcionam na mão de via dupla, na partilha, na troca seja entre pessoas, seja entre áreas. E por isso, que mesmo diante de uma sociedade ocidental que fez tanto apelo a um pensamento binário, que tanto valorizou um ponto em detrimento a outro, a Pedagogia traz em sua formação as condições de combinações, como se misturasse bem um ingrediente com o outro. Não joga tempero apenas às ciências, pois compreende o papel de sensibilização da arte, nem tampouco enaltece ciências da natureza, porque sabe que de pouco adianta desenvolvimento tecnológico sem desenvolvimento humano.

            Durante esse percurso ao conhecimento pedagoga equilibra pratos sem deixá-los cair, como se fosse uma malabarista. Traz a tradição do currículo, mas se coloca à disposição para as novidades trazidas pelos estudantes; cuida e educa; junta afeto com razão; alia o conhecimento erudito com o popular; ensina a leitura da palavra, levando em conta a leitura de mundo; faz tecitura do saber global com o local; atua num presente, com crianças, jovens, adultos, mas sem perder o foco de um plano de futuro.

            Lógico que para isso acontecer, o trabalho não é de apagar fogo. Discursos que romantizam tempo dispendido apenas em separar brigas, acudir aluno que passou mal ou família que precisou ser atendida de última hora, estão negando a fundamentação da práxis pedagógica entre o pensar e o fazer, o planejar e o realizar. E justamente pelo fato disso exigir estudo, reflexão, que pesquisadores como Libâneo defendem que a Pedagogia deva ser compreendida como “ciência da educação”, pois não basta lecionar, é necessário investigar as razões da dificuldade de aprendizagem; não basta acatar o que o diz o Conselho de classe, mas questionar os métodos de avaliação e didática que se mostram excludentes. Tampouco não adianta ter leveza no cotidiano escolar, quando não se questiona as amarras de opressão feitas na escola ou contra a escola. Como defende o professor Celso Vasconcelos... é preciso sim da alegria, mas de uma alegria crítica.

            Se por um lado não cabe a romantização, pois dociliza as microviolências sob roupagem de felicidade, no planejamento pedagógico é necessário o processo de desnaturalização, e daí a importância de acompanhar e reivindicar políticas públicas eficientes. Assim sendo, questionar as vagas insuficientes na Educação Infantil, a normalização de 45 alunos na sala de aula, a ausência de transporte escolar que acaba incidindo na evasão ou a falta do pagamento do piso salarial que implica que os professores trabalhem com mais turmas e, portanto, tenham menos tempo de se dedicar a apenas uma comunidade escolar.

À medida que o espaço se amplia, da sala de aula, para a gestão de uma escola ou para o trabalho em uma secretaria de educação, o trabalho de equilíbrio continua o mesmo, porém muda a quantidade de fatores que precisam ser observados a uma só vez. Orquestrar não é tarefa fácil. É mais cômodo deixar a banda tocar. Por outro lado, sem a mediação a banda vai desafinando, porque a harmonia entre os instrumentos de corda, de madeira, de metal ou de percussão precisam de uma condução, da mesma forma que na relação entre estudantes, professores, direção, funcionários administrativos, famílias, há a necessidade de uma liderança para não se perder o foco no aprendizado. A questão é: a pedagogia ao conduzir para o acesso a pensamento científico, artístico ou linguístico será apenas para um grupo privilegiado ou para todos?

Na resposta estão a ideologia e o caminho que tomaremos.

 

            Ana Paula Ferreira

Pedagoga egressa da UEMG,

(universidade em greve diante dos cortes do governo Zema).

Texto publicado no Jornal da Cidade 24/05/2024 

quarta-feira, 22 de maio de 2024

Aniversário

 Bom demais fazer aniversário!

É como se abrisse mais uma janela no tempo e a gente esperançasse novas fases.
O certo é que a ideia de sistematizar o tempo é bobeira. Invenção de historiadores pra controlar o tempo, como se ele fosse controlável.
O mais divertido é estar com pessoas queridas, família, amigos, pessoas que estiveram com a gente em tantas situações e param tudo pra vir brindar, comemorar e trazer a alegria pra perto da gente.
Se em algum momento eu estava com medo dos cabelos brancos, hoje quero só a preocupação de viver plenamente.
Um brinde a vida!

sexta-feira, 17 de maio de 2024

EDUCAÇÃO INCLUSIVA EM TEMPOS DE PANDEMIA

 

  

 EDUCAÇÃO INCLUSIVA EM TEMPOS DE PANDEMIA

Ana Paula FERREIRA

Christiane Ferreira Joaquim PEREIRA2

Giovana Carine LEITE3

Thaís Ronsini de CARVALHO 4


Trabalho apresentado na Jornada Científica e Tecnológica e Simpósio de Pós-Graduação do IFSULDEMINAS, 12ª Jornada Científica e Tecnológica do IFSULDEMINAS. 

LINK: CLICAR AQUI 


quinta-feira, 2 de maio de 2024

Carta ao meu pai

 


Você é terra.

Tem pessoa que é ar, outras água, algumas fogo. Mas você sem sombra de dúvida é terra. E tal como a terra silenciosa, o senhor era lacônico, de poucas palavras, de quem mais observava do que falava e quando conversava nos dizia sobre o passado, as notícias da TV, a natureza, as passagens da Bíblia.

O passado estava fincado no senhor que nem a marca do arado na terra. Tinha o seu modo tradicional de vestir, sempre de calça de Oxford, camisa e botina. Não se sentia bem em comprar algo enquanto o objeto anterior não estivesse totalmente gasto e por mais que ganhasse roupas, ficariam guardadas até que de fato julgasse justo usar. Foi de uma geração que a “palavra dada não se volta atrás” e de uma inteligência prática de quem se põe a resolver qualquer desafio sem precisar consultar Youtube.

Assim como a terra chegou antes dos outros elementos, o senhor era extremamente pontual. A bem da verdade é que chegava antes e daí que nossos ponteiros, viravam e mexiam estavam desajustados e eu dificilmente conseguia acompanhar o seu tempo, que era o da natureza, de acordar com o nascer do sol e dormir também cedo. Nesse ritmo, assim que o senhor percebia que estava com a bateria social baixa, voltava para seu refúgio, contemplando os bichos e as plantas, afinal seu mundo estava ali, nas suas terras, pois o senhor saiu da roça, mas a roça não saiu do senhor.

Não é sem razão que tudo o que plantava, nascia, vigorava e a gente teve a benção de viver uma infância e adolescência com comida diretamente da horta: chás, chuchu, couve, abóbora, mamão, limão, maracujá, banana e tantos outros alimentos orgânicos. A facilidade de plantar era a mesma que a de construir casas. Da terra eram erguidas suas construções, na qual o senhor acompanhava a parte hidráulica, elétrica, de alvenaria e o que era apenas esboço num papel, se transformava em quartos, cozinha, quintal. Quando não plantou, construiu casas; quando não construiu casas, vendeu sementes para as fazendas da região. Lembro que o senhor colocava as sacas de braquiara no seu Chevette para fazer as entregas e depois, ao me buscar na escola, eu muito tonta, ficava com vergonha ao ver o carro sujo. Com o tempo que percebemos a bobeira quando tentamos apagar quem somos e da onde viemos.

Essa vergonha não era vivida pelo senhor. Era autêntico e sempre foi. Era firme nas convicções que nem a solidez da rocha. Foi sempre terra até na pouca flexibilidade, na intransigência em fazer as coisas do seu modo, na teimosia. Por ser terra, a gente que precisava se aproximar do seu mundo de Jornal Nacional, de horário para ver o jogo de futebol, da sua rotina. O senhor não se mobilizava. Mas ali estava para qualquer coisa. Terra que era, sempre estava no mesmo lugar.

E a terra, que lhe era tão familiar, tudo brotava, atraindo tucanos, papagaios e dezenas de outros pássaros que para lá voavam. Em comparação, o interesse do senhor não era de voar, e não faltavam convites de viagem ou de passeios. Enquanto seus irmãos iam para os Estados Unidos o senhor me contava orgulhoso que nunca iria para lá.

Eu, em contrapartida, me sentia um pouco que nem essas aves livres, que podiam conhecer tantas coisas e ao voltar, trocariam as histórias pelo seu acolhimento. O senhor, por sua vez, tinha gosto de apreciar a natureza que cresceu em meio ao concreto, e assim, mirar os passarinhos retornando e partindo, retornando e partindo.

Difícil agora é retornar e não te ver. Difícil é saber se serei boa semeadora que nem o senhor foi... Aliás, na nossa última conversa, o senhor contou novamente a parábola do semeador e depois terminou dizendo “De que adianta jogar a semente na pedra? Precisamos saber onde semear”.

Muita coisa está germinando em minha alma desde sua partida. Ficam os conselhos, as lembranças, faz morada a música sertaneja que o senhor tanto gostava. Se antes o senhor chorava ao ouvir “Travessia do Araguaia” porque lembrava do tio Zezé, hoje sou eu quem choro pelo boi que morreu para dar passagem aos mais novos e fico na esperança que nós, as gerações que precedem, possamos deixar a terra um local mais bonito para se viver.

Obrigada, pai!

E não esquece que te amo.


Esse texto virou capítulo do livro "Cartas para meu pai" da Editora Literíssima, publicado em 2024. 
Link para aquisição: 
https://www.literissima.com.br/product-page/carta-parameu-pai 

 

sábado, 27 de abril de 2024

Educação de gênero nas escolas

 

 

Começo com dois dados: Brasil é o 5º país em feminicídio e o país que mais mata população LGBT no mundo. Diante disso, imaginemos o medo de assumir-se gay, de ser rejeitado pela família, de apanhar na rua apenas por andar de mãos dadas com quem se gosta. Imaginemos, uma de nós mulheres, morrer apenas por sermos mulher. Por isso, é injusto quando tentam silenciar a escola de um compromisso social e a acusam de praticar ideologia de gênero ou que deve ensinar apenas o currículo propedêutico.

Escola não pratica ideologia de gênero. Até porque esse termo foi empregado pela primeira vez pelo Papa João Paulo II em ataque aos movimentos feministas, como se essas fossem avessas à ideia de família. Esse conceito colou e qualquer trabalho que a escola faça de refletir os papéis sociais entre homens ou mulheres, violência e desigualdade de gênero é compreendido como uma afronta à liberdade dos pais na educação dos filhos, em discursos de “meu filho, minhas regras”, sob entendimento de que filho é objeto, é posse, é propriedade.

Escola é um espaço republicano e como tal preza pela coletividade. A contribuição das famílias pode ocorrer no Projeto Político Pedagógico, nas reuniões, nos Conselhos, Associação de Pais, mas não é no berro, não é na intimidação, não é estigmatizando professores como doutrinadores. Como espaço republicano a escola deve caminhar de mãos dadas com a democracia e com o bem comum. Nesse sentido, o objetivo não é destruir a heterossexualidade, mas sim da temática de identidade (não ideologia) de gênero e orientação sexual não ser apagada.

Basta lembrar que no artigo 205 da Constituição Federal deixa-se claro que a educação visa o desenvolvimento do sujeito, da sua cidadania e qualificação para o trabalho. Como será o desenvolvimento do sujeito que não se entende na sua sexualidade? Como ocorre o desenvolvimento da cidadania se há permissividade com o desrespeito e com a violência contra pessoas que não seguem o padrão heteronormativo?

Então, por lei, pela Constituição Federal, não há como a escola dar apenas aula de Trigonometria, Química Orgânica ou Oração Subordinada. Não venham nos falar que a questão de valores é atributo apenas das famílias, pois se assim bastasse, não teríamos níveis abismais de morte de mulheres e pessoas LGBTQIAPN+. É necessário um trabalho em rede e pensar em rede é extremamente orgânico e necessário para tratar de problemas sociais e a escola, por sua vez, sendo um espaço privilegiado de socialização, tem sua responsabilidade na formação de uma nova sociedade.

Como então a escola pode construir condições com vistas a igualdade de gênero? Primeiro se abastecer de materiais de leitura, compreender conceitos, tanto para lidar melhor com as juventudes (no plural para lembrarmos da diversidade do que é ser jovem), como para construir o perfil republicano. Reforço isso porque por mais que cada pessoa tenha a sua fé, seu modo de ver a vida, na escola a perspectiva não é caseira, não é do quintal da nossa casa, é no cumprimento de leis, na defesa dos Direitos Humanos, da coletividade, de princípios basilares para se viver em sociedade.

E tendo em vista que a escola segue leis, que busquemos esse respaldo legal. A Base Nacional Comum Curricular foi estrangulada na sua redação com cortes das palavras “orientação sexual” e “identidade de gênero”. Por outro lado, na Lei de Diretrizes e Bases 9394/96, no seu artigo 26, tem-se o seguinte registro “Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos”. Assim sendo, a escola, com base nas suas demandas locais, pode sim incluir no seu currículo a discussão de assuntos que lhe façam sentido.

Como isso pode ser feito? Primeiro ponto é que não se resolve com palestra. Palestra dificilmente deixa dever de casa, dificilmente tem um caráter de um desenvolvimento contínuo. É o mesmo problema de falar sobre feminismo apenas no 8 de março. Se a intenção é reverter a lógica de desigualdade porque destinar apenas uma semana para falar da mulher e o restante do ano contamos a história de generais, imperadores, escritores, cientistas, todos eles homens cis, geralmente brancos e heterossexuais? Docentes que querem subverter a lógica de opressão social, articulam pauta classista, de gênero e de raça costurando com o currículo oficial. Isso é possível! Vamos ensinar Estatística? Por que não interpretar gráficos que representem a gritante violência de gênero? O conteúdo é Revolução Francesa? É importante falar que no período que homens defendiam a ideia de liberdade, fraternidade e igualdade, ironicamente guilhotinaram Olympe de Gouges porque defendia direito das mulheres. O ensino será sobre a Revolução Russa? Precisamos urgente enfatizar que uma das hipóteses da data 8 de março é porque as tecelãs russas foram as ruas pedir por pão e justiça social em greve que antecedeu a Revolução. O ensino é sobre a Segunda Guerra Mundial? Deixar às claras que comunistas e homossexuais foram perseguidos, porque o fascismo mata esses dois grupos.

Há inúmeras possibilidades de articulação curricular: resgatar a importância de mulheres e população LGBT na ciência, na literatura, no esporte; refletir sobre a linguagem estereotipada; em alimentação problematizar os padrões estéticos e os danos à saúde. Contudo, além de compreensão de conceitos por parte dos educadores, além de amparo na lei e de reorganização curricular é fundamental a mudança do clima escolar. Há espaço acolhedor para denúncias? Há campanhas de conscientização sobre as violências? Incentiva-se a formação de coletivos juvenis, grêmios ou assembleias? É colocado em debate o controle dos corpos, inclusive sobre a vestimenta estudantil, ou apenas a roupa da menina que é censurada?

Os campos de concentração foram bem planejados por engenheiros. Enfermeiras conseguiam cumprir tecnicamente seu papel no extermínio de milhares de corpos. Médicos realizavam as tarefas médicas que eram incumbidos pelos nazistas. Por isso, já salientava Adorno, que não basta apropriação do conhecimento se nosso trabalho será para o apagamento, para a violência, para o genocídio. Não há neutralidade na educação e nunca haverá e se queremos uma sociedade longe do que foi Auschwitz, que nos repensemos, enquanto profissionais e seres humanos.

 

Ana Paula Ferreira

Supervisora da rede estadual e escritora

Texto publicado no Jornal da Cidade 27/04/2024

terça-feira, 2 de abril de 2024

Direito à educação: permanência na escola

 


A obrigatoriedade da oferta de ensino dos 4 anos aos 17 anos só ocorreu em 2009 e, portanto, percebe-se o quanto a universalidade da oferta da Educação Infantil e do Ensino Médio ainda é um desafio recente. Esse histórico excludente da educação brasileira está alinhado ao modelo da nossa sociedade extremamente desigual em se tratando de classe social, questão racial e de gênero. Aliás, o perfil do estudante que abandona a escola sem terminar a escolaridade diz muito sobre isso.

De acordo com dados da Unicef de 2022, quase 50% dos que evadiram, alegaram não frequentar a escola por motivo de trabalho, 28% para cuidar de familiares, 14% por questão de gravidez na adolescência, 18% devido a problemas com transporte. Já em relação a fatores pedagógicos tem-se o percentual de 30% que relatou ter saído da escola porque não conseguiam entender as explicações, o que é consubstanciado na pesquisa de Maria Helena Patto em “A produção do fracasso escolar” quando pontua que a escola cria um imaginário de “aluno ideal” e geralmente afasta o “aluno real”.

Primeiramente, há o impacto da opressão pela classe social, pois trata-se de um grupo de crianças e jovens em situação de maior vulnerabilidade social e que precisam contribuir na renda familiar. Somado a isso, 58% dos jovens que não concluíram o Ensino Médio era masculina e quase 72% de pretos e pardos (PNAD, 2020).

Ora, se um dos grandes problemas elencados é que boa parte dos estudantes para de estudar para trabalhar, é importante um trabalho mais assertivo do Ministério Público, haja vista que ele também deve garantir a permanência do direito à educação e essa ação não deve ser meramente dogmático-normativo, no cumprimento da lei, mas de interlocução com a sociedade na construção de políticas públicas. Deixo um exemplo. Em Poços de Caldas, por ser uma cidade turística, conta com um grande número de hotéis, que contratam jovens, muitas vezes sem carteira assinada e que cumprem um horário de trabalho que excede as 8 horas. Qual a consequência? São jovens que saem tarde do trabalho, ou precisam se ausentar das aulas nos dias de quinta e sexta-feira, que acabam evadindo. Nesse sentido, Ministério Público, lideranças do Executivo das redes de ensino municipal e estadual, juntamente com representantes dessas empresas poderiam se reunir e buscar um alinhamento de modo que o direito a educação não seja cerceado.

Contudo, num país tão marcado pelo desemprego estrutural, há de se considerar que nem sempre os jovens estarão empregados e a depender da situação da família, é importante que seja acompanhada pelo CRAS para o recebimento de programas de transferência de renda, que visam contribuir para que a pobreza não perpetue por gerações, diante da falta da escolaridade. Esse ano inclusive, inicia-se o Programa Pé de Meia, específico para estudantes do Ensino Médio, de modo a incentivar mediante dinheiro depositado em poupança, que continuem na escola.

Outra instância fundamental na defesa da permanência de crianças e adolescentes na escola é o Conselho Tutelar. Entretanto, apresenta o imenso desafio de romper com o imaginário daqueles que o compreendem como instância repressora e punitiva e que buscam afastar da escola alunos que apresentam indisciplina ou transgressões. Nesse sentido, o Conselho Tutelar pode se valer de uma presença maior nos espaços escolares no resguardo do Estatuto da Criança e do Adolescente, para que ambas instituições reelaborem medidas socioeducativas que contribuam para o desenvolvimento do sujeito.

E como a escola pode avançar no direito à permanência? Primeiramente, traçando o diagnóstico de sua comunidade, item fundamental que compõe o Projeto Político Pedagógico. Esse diagnóstico pode ser elaborado através de formulário: quantos alunos trabalham? Quantos precisam cuidar de familiares? Qual a renda familiar? Precisam de transporte público? E tantas outras questões que a equipe de professores juntamente com a supervisão pedagógica podem elaborar. Além disso, pode-se também encaminhar ofícios aos órgãos que atendem a mesma comunidade para se ter dados dessa realidade social: quantidade de jovens encaminhados nos últimos anos por relação com o tráfico, número de jovens grávidas na adolescência, número de alunos atendidos pelo Bolsa Família, etc. etc.

Assim, com base nesse levantamento é possível a escola se repensar, seja em parcerias maiores com o CRAS, encaminhando solicitações de transporte, mudando o currículo, organizando momentos de reforço escolar, incentivando a criação de grêmios e coletivos estudantis de modo a ampliar o debate e a participação na defesa dos Direitos Humanos e sobretudo: apostar no aluno! Que esse estudante perceba que tem apoio, que consiga estabelecer vínculos com as pessoas e com o espaço, pois pessoas que estabelecem vínculos dificilmente se afastam. E, se por acaso não houver a permanência estudantil, reflitamos em que parte houve a falha da sociedade ou do Estado, ao ponto desse abandono não ter sido meramente do sujeito, mas dele ter sido abandonado praticamente a própria sorte.   

Ana Paula Ferreira

Supervisora da rede estadual

quinta-feira, 21 de março de 2024

Sororidade para não ser capitã do mato

 



Eu aprendi o que era “sororidade” antes de conhecer a palavra.

Minha mãe tem duas irmãs a tia Lúcia e tia Tininha. As três sempre se ajudaram e não compunham apenas fotos de batizado, festa de aniversário ou casamento. Fortaleciam-se apesar das adversidades, as quais não foram poucas. Independente se o problema era doença, divórcio, alcoolismo na família ou qualquer outra situação que trouxesse certa instabilidade emocional, elas estavam juntas, se acolhendo, conversando, organizando o que fariam. Se houvesse choro, havia ombro; se houvesse raiva, havia escuta; se houvesse carência, haveria mão estendida.

Elas não competiam entre si. Acolhiam-se. Nem sempre foi mar de rosas, mas diante de qualquer eventualidade estariam próximas, num sentimento de empatia, cooperação, incentivo, justamente porque juntas eram mais fortes. Essa foi a sororidade que conheci e nisso que me baseei acreditando nessa cumplicidade feminina, porque independente das feridas sociais ou dos machucados machistas, elas traziam a cura.

Por isso que tive resistência em entender a Simone Beauvoir quando ela escreveu que embora as mulheres sejam mais de 50% da população, a desigualdade de gênero se mantinha, em boa parte em razão da desunião das mulheres. A filósofa justificou que culturalmente fomos ensinadas a nos preocupar mais com os projetos dos maridos, irmãos, pais, do que com os planos ou fortalecimento de nós mesmas ou de outras mulheres. Não é sem razão que a obra clássica de Beauvoir recebe o nome de “Segundo Sexo”, compreendendo que a mulher fica em segundo plano, colonizadas a tal ponto que julgam que a referência de ser humano é o homem.

Quais as consequências disso? Diante do não reconhecimento feminino como grupo socialmente mais vulnerável e da não sensibilização com outras mulheres, mantém-se as relações assimétricas de poder. Nessa lógica, ao invés da empatia, julgarão a vítima de violência sexual pela roupa que usava; ao invés de divulgação dos trabalhos e obras feitas por mulheres, buscarão o seu apagamento.  Mulheres que só votam em homens, que leem homens, que se consultam com homens, que educam os meninos para serem reizinhos e que não respeitam o relacionamento alheio...  E nesse sentido, as mulheres podem sim, infelizmente, serem machistas, ou entrarem num ritmo de competição com as demais, as famosas pick me girl.

Afim de mudar aos poucos esse cenário de desigualdade podemos pensar em ações cotidianas. É ano de eleição e, uma possibilidade é acompanhar possíveis candidatas que nos representem. Socialmente existe a feminização da pobreza, haja vista que boa parte da população pobre é composta por mulheres. Que possamos divulgar e incentivar o trabalho desenvolvido por mulheres. Temos diversas obras excelentes feitas por mulheres. Que possamos ler mais escritoras, assistir mais filmes de diretoras, acompanhar atrizes, influenciadoras que realmente repensem a sociedade patriarcal. Num mundo já tão cheio do pacto da masculinidade, em que homens pagam fianças de abusador ou aplaudem os violentos e manipuladores, que nos cerquemos de mulheres que motivem umas outras, e assim haja mais Anas, Lúcias e Tininhas espalhadas pelo mundo para nos fortalecermos.

Se não mudarmos essa lógica, repetiremos o que Paulo Freire já falava de que o sonho do oprimido é se tornar o opressor e, portanto, na ausência desse reconhecimento de opressão, agirão como “capitãs do mato”, colocando na fogueira simbólica outras mulheres, buscando algum favoritismo, mas sem se perceberem ainda na figura do “segundo sexo”.

 

Ana Paula Ferreira

Militante do Coletivo Mulheres Pela Democracia

Texto publicado no Jornal da Cidade 22/03/2024