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quinta-feira, 21 de março de 2024

Sororidade para não ser capitã do mato

 



Eu aprendi o que era “sororidade” antes de conhecer a palavra.

Minha mãe tem duas irmãs a tia Lúcia e tia Tininha. As três sempre se ajudaram e não compunham apenas fotos de batizado, festa de aniversário ou casamento. Fortaleciam-se apesar das adversidades, as quais não foram poucas. Independente se o problema era doença, divórcio, alcoolismo na família ou qualquer outra situação que trouxesse certa instabilidade emocional, elas estavam juntas, se acolhendo, conversando, organizando o que fariam. Se houvesse choro, havia ombro; se houvesse raiva, havia escuta; se houvesse carência, haveria mão estendida.

Elas não competiam entre si. Acolhiam-se. Nem sempre foi mar de rosas, mas diante de qualquer eventualidade estariam próximas, num sentimento de empatia, cooperação, incentivo, justamente porque juntas eram mais fortes. Essa foi a sororidade que conheci e nisso que me baseei acreditando nessa cumplicidade feminina, porque independente das feridas sociais ou dos machucados machistas, elas traziam a cura.

Por isso que tive resistência em entender a Simone Beauvoir quando ela escreveu que embora as mulheres sejam mais de 50% da população, a desigualdade de gênero se mantinha, em boa parte em razão da desunião das mulheres. A filósofa justificou que culturalmente fomos ensinadas a nos preocupar mais com os projetos dos maridos, irmãos, pais, do que com os planos ou fortalecimento de nós mesmas ou de outras mulheres. Não é sem razão que a obra clássica de Beauvoir recebe o nome de “Segundo Sexo”, compreendendo que a mulher fica em segundo plano, colonizadas a tal ponto que julgam que a referência de ser humano é o homem.

Quais as consequências disso? Diante do não reconhecimento feminino como grupo socialmente mais vulnerável e da não sensibilização com outras mulheres, mantém-se as relações assimétricas de poder. Nessa lógica, ao invés da empatia, julgarão a vítima de violência sexual pela roupa que usava; ao invés de divulgação dos trabalhos e obras feitas por mulheres, buscarão o seu apagamento.  Mulheres que só votam em homens, que leem homens, que se consultam com homens, que educam os meninos para serem reizinhos e que não respeitam o relacionamento alheio...  E nesse sentido, as mulheres podem sim, infelizmente, serem machistas, ou entrarem num ritmo de competição com as demais, as famosas pick me girl.

Afim de mudar aos poucos esse cenário de desigualdade podemos pensar em ações cotidianas. É ano de eleição e, uma possibilidade é acompanhar possíveis candidatas que nos representem. Socialmente existe a feminização da pobreza, haja vista que boa parte da população pobre é composta por mulheres. Que possamos divulgar e incentivar o trabalho desenvolvido por mulheres. Temos diversas obras excelentes feitas por mulheres. Que possamos ler mais escritoras, assistir mais filmes de diretoras, acompanhar atrizes, influenciadoras que realmente repensem a sociedade patriarcal. Num mundo já tão cheio do pacto da masculinidade, em que homens pagam fianças de abusador ou aplaudem os violentos e manipuladores, que nos cerquemos de mulheres que motivem umas outras, e assim haja mais Anas, Lúcias e Tininhas espalhadas pelo mundo para nos fortalecermos.

Se não mudarmos essa lógica, repetiremos o que Paulo Freire já falava de que o sonho do oprimido é se tornar o opressor e, portanto, na ausência desse reconhecimento de opressão, agirão como “capitãs do mato”, colocando na fogueira simbólica outras mulheres, buscando algum favoritismo, mas sem se perceberem ainda na figura do “segundo sexo”.

 

Ana Paula Ferreira

Militante do Coletivo Mulheres Pela Democracia

Texto publicado no Jornal da Cidade 22/03/2024

terça-feira, 19 de março de 2024

Gaslight: o manipula -dor

 

 

É mês do dia internacional da mulher e é necessário falarmos de um tema, nem sempre comum de ser debatido, justamente porque não é claro, e, portanto, não é tão facilmente percebido. Trata-se da manipulação psicológica, que faz parte de uma das violências na qual a mulher geralmente é alvo mais fácil, justamente pelas relações assimétricas de poder. A manipulação é sutil, às vezes demora anos para a pessoa se perceber manipulada. ANOS. Isso porque ela se manifesta invisível, quase uma mosca branca que entra na sala de estar trazendo doença, mas como não é vista, a vítima apesar de sofrer, não compreende a causa e por fim, atribuí a si a culpa.

E como pode ocorrer de maneira tão velada? Trago aqui 3 pontos importantes da manipulação: a falta de transparência, o controle e a vitimização. A fim de ilustrar cada um deles eu uso o filme “Gaslight” que aliás, inspirou a ideia de abuso psicológico, diante da distorção da realidade. Resumidamente a história se passa numa casa na qual a esposa percebe que luz estava falhando e o marido, passa a questionar a sanidade mental da mulher, sendo que na verdade ele sabia que isso ocorria e que ele mesmo quem provocava.

Essa é uma das características principais da manipulação: falta de transparência. Tudo fica às escuras, sem luz suficiente e, portanto, não se consegue tatear a realidade com precisão. A informação vem do manipulador, ao ponto de a vítima passar a duvidar do que viu, da sua própria memória, como se tudo não passasse de coisas da sua cabeça. Nesse jogo de enganação, o marido galanteia a funcionária, convida-lhe para outros espaços sem ser o do trabalho, elogia, passa tempo fechado sozinho com ela na sala. Enquanto isso, faz juras à esposa que se preocupa com a saúde dela, quando na verdade a real intenção é deixa-la insegura, incapaz de tomar as próprias decisões. Tal qual a lâmpada que ora ilumina, ora cede à escuridão, o manipulador seduz, joga charme, é gentil, prestativo, pois precisa de pessoas que cedam à sua vontade. Ao mesmo tempo, faz cortina de fumaça para ludibriar, mente e engana, tanto a esposa quanto com a funcionária, pois seu objeto final era o poder, e por isso a necessidade de uma imagem imaculada, de homem distinto, perfeito.

Ora, se o objeto é o poder, precisava do outro ponto da manipulação... o controle. No filme a vida da mulher é milimetricamente calculada, reduzindo sua rede de apoio para facilitar a opressão. O manipulador evita que a casa seja frequentada por amigos, maldiz cada um deles como se não fossem boas companhias, evita de sair publicamente com a companheira e quando saem, ele quem decide os lugares, persuadindo que ela participou da decisão. Controla a correspondência, as visitas, os passeios, pois ao isolá-la, lhe fragiliza ao ponto de sentir dependente emocional do manipulador.

Por fim, o abuso psicológico ocorre também pela vitimização do algoz. Sim. Apesar de enganar, ele irá distorcer em tamanha proporção e sob toda uma dramatização ao ponto de a vítima pedir desculpas, considerando-se de fato egoísta ou paranoica. Essa terceirização da responsabilidade é atrelada ao perfil do manipulador que geralmente não manifesta empatia, tem pouco apreço pela dor alheia, nem se comove com o sofrimento da própria companheira.

As consequências disso na vida da vítima são várias. Por tender a acreditar que está perdendo a habilidade mental, omite o que acontece para os mais próximos, com receio de estar sendo injusta com o parceiro. Fica tão vulnerabilizada emocionalmente que perde a essência, deixa de fazer coisas que gosta, de criar planos, sofre de insônia, sentimento de inferiorização, irritabilidade, dependência emocional e baixa autoestima.

Diante disso, o gaslight é uma violência grande, no qual o manipula-dor, brinca com os sentimentos alheios, como se estivesse brincando com lego, em que cada peça só lhe interessa na construção de seus projetos, afinal não tem responsabilidade afetiva com aqueles ou aquelas que lhe depositaram confiança. Que entendamos para não repetir esse papel e muito menos em minimizar o sofrimento de quem já passou por essa manipulação.

 

Ana Paula Ferreira

Militante do Coletivo Feminista Mulheres Pela Democracia