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segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

O celular, a chave e os óculos

            



 Tem três coisas que ocasionalmente venho a esquecer na hora que paro em algum lugar: celular, chave e óculos. Se não lembro, é claro que esse esquecimento me traz alguns problemas. Sem o celular fico incomunicável com o mundo, ao esquecer a chave, não entro na minha própria casa e na ausência dos óculos, no meu caso que tenho miopia, fico com dificuldade em ver o espaço mais adiante, a ter uma visão de longo alcance. Buscando uma analogia com a questão da memória da humanidade, o esquecimento provoca, dentre outros problemas, esses três efeitos: não conseguir imprimir a própria narrativa, sentir-se fora da morada e limitada percepção sobre o futuro, ou melhor, do que vem a frente.

Quando não temos meios de comunicação, nossa voz fica abafada. Isso é bem mostrado no documentário de curta duração “Levante sua voz”, que questiona a concentração da imprensa tradicional no Brasil nas mãos de poucas famílias.  Nesse sentido, reforça-se a história oficial, a qual enaltece a figura e feitos dos donos do poder. Concomitantemente, a história dos trabalhadores, dos indígenas, quilombolas e todas as minorias sociais é marginalizada, ou pior, contada sob o viés do colonizador, do opressor, daquele que diminuí discursivamente o outro com vistas a justificar a violência e a exploração. Por isso, o esquecimento de nossas raízes ou a reprodução de uma história que nos subjuga, que nos retira de cena do protagonismo é uma das causas cruéis de não conseguirmos potencializar nossa voz, e somado a ausência de instrumentos de comunicação, limita-se não somente a comunicação, mas a participação na disputa de narrativas em relação a um projeto de sociedade.

Sem memória, tampouco valorizamos nosso território. Festeja-se o Halloween, mas não se lembra a data de comemoração do nosso folclore. Papai Noel continua sendo apresentado com roupas de frio intenso em chaminés, num país tropical que não precisa de lareiras. Músicas caipiras são preteridas socialmente comparadas com o country, a língua estrangeira ensinada nas escolas é o Inglês, embora estejamos na América do Sul e os países vizinhos falem o espanhol... Enfim...São muitos exemplos que nos desterritorializam e assim, perdemos as chaves de nosso espaço. Sem entrada nessa casa, ficamos na calçada, num complexo de vira-lata, acreditando que pertencemos a cultura do “jeitinho brasileiro”, sem percebermos o quão violento é esse pensamento sobre nós, que nos coloca como desonestos, camuflando a corrupção das grandes corporações que saqueiam nossa terra.

 Por outro lado, a lacuna de nossa própria história e a falta de pertencimento não são superadas dependendo da nossa visão de mundo. Nesse sentido, é claro, que só os óculos por si só, não trariam a nitidez da imagem social, econômica e política-cultural. Se assim fosse, bastava que achássemos os óculos de sol encontrados pelo personagem do filme “Eles vivem”, o qual passa a enxergar os impactos da sociedade de consumo, o autoritarismo e as diversas mazelas do capitalismo.

Ampliar a perspectiva exige estudo, leitura, reflexão e coragem. Sim! Coragem! Porque psicologicamente também tendemos a trair nossa memória e selecionar eventos que nos trouxeram felicidade. Para tanto, precisamos da coragem para encarar nossos medos e criar repertório emocional suficiente para lidar com esse sentimento de modo que não se torne repetição, pela inoperância em se quebrar ciclos. O mesmo ocorre na vida em sociedade. Não adianta negar ou menosprezar os efeitos das guerras, ditaduras, invasões, colonizações sob o pretexto de já passou e que não importa mais. Necessita-se da coragem para rever essa história e optar por não a reproduzir.

Óculos são figurativos para representar nossa preocupação em ver melhor e para alargar nossa percepção sobre nós, os outros e espaços onde apenas nossa retina não daria conta. Conseguimos nos antecipar a um possível percurso ainda não percorrido, quando o conhecemos por vídeo, documentos, mapas e várias produções humanas, legados que foram deixados, treinando nosso olhar, para que ao encararmos de fato o caminho em si, ele se torne menos pedregoso, com possibilidade de mais pessoas percorrê-lo, imaginando inclusive o que pode vir a frente.

Por isso, não esquecer é uma condição para a manutenção de nossa humanidade. Mas, daí fica a pergunta: celular, chaves e óculos para qual tipo de memória e para construção de qual história?

Ana Paula Ferreira

Educadora e escritora

Texto publicado no Jornal da Cidade 24/01/2024


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