E por que mesmo sabendo disso é tão
difícil concordar que a mudança bata na nossa porta? Por que é tão doloroso
reconhecer o que Heráclito disse há milhares de anos de que nada é estático,
nem nós mesmos?
Porque envolve a ideia de luto e
lidar com a morte não é fácil, seja a morte de entes queridos, seja a morte de
tantas coisas... da juventude, das relações, das expectativas, dos planos. Em
ambas situações, de uma morte real ou da morte de algo, há a necessidade de ser
fazer o funeral (literal ou simbólico) como processo de seguir em frente, de
agir sobre o que ficou de nós mesmos, de fechar ciclos.
Mas além da dificuldade do luto
existe outro desafio: trabalhar com o sentimento do apego. Sabe a famosa frase
do Pequeno Príncipe “Foi o tempo que dedicaste à tua rosa que a fez tão
importante”? Resumindo, o apego é isso... uma doação, vínculos, memórias,
histórias que fizeram que o objeto amado se torne bonito e especial. Daí temos
outra questão: em que medida desapegar envolve descartabilidade?
O sociólogo Balman quando trouxe o
termo de modernidade líquida apontou o quanto as coisas estão mais frágeis,
fugazes e que se antes era comum o sujeito aposentar no mesmo emprego que
trabalhou a vida toda, matrimônios que duravam décadas ou o estudo (técnico ou
graduação) já ser quase uma garantia de emprego, hoje nada é seguro, tudo é
efêmero.
Mário Sergio Cortella trouxe uma metáfora
nesse sentido quando conta que era comum encontros familiares para fazer
pamonha e que o trabalho era igualmente proporcional ao tempo em estar junto,
de rir, conversar, contar causos e partilhar a produção. Atualmente, na
contramão, além dessa prática não ser comum, consome-se macarrão instantâneo
feito em três minutos, tudo rápido, tudo veloz para atender nossa lógica
desenfreada de tarefas e que nos retira aos poucos das nossas convivências mais
genuínas.
Essas convivências autênticas são
aquelas em que desnudamos nossa alma. Até porque se na sociedade somos CPF, nas
relações comerciais somos cartão de banco e no trânsito CNH, são nas relações
mais próximas que podemos sentir que somos únicos e que tornamos o outro também
especial. Por isso é tão sofrido encarar esses lutos, pois envolve um período
solitário, de não importar com o que importávamos. Aliás, essa palavra
“importar” é interessante porque além de se referir ao que damos importância, é
também verbo do que trazemos de outros lugares para dentro do nosso espaço, e
nesse momento de solidão, o que mais precisamos é de nos abastecer de nós
mesmos, até para diferenciar entre o desapego e a descartabilidade.
Talvez uma frase que ajude nesse
sentido é a de Frida “Onde não puderes amar, não te demores”. Não significa que
as coisas devem permanecer apenas por hábito, tradição ou qualquer coisa do
tipo. Contudo, não é tampouco descartar, porque descartamos o que é facilmente
trocado, é o guardanapo que não virou papel de mensagem de paquera. Se há luto,
é porque houve afeto, fomos afetados e, portanto, a ideia não é descartar o que
foi, mas de saber que se não há condições de ser e de fazer o outro feliz, que
tomemos outros caminhos.
Aspirante a escritora
Texto publicado no Jornal da Cidade, 07/06/2023
Perfeito!!
ResponderExcluirPor muitas vezes preciso aprender a desapegar e a viver esse luto porque insisto em ficar presa a coisas que já não dão mais frutos e que as raízes já morreram há tempos...
E esse luto não é fácil ser vivido, pois há os que não se deixam partir de vez. Daí é importante que o luto seja nosso e ninguém se intrometa nisso, caso seja essa nossa vontade.
ExcluirAprendi a vivenciar o luto todo o mês. Junto com o sangue que escorre de meu ventre, deixo ir tudo aquilo que não foi fecundado, consciente ou inconscientemente, seja crias materiais ou imateriais, relações que precisam ficar para trás, comportamentos que não quero mais etc.
ResponderExcluirSangrar é uma boa forma de aprender a deixar ir.
Amo ser mulher e poder sangrar todo mês.
Rituais que ajudam a potencializar o que precisa ir e o que precisa ficar.
Eita! Uma poesia esse recado. Uma enorme conexão feminina com o corpo e com a ideia de desapego através da menstruação.
ExcluirGenial! A consciência de que nada nos pertence, talvez seja o passo mais difícil para alcançarmos clareza... Só podemos guardar memórias... Momentos, pessoas, sensações, sabores, experiências... Carregaremos só o que puder ser levado dentro de nós!
ResponderExcluirMemória que fica... e até mesmo ela pode passar, diante das escolhas que fazemos do que lembrar, do que focar, do que descartar...
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