É bem anárquico o título, mas é essa intenção.
Já
que deixei claro que defendo a disciplina, e principalmente uma educação que
construa autonomia, vamos para o título. “Desobediência civil” é um termo de
Thoreau cujo livro é homônimo. De maneira resumida ocorreu o seguinte... Em
meados do século XIX os Estados Unidos entraram em guerra contra o México
objetivando anexar territórios. Contrário à guerra e à escravidão que ainda
existia, Thoreau simplesmente opta por não pagar mais impostos, uma vez que
esse montante contribuía para o financiamento da guerra. Ele não apenas foi preso,
como escreveu o livro que inspirou Gandhi e Luther King Jr, pois enfatizava a
importância de resistências pacíficas, de combate a leis injustas, pois
obedecê-las é também contribuir com opressão.
Na
escola também há leis injustas e quando os alunos se negam a executá-las muitas
vezes os adultos os advertem oralmente, por escrito, ou tratam a queixa como se
fosse insignificante. Nessa compreensão, o espaço escolar não é um espaço de
troca, de diálogo, mas um panóptico, no qual Foucault faz a comparação da
arquitetura com a ideia de controle e de vigília, tão comum em quartéis,
hospitais, manicômios, e até mesmo escolas. Por conseguinte, se busca o
silenciamento, a obediência, generalizando alguns comportamentos e punindo
desvios.
Se
a crítica é desconsiderada, tratada com frases do tipo “só vocês estão
reclamando”, ou pior, se ao invés de profissionais que defendam os princípios
democráticos, prima-se pela defesa corporativista, o que está se ensinando? Que
a educação enquanto direito social é tratada como caridade, do funcionário
público que doa e do cidadão que deveria apenas receber. Não somente isso, mas
ensina-se a calar, a se contentar, a se subordinar.
Qual
é o tempo destinado para a fala dos estudantes, para a utilização do saber na
argumentação, na tomada de posição ou defesa de uma ideia? Em contrapartida,
qual o tempo que estão tagarelando sem sentido, sem proposta, sem
direcionamento? Qual o tempo que o professor fala? Qual é o tempo destinado a
assembleias, grêmios ou para ouvir de sala em sala os estudantes? Será que a escola fica passiva esperando o
estudante levar suas demandas, ou ela mesma promove momentos de escuta ativa?
Qual é o tempo destinado para produção de texto e qual é o tempo usado para cópia
de textos infindáveis?
Se
ao pensar nesses tempos e chegar à conclusão que o tempo escolar está mal
administrado, uma escola de tempo integral no mesmo modelo, seria redundância
de antidiálogo. E por falar em tempo, ele passa e nem sempre as coisas mudam,
ou talvez não na velocidade que gostaríamos. Publiquei em 2016 um texto
intitulado “A fabricação de máquinas de xerox na escola” que questionava o
quanto as crianças copiam a matéria do quadro e o significativo número de
analfabetismo funcional. Será que se elas parassem de copiar estaria errado ou
errado é o ato de minar a curiosidade em aprender mediante uma prática
cansativa e de teor altamente questionável?
Alienação,
conceito marxista, é a ausência de identificação do trabalhador com o produto
de seu trabalho. Trazendo para o campo da escola, será que os estudantes se
reconhecem no que copiam ou se identificam nos textos autorais que produzem?
Estamos alienando ou proporcionando emancipação? Em época de expansão da
informação, que em fração de segundos temos tantos dados ao nosso dispor, é
extremamente inoperante reforçar a cópia pela cópia. A máquina já faz isso e o
que nós humanos temos de diferencial é na nossa capacidade de criar, projetar,
sonhar, fazer planos criativos. Por isso, aprecio a escrita como técnica de
memória, mas desde que conduza a uma escrita criativa, que incentive a produção
dos estudantes, seja num mapa mental, resumo, registro por tópicos ou tabela.
E voltando
na desobediência civil, se a escola pouco provê de momentos de diálogo, se a
prática docente é mais ancorada em passar textos para cópia do que estratégias
mais significativas, como encararíamos a ideia se os estudantes, por exemplo,
se recusassem a copiar?
Rosa
Parks foi uma mulher negra que se recusou a levantar do banco de um ônibus para
ceder o lugar a um homem branco. Era uma lei, mas ela foi contra. Esse singelo
gesto desencadeou passeatas na defesa dos direitos afro-americanos e boicotes
às empresas de transporte público até que assinaram o fim da segregação racial
nos ônibus.
Ensinar
a desobediência civil: será possível? Se não for, que pelo menos haja atenção
no comportamento estudantil e abertura para um diálogo franco, no qual possamos
melhorar enquanto profissionais, sem esquecer de que o tempo todo estamos
formando pessoas. Daí vamos entender que existem Rosa Parks e Thoreau nas
carteiras escolares e que nem sempre são indisciplinados, mas estão à sua
maneira mostrando a indignação.
Ana Paula Ferreira
Mestre em Educação
Referências
Ana Paula Ferreira - “A fabricação
de máquinas de xerox na escola”
https://www.jornaldacidade1.com.br/maquinas-de-xerox-na-escola/
Henry David
Thoreau – “Desobediência Civil”
Texto publicado no Jornal da Cidade 28/06/2023 p. 9