Certa vez, eu estava num café e uma mulher, que chegou com uma colega, desabafou “Eu até concordo com algumas coisas das feministas, mas não tudo”. Pois bem. O que era esse tudo? Por fim, ela relatou que se incomodava com as que mostravam os seios em praça pública, as que faziam esquetes teatrais chocantes, as que defendiam o aborto.
Fiquei pensando o quanto esse
pensamento não deixa de ganhar projeção entre tantas outras. E no fundo é o
pensamento da nossa sociedade que finge ser libertária, mas que exerce o
controle de corpos a todo momento. “Eu gosto de dar aula, mas com alunos
quietos”, “Não sou racista, mas sou contrário às cotas”, “Respeito os
homossexuais, mas eles não precisam ser escandalosos”… e exemplos não faltam
pra elucidar que no comportamento ainda há a persistência do controle, da
desigualdade de narrativas ou da negação às várias formas de ser no mundo.
Tem ganhado espaço os discursos
contra violência de gênero. Mas, eles adquirem aprovação quando são em
palestra, entrevista na TV, fala nas redes sociais. São ferramentas
importantes porque transmitem uma ideia de Direitos humanos, porém, desde que
sejam comunicações dentro do que se considera como um marco civilizacional.
Tudo que fugir a isso é considerado barbárie, coisa de feministas loucas.
Em 2017 fizemos um ato no terminal
de linhas urbanas da cidade de Poços de Caldas para denunciar o feminicídio.
Não faltaram ataques nas redes sociais. E olha que ninguém estava com os peitos
à mostra. Diariamente as mulheres precisam se impor para falar, se posicionar,
serem ouvidas. O espaço não é dado. É duramente conquistado, pois não é
considerado como delas. Daí que homens, mesmo os que se acham desconstruídos,
as coloquem no papel de “destemperadas”, de “nervosas”, de “mentirosas”, mas
não observam que elevam o tom de voz, que são irônicos e sarcásticos para
desconsideram os argumentos femininos, que exercem uma violência de “Barbas
Azuis” da modernidade. Na verdade, anseiam que ninguém exponha o quartinho
sombrio onde mutilaram verbalmente as diversas mães, filhas, trabalhadoras, não
querendo por fim se encontrar com o seu próprio “eu” raivoso, que assedia,
humilha as mulheres.
E como esses “Barbas Azuis” fazem
esse movimento? Como os opressores sempre fizeram. Ou elaboram uma história
para retirar a dignidade do outro, de modo que ninguém lhe tenha apreço ou o
ignoram, o tratam como invisível. A invisibilidade está no silenciamento dos
nomes atribuídos aos monumentos de uma cidade ou mesmo nas “micro” histórias,
das que ocorrem no dia a dia, nas casas, nas escolas, nas fábricas, nas ruas.
Mas a resistência é algo apaixonante
para quem contesta a opressão. Porque ela encontra mecanismos criativos de se
colocar. Pode ser desde a protagonista do livro “A vida invisível de Euridice
Gusmão” no qual a dona de casa, quietinha e reservada, vai se colocando pouco a
pouco na arte literária, na vida pública, ou pode ser de uma maneira mais
ousada, fora dos padrões, daquelas que marcaram histórica pela intensidade e
continuidade na luta.
Se hoje há a liberdade de contestar
a desigualdade entre homens e mulheres sem sermos mortas por isso, muito se
deve a Olympe de Gouges que em plena Revolução Francesa tornou essa demanda
explícita nos seus textos teatrais e que por conta de sua petulância em
desafiar um política pensada por homens e para homens, foi guilhotinada.
Se atualmente há direitos
trabalhistas, sociais e econômicos, não há como não reconhecer os benefícios do
socialismo soviético e quem iniciou a primeira fase da Revolução Russa foram as
tecelãs na sua greve por “pão e paz”, cuja data é o marco feminista do dia 8 de
março. Se temos a liberdade em votar e sermos votadas, é devido a luta de
diversas mulheres, com destaque a irreverência de Bertha Lutz, que usou de um
avião para lançar panfletos sobre o sufrágio feminino.
Portanto, a palavra é sororidade.
Respeito às mulheres que não possuem o perfil de sair às ruas, de se expor
publicamente e fazem a mudança de mentalidade nos bastidores. Contudo, respeito
também às que se colocam de uma maneira mais combativa, nos palcos sociais. A
feminista militante não está agredindo ninguém com seu corpo exposto ou na
eloquência discursiva em vias públicas. Agressão é feita cotidianamente por companheiros
que matam, patrões que assediam, Estado que não assegura creches, asilos ou
salários dignos e consequentemente empurra para que as mulheres exerçam a
tripla jornada em seus lares no cuidado das crianças e idosos.
Precisamos ter o cuidado de não
comprar a narrativa do opressor. Isso não é difícil de acontecer, pois possuem
toda uma estrutura para disseminar uma versão discriminatória de sociedade.
Desconsiderar a luta das que se expõe é seguir o fluxo de uma sociedade
violenta, que queimou centenas de mulheres em fogueiras como “bruxas” na Idade
Moderna, que considerou todas as que infringiam os “bons costumes” como loucas.
Se loucas somos nós que desafiamos essa normalidade doentia, então não há
problema nenhum com esse adjetivo.
Ana
Paula Ferreira
Mestre
em Educação e supervisora na rede estadual
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