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sexta-feira, 24 de março de 2023

É preciso ir soltando a mão

 


Eu deveria ter tirado uma foto, mas não tirei.

Ficou registrada em mim a lembrança e a forma de eu traduzir o que está na minha mente é apenas se eu contar... então vamos lá.

Viagem a São Paulo com a amiga e as crianças. A programação era visitar museus, parques, só que tomou outro rumo. As crianças queriam além do combinado, andar de metrô, afinal essa experiência ainda não fazia parte de suas vidas.

Recomendação de mãe: Isabela, você vai ficar próxima a mim, pois geralmente é muito lotado.

Pois bem. A Marci segurava a mão da Tatá, sua filha de 8 anos e a Bela estava agarrada em mim, como um carrapato. Maria, a filha mais velha da Marci, ia na frente, toda segura de si.

Enquanto fazíamos o caminho até chegar no metrô, quantas coisas foram aprendendo... identificaram no mapa, onde estávamos e onde iríamos e experimentaram a compra dos bilhetes nas máquinas. Perceberam que escada rolante é para poupar tempo e esforço humano, mas que para muitos paulistanos elas ainda são lentas demais, pois há um local na lateral destinada para os que querem se apressar. Descobriram que para entrar no metrô não pode ser depois do silvo e que é possível verificar o trajeto de acordo com a luz que vai se acendendo no painel com o nome de cada estação.

No retorno, não havia a tensão inicial porque não tinha tantos passageiros. Qual a foi a cena linda que merecia foto? De ver as duas crianças, que até então estavam presas às suas mães, se sentirem desafiadas por si mesmas a voltar, como se fossem João e Maria, seguindo as migalhas de pão.

E era bem isso... precisaram observar e ler o cenário: letreiros, placas, pistas, lembranças. As adultas iam atrás, com uma distância segura, acompanhando o desenvolvimento, olhando se elas acertavam o caminho ou não. Em determinado instante a Tatá ficou longe da Bela, e a Bela recuou, esperou a amiga e seguiram. Seguiram.

Não teve como eu não lembrar da origem da palavra pedagogo, que vem do grego, juntando o pedacinho paidós (criança) e o pedaço agogé (condução). Era um trabalho realizado pelos escravizados na Grécia Antiga, que consistia em acompanhar a criança até a escola, ou seja, até o saber.

Adquirir um saber é uma condição para libertação, de independência, de soltar a mão de quem está te tutelando. Não ter a mão de alguém pode dar uma sensação de insegurança, de se sentir sozinho, mas é um ato de coragem, de quem se entrega na aprendizagem contínua e vai lendo pistas para trilhar com mais firmeza e nisso saí criando novas estradas.

A pergunta é: nós, adultos, estamos acompanhando com zelo para que nossas crianças e jovens se sintam confiantes em apostar na liberdade?

E isso não é fácil. Afinal, é preciso ir soltando a mão, mas sem desamparar. Por isso, o trabalho do antigo pedagogo grego pode ser referência, para famílias e educadores. Ele não levava a criança no colo, nem tampouco negava de guiar. Ele acompanhava, estava presente para orientar, para aconselhar.

Não são poucos os casos de adolescentes que vão à minha sala alegando ansiedade. O curioso é que “na conversa vai e conversa vem”, descubro que não possuem rotina, que vão deitar de madrugada, que ficam isolados nos seus quartos horas a fio no celular, se comparando com todas as vidas, ao ponto de cogitarem que que são insignificantes. Não há hábito de leitura de livro, nem prática de atividade física, nem conversa em família. Entretanto, tomam remédio para ansiedade.

Na ausência de projetos e de pessoas que os acompanhem na jornada, estão estagnados num repetitivo presente e enquanto isso, estendem a mão para a medicalização. Não são livres, pelo contrário, estão presos a droga e à uma ausência de rumo. Daí conversamos e eu como pedagoga, tento acompanha-los. Esboçamos as possibilidades de mexer no cotidiano, oriento o quanto a atividade física traz a sensação de prazer e bem-estar, de como é saudável diminuir a conexão com as telas e aumentar o vínculo com amigos e família. Saem da minha sala levando um rascunho da prosa e um livro de literatura debaixo do braço.

E eu, fico a observar, na esperança de que entendam que o conhecimento é bússola que serve à autonomia, para não depender, nem de ninguém, nem de nada. Só assim, suas mãos estarão livres e trilharão com segurança os próprios caminhos, sem se sentirem abandonados.

 

 

Ana Paula Ferreira

Pedagoga e Supervisora da rede estadual
Texto publicado no Jornal da Cidade - 24/03/2023

quinta-feira, 16 de março de 2023

Feminismo dos bastidores e dos palcos

            

Fotografia de Nany de 2020

            Certa vez, eu estava num café e uma mulher, que chegou com uma colega, desabafou “Eu até concordo com algumas coisas das feministas, mas não tudo”. Pois bem. O que era esse tudo? Por fim, ela relatou que se incomodava com as que mostravam os seios em praça pública, as que faziam esquetes teatrais chocantes, as que defendiam o aborto.

            Fiquei pensando o quanto esse pensamento não deixa de ganhar projeção entre tantas outras. E no fundo é o pensamento da nossa sociedade que finge ser libertária, mas que exerce o controle de corpos a todo momento. “Eu gosto de dar aula, mas com alunos quietos”, “Não sou racista, mas sou contrário às cotas”, “Respeito os homossexuais, mas eles não precisam ser escandalosos”… e exemplos não faltam pra elucidar que no comportamento ainda há a persistência do controle, da desigualdade de narrativas ou da negação às várias formas de ser no mundo.

            Tem ganhado espaço os discursos contra violência de gênero. Mas, eles adquirem aprovação quando são em palestra, entrevista na TV, fala nas redes sociais. São ferramentas importantes porque transmitem uma ideia de Direitos humanos, porém, desde que sejam comunicações dentro do que se considera como um marco civilizacional. Tudo que fugir a isso é considerado barbárie, coisa de feministas loucas.

            Em 2017 fizemos um ato no terminal de linhas urbanas da cidade de Poços de Caldas para denunciar o feminicídio. Não faltaram ataques nas redes sociais. E olha que ninguém estava com os peitos à mostra. Diariamente as mulheres precisam se impor para falar, se posicionar, serem ouvidas. O espaço não é dado. É duramente conquistado, pois não é considerado como delas. Daí que homens, mesmo os que se acham desconstruídos, as coloquem no papel de “destemperadas”, de “nervosas”, de “mentirosas”, mas não observam que elevam o tom de voz, que são irônicos e sarcásticos para desconsideram os argumentos femininos, que exercem uma violência de “Barbas Azuis” da modernidade. Na verdade, anseiam que ninguém exponha o quartinho sombrio onde mutilaram verbalmente as diversas mães, filhas, trabalhadoras, não querendo por fim se encontrar com o seu próprio “eu” raivoso, que assedia, humilha as mulheres.

            E como esses “Barbas Azuis” fazem esse movimento? Como os opressores sempre fizeram. Ou elaboram uma história para retirar a dignidade do outro, de modo que ninguém lhe tenha apreço ou o ignoram, o tratam como invisível. A invisibilidade está no silenciamento dos nomes atribuídos aos monumentos de uma cidade ou mesmo nas “micro” histórias, das que ocorrem no dia a dia, nas casas, nas escolas, nas fábricas, nas ruas.

            Mas a resistência é algo apaixonante para quem contesta a opressão. Porque ela encontra mecanismos criativos de se colocar. Pode ser desde a protagonista do livro “A vida invisível de Euridice Gusmão” no qual a dona de casa, quietinha e reservada, vai se colocando pouco a pouco na arte literária, na vida pública, ou pode ser de uma maneira mais ousada, fora dos padrões, daquelas que marcaram histórica pela intensidade e continuidade na luta.

            Se hoje há a liberdade de contestar a desigualdade entre homens e mulheres sem sermos mortas por isso, muito se deve a Olympe de Gouges que em plena Revolução Francesa tornou essa demanda explícita nos seus textos teatrais e que por conta de sua petulância em desafiar um política pensada por homens e para homens, foi guilhotinada.

            Se atualmente há direitos trabalhistas, sociais e econômicos, não há como não reconhecer os benefícios do socialismo soviético e quem iniciou a primeira fase da Revolução Russa foram as tecelãs na sua greve por “pão e paz”, cuja data é o marco feminista do dia 8 de março. Se temos a liberdade em votar e sermos votadas, é devido a luta de diversas mulheres, com destaque a irreverência de Bertha Lutz, que usou de um avião para lançar panfletos sobre o sufrágio feminino.

            Portanto, a palavra é sororidade. Respeito às mulheres que não possuem o perfil de sair às ruas, de se expor publicamente e fazem a mudança de mentalidade nos bastidores. Contudo, respeito também às que se colocam de uma maneira mais combativa, nos palcos sociais. A feminista militante não está agredindo ninguém com seu corpo exposto ou na eloquência discursiva em vias públicas. Agressão é feita cotidianamente por companheiros que matam, patrões que assediam, Estado que não assegura creches, asilos ou salários dignos e consequentemente empurra para que as mulheres exerçam a tripla jornada em seus lares no cuidado das crianças e idosos.

            Precisamos ter o cuidado de não comprar a narrativa do opressor. Isso não é difícil de acontecer, pois possuem toda uma estrutura para disseminar uma versão discriminatória de sociedade. Desconsiderar a luta das que se expõe é seguir o fluxo de uma sociedade violenta, que queimou centenas de mulheres em fogueiras como “bruxas” na Idade Moderna, que considerou todas as que infringiam os “bons costumes” como loucas. Se loucas somos nós que desafiamos essa normalidade doentia, então não há problema nenhum com esse adjetivo.

 

Ana Paula Ferreira

Mestre em Educação e supervisora na rede estadual