Se há “O perigo da história única” em tempos de modernidade líquida, sob a dificuldade em saber a veracidade das inúmeras informações que nos chegam diariamente, há o perigo de fofocas múltiplas, as quais, em certo sentido, também não deixam de convergir para uma história única.
A autora Chimamanda nos alerta sobre
a hegemonia de uma narrativa que alimenta preconceitos e injustiças sociais uma
vez que grupos historicamente desprivilegiados são estigmatizados… negros e
latinos são associados ao mundo do crime; indígenas brasileiros a preguiça e as
mulheres às pessoas destemperadas e desprovidas de racionalidade para cargos de
liderança.
Além da difamação a grupos
socialmente minoritários, pode ocorrer a calúnia ao “outro”, enquanto ser
individual. Nesse caso é a fofoca. A régua não é a dos Direitos Humanos, mas
pelas concepções de quem as emite. Esse é o termômetro. Assim, se o avaliador é
alguém mais moderado, o outro é sempre radical e o mesmo vale para a situação
contrária. Não se trata do comentário de quem valoriza a pluralidade, mas de
quem quer simbolicamente eliminar o que é diferente.
Isso porque a fofoca não tem por
finalidade possibilitar que o outro reflita, repense e mude até porque “o outro”
não é o destinatário da conversa, mas o conteúdo em questão. O outro não é o
sujeito, mas sim, objeto e, portanto, é coisificado.
Todos nós somos suscetíveis a
participar da detração, afinal ela possibilita o sentimento que somos dignos de
confiança na partilha de informações alheias, independentemente de serem falsas
ou verdadeiras. Há um vínculo entre os que trocam os dados, numa sensação de
ser superior a quem está sendo caluniado.
A fofoca é múltipla e atende ao
provérbio “quem ouve um conto aumenta um ponto”. Pode ser elaborada no ambiente
de trabalho, na família, nos espaços de lazer, religiosos e os mais variados
lugares. Se, por um lado, a luz em excesso cega, o excesso de mensagem provoca
desinformação. Na mesma analogia, se um deficiente visual precisa de um suporte
para se locomover, o cego de informação, terá como crivo a confiança depositada
em quem lhe transmite a mensagem. Apoia-se na opinião naqueles e naquelas por
quem tem simpatia, consideração e respeito e por isso não é uma comunicação
pautada apenas na racionalidade. Há a questão subjetiva, afetiva, emocional.
Isso pode trazer várias
consequências. Dor e sofrimento para quem se percebe caluniado, sem saber como
reagir, porque o direito a voz é negado, afinal, não sabe exatamente o que é
dito e nem quem diz. No caso de detração política é ainda pior, pois ceifa a
democracia, e o valor do debate é substituído por invenções para tirar o foco
de propostas, de projetos que poderiam ser construídos.
Os autores do livro “Como as
democracias morrem” analisaram que antes havia uma ditadura bem delimitada que
acabava com os processos democráticos e que hoje o “retrocesso democrático
começa nas urnas”. Podemos pensar inclusive, que o retrocesso se inicia antes
das urnas, uma vez que a mentira ganha mais espaço, seja diante da letargia do
Judiciário em agir no combate à propagação de notícias falsas, seja pela
ambição de empresas que gerenciam a comunicação e lucram com as boatarias, e
até mesmo por conta de uma parcela da população que se exime da
responsabilidade de observar, de buscar saber outras versões e simplesmente
compartilha mensagens falsas.
Não é o fato de estar acostumado a
fofoca, que ela deve ser naturalizada. Ela não está no nosso DNA, ela é
cultural, e como tal, precisa ser repensada. Se queremos um ambiente
democrático isso perpassa em falar “com” o outro e não “do” outro. Se queremos
um ambiente democrático não significa sair em busca da onde a fofoca surgiu,
porque democracia não se faz com perseguição. Por outro lado, também, não
podemos fingir que ela não exista, pois isso significaria aceitar que histórias
sejam apagadas ou rasgadas por difamações.
Enquanto educadora, lembro de Paulo
Freire quando ressalta sobre nosso inacabamento, já que estamos em constante
formação. Isso dá certa leveza, pois há liberdade para assumir falhas, abrindo
brecha para disposição em acertar, principalmente quando a reflexão se faz
presente para desnaturalizar determinadas posturas. Afinal, se projetamos
beleza, justiça, transparência para o mundo, é incoerente persistir com a
detração, pois significaria um ataque não apenas às pessoas, mas à democracia e
à semente de um novo projeto de sociedade.
Ana Paula Ferreira, supervisora escolar e mestre em Educação
Texto também publicado no Jornal da Cidade, 26 de novembro de 2022