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sábado, 26 de novembro de 2022

O perigo de fofocas múltiplas

           

Imagem retirada do Jornal da cidade 26/11/2022


             Se há “O perigo da história única” em tempos de modernidade líquida, sob a dificuldade em saber a veracidade das inúmeras informações que nos chegam diariamente, há o perigo de fofocas múltiplas, as quais, em certo sentido, também não deixam de convergir para uma história única.

            A autora Chimamanda nos alerta sobre a hegemonia de uma narrativa que alimenta preconceitos e injustiças sociais uma vez que grupos historicamente desprivilegiados são estigmatizados… negros e latinos são associados ao mundo do crime; indígenas brasileiros a preguiça e as mulheres às pessoas destemperadas e desprovidas de racionalidade para cargos de liderança.

            Além da difamação a grupos socialmente minoritários, pode ocorrer a calúnia ao “outro”, enquanto ser individual. Nesse caso é a fofoca. A régua não é a dos Direitos Humanos, mas pelas concepções de quem as emite. Esse é o termômetro. Assim, se o avaliador é alguém mais moderado, o outro é sempre radical e o mesmo vale para a situação contrária. Não se trata do comentário de quem valoriza a pluralidade, mas de quem quer simbolicamente eliminar o que é diferente.

            Isso porque a fofoca não tem por finalidade possibilitar que o outro reflita, repense e mude até porque “o outro” não é o destinatário da conversa, mas o conteúdo em questão. O outro não é o sujeito, mas sim, objeto e, portanto, é coisificado.

            Todos nós somos suscetíveis a participar da detração, afinal ela possibilita o sentimento que somos dignos de confiança na partilha de informações alheias, independentemente de serem falsas ou verdadeiras. Há um vínculo entre os que trocam os dados, numa sensação de ser superior a quem está sendo caluniado.

            A fofoca é múltipla e atende ao provérbio “quem ouve um conto aumenta um ponto”. Pode ser elaborada no ambiente de trabalho, na família, nos espaços de lazer, religiosos e os mais variados lugares. Se, por um lado, a luz em excesso cega, o excesso de mensagem provoca desinformação. Na mesma analogia, se um deficiente visual precisa de um suporte para se locomover, o cego de informação, terá como crivo a confiança depositada em quem lhe transmite a mensagem. Apoia-se na opinião naqueles e naquelas por quem tem simpatia, consideração e respeito e por isso não é uma comunicação pautada apenas na racionalidade. Há a questão subjetiva, afetiva, emocional.

            Isso pode trazer várias consequências. Dor e sofrimento para quem se percebe caluniado, sem saber como reagir, porque o direito a voz é negado, afinal, não sabe exatamente o que é dito e nem quem diz. No caso de detração política é ainda pior, pois ceifa a democracia, e o valor do debate é substituído por invenções para tirar o foco de propostas, de projetos que poderiam ser construídos.

            Os autores do livro “Como as democracias morrem” analisaram que antes havia uma ditadura bem delimitada que acabava com os processos democráticos e que hoje o “retrocesso democrático começa nas urnas”. Podemos pensar inclusive, que o retrocesso se inicia antes das urnas, uma vez que a mentira ganha mais espaço, seja diante da letargia do Judiciário em agir no combate à propagação de notícias falsas, seja pela ambição de empresas que gerenciam a comunicação e lucram com as boatarias, e até mesmo por conta de uma parcela da população que se exime da responsabilidade de observar, de buscar saber outras versões e simplesmente compartilha mensagens falsas.

            Não é o fato de estar acostumado a fofoca, que ela deve ser naturalizada. Ela não está no nosso DNA, ela é cultural, e como tal, precisa ser repensada. Se queremos um ambiente democrático isso perpassa em falar “com” o outro e não “do” outro. Se queremos um ambiente democrático não significa sair em busca da onde a fofoca surgiu, porque democracia não se faz com perseguição. Por outro lado, também, não podemos fingir que ela não exista, pois isso significaria aceitar que histórias sejam apagadas ou rasgadas por difamações.

            Enquanto educadora, lembro de Paulo Freire quando ressalta sobre nosso inacabamento, já que estamos em constante formação. Isso dá certa leveza, pois há liberdade para assumir falhas, abrindo brecha para disposição em acertar, principalmente quando a reflexão se faz presente para desnaturalizar determinadas posturas. Afinal, se projetamos beleza, justiça, transparência para o mundo, é incoerente persistir com a detração, pois significaria um ataque não apenas às pessoas, mas à democracia e à semente de um novo projeto de sociedade.

 

                                                                 Ana Paula Ferreira, supervisora escolar e mestre em Educação


Texto também publicado no Jornal da Cidade, 26 de novembro de 2022

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Eu no Brasil com as corporações

                                        Imagem: https://www.china-briefing.com/news/understanding-brand-building-in-china-lessons-from-the-rise-of-coca-cola/

             Quando era adolescente caiu na minha mão o livro “Henfil na China – antes da Coca-Cola” e achei o máximo as experiências relatadas pelo cartunista brasileiro no imenso país asiático de economia socialista. Aliás, o próprio título enfatiza esse período ao mencionar que foi num contexto anterior a chegada da grande corporação de refrigerante. Na obra, Henfil fica perplexo quando conversa com médicos que atuavam na zona rural e percebe que ganhavam apenas um pouco a mais do que os camponeses. Não se incomodavam com o fato porque a compreensão era de que todos os trabalhos são importantes e, portanto, todos precisavam de valorização, enquanto uns curam, outros põem comida na mesa dos cidadãos.

            É emblemático o “antes da Coca-Cola” porque quando uma corporação ocupa um espaço, não ocorre apenas a entrada de compra e venda desse produto. É a produção de um modo de agir, de ser e de compreender o mundo. Nesse caso em específico, fica no imaginário a figura da família sentada a mesa farta, entre risos brancos e conversas amigáveis bebendo esse refrigerante. Ou de um papai Noel esbanjando saúde com seus cabelos grisalhos tomando um gole ou outro da bebida.

            Nas prateleiras de supermercado não compramos família, nem amigos, nem felicidade. Por outro lado, o que a propaganda faz é produzir esse combo: compre um refrigerante e ganhe amigos. Os dentes que nos sorriem os personagens do comercial não são os mesmos dentes de quem toma frequentemente essa bebida, nem tampouco a pele lisa e lustrosa do bom velhinho é a mesma pele dos consumidores desse produto.

            A distância entre a propaganda e a realidade não é novidade. E, diga-se de passagem, é tão comum as pessoas saberem o poder corrosivo desse produto que usam para desentupir pias. Porém, os efeitos maléficos não se restringem a saúde humana de problemas com diabetes, ansiedade ou diminuição da quantidade de vitaminas no corpo. Os impactos também são ambientais e sociais.

            De acordo com o documentário “The Corporation” as corporações norte-americanas se fortaleceram em cima da 14ª emenda que as consideraram como se fossem pessoas. Num paralelo de que tipo de pessoas seriam, os documentaristas as comparam com o perfil psicopático, tendo em vista que são incapazes de seguir regras ou de sentirem culpa, não se preocupam com a segurança ou bem-estar alheio, usam da mentira para obter lucros ou vantagens, manifestam desprezo pelo sentimento alheio.

            Não é sem razão que houve denúncia em 2018 de que as nascentes dos rios de Minas Gerais estavam secando com a exploração da água pela empresa ou que ela se destaca na quantidade de lixo plástico nos mares e oceanos. Nega um compromisso com o meio ambiente e usurpa a qualidade de vida de gerações que dependem daquele meio para sua sobrevivência. Não satisfeita ao faturamento sempre crescente, a companhia evitou esforços para ajudar os pequenos empresários em período de pandemia. Isso aconteceu com Maria, uma amiga dona de um pequeno bar de bairro. Devido as quedas de consumo, a proprietária não conseguiu vender a quantidade de refrigerantes disposta no contrato e a consequência foi a retirada do freezer que era cedido para a dona do estabelecimento. Se já era difícil vender em plena pandemia num bar, sem freezer isso ficou mais insustentável. Essa recusa em perceber o outro não é caso isolado. Houve situação da distribuidora da bebida ser condenada pelo Ministério Público por estender a jornada de trabalho em 14 horas.

            Podemos enquanto consumidores comprar de empresas que sejam mais responsáveis com o meio ambiente e com a sociedade, mas isso é apenas um início de pressão social. É necessário que altas fortunas sejam taxadas de maneira a haver mais recursos para as políticas públicas; que haja regulamentações sérias por parte do Estado e que a fiscalização ambiental seja uma constante; que as propagandas de produtos nocivos ao desenvolvimento infantil sejam evitadas em canais destinados às crianças, evitando um consumismo inconsciente; e que leis trabalhistas forneçam direito ao descanso, ao salário digno e a segurança.

            Para isso, não é necessário resgatar uma China que já passou e que também teve seus percalços. Os tempos e as demandas são outras. Por outro lado, se precisamos das empresas, que haja um controle dessas, de modo que possamos ter um ambiente sustentavelmente seguro e uma sociedade com mais condições humanizatórias de desenvolvimento.

 

Ana Paula Ferreira

Supervisora escolar e Mestre em Educação

Texto publicado no Jornal da Cidade 04 de novembro de 2022