Páginas

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Quem são eles?

 Quem são eles?

Imagem da revista Galileu

             Esse ano tive a alegria de ir a uma peça teatral que dá nome a esse texto e me deparar com uma produção amargamente fantástica. Digo amarga porque o doce às vezes envenena a consciência, a deixa letárgica e precisamos do amargo para nos colocar em pleno funcionamento cognitivo e corporal. Em meio a tanto pensamento socrático voltado ao “Quem sou eu?”, a peça desponta trazendo o olhar para “Quem são eles?”, numa busca de entender o que está acontecendo ao redor, porém, sob os entraves dos aparelhos de controle que limitam a capacidade de pensar e de refletir de maneira séria e ética.

Se por um lado há uma tentativa de sair de um paradigma narcísico e entender o outro, essa visão fica embaçada na medida que o outro é colocado como alguém insuportavelmente distante, diminuindo a noção de alteridade, na qual o outro me afetaria e eu afetaria o outro.

Talvez essa distância realmente aconteça com o modo de vida que estamos escolhendo, nos fechando em bolhas e tirando do caminho todos os indesejáveis, os diferentes, os que nos irritam. E daí que a peça embora fale do outro, também diz sobre nós, afinal, em que medida tentamos dialogar com o diferente? E se não criamos essas pontes, como pretendemos cuidar da democracia?

Democracia é uma criança pequena. Quando li essa ideia num livro da Tiburi achei lindo. E realmente ela é extremamente indefesa e está engatinhando para o que pode ainda se desenvolver. Há aqueles que não colocam apreço a sua beleza e apregoam que há coisas mais importantes, tais como saneamento ou saúde. Contudo, não levam em conta que uma coisa está atrelada a outra. Janine mostrou isso muito bem no livro “A boa política”, no qual aponta que após a abertura democrática o Brasil teve ganhos extraordinários. Segundo o autor, sob o período de ditadura, mais de 80% dos municípios tinham IDH baixo e atualmente esse percentual é menor do que 1%. Cabe reforçar que no período que os militares estiveram no poder, havia quantidade insuficiente de escolas para suprir a demanda, a violência do Estado era acobertada, a desigualdade alta e ainda nos deixaram como herança uma imensa dívida pública. Portanto, ter democracia é condição para avanço de políticas públicas.

Mas, não é isso que a cúpula da fábrica de mentiras quer. Querem destruir a democracia e por isso tentam silenciar professores, jornalistas, artistas, cientistas e qualquer um que busque colocar em xeque as corrupções, falcatruas e negligências. É como se estivéssemos dentro da obra “1984” de George Orwell, sob o Ministério da Verdade, chamado de Miniver. Aliás, esse nome é proposital, para deixar clara a diminuição da verdade, ao ponto de se tornar minúscula.

Sem controle do que seja verdade as pessoas são ludibriadas a acreditar em outras, nas quais depositam sua fé e nem sempre isso é uma decisão sábia. Exemplos disso não faltam, pois a responsável pela pasta Mulher, Família e Direitos Humanos, que já fez diversas declarações homofóbicas, machistas e de ataque às próprias crianças em seus direitos, foi eleita senadora pelo Distrito Federal; o ex-ministro do meio ambiente que representou interesses dos contrabandistas de madeira foi eleito deputado federal por São Paulo e o ex-ministro da saúde que foi investigado por tentar comprar vacinas superfaturadas e que retardou o envio de socorro a Manaus, provocando inúmeras mortes por falta de oxigênio, também ganhou os votos de grande parte do Rio de Janeiro e assumirá mandato de deputado federal.

Não ter uma verdadeira democracia serve a quem quer se apropriar do poder para fins particulares, atendendo ao grande capital, bancos, corporações, latifundiários e pessoas que lucram com a miséria. Daí que façam aclamação a ditadura e defendam da maneira mais vil seus torturadores.

Na obra “Senhor das moscas” o avião que levava crianças que fugiam da guerra foi atingido. Elas aterrizaram numa ilha e para se organizar, ficou acordado que quem estivesse de posse de uma grande concha, falaria. A concha era o símbolo da comunicação, do meio para se atingir a linguagem e as bases democráticas. Quando não há mais diálogo reina a violência, a barbárie e morte, no qual quem ganha são que esperam pela podridão, para se alimentar do que está se decompondo.

Quem são eles, senhores das moscas? Quem são os que ganham com a fome, com o desemprego, com a falência de pequenos empresários? Os donos do capital não são nossos parceiros de luta por uma democracia, afinal seus interesses não estão assentados na preservação da vida. Mas, quem são eles, vizinhos, familiares e colegas que repetem os discursos contrários a defesa dos direitos humanos ou a processos democráticos? Com eles ainda talvez seja possível conversar, dialogar, esperançar, para que evitemos que a concha da comunicação se torne objeto descartável.

 

Ana Paula Ferreira

Supervisora escolar e mestre em Educação 


Texto publicado no Jornal da Cidade, 18 de outubro de 2022. 

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Generosidade e mesquinhez

    

             


                   Generosidade! Palavra às vezes confundida com caridade. Imaginamos sopa aos moradores de rua em época de Natal (afinal a fome só existe nessa época) ou em balas lançadas de cima de uma caminhonete para crianças da periferia, as quais catam o doce que se espalha pelas ruas por onde o cheiro das fezes dos animais se mistura com o lixo espalhado pelas vias públicas. Os doadores, pessoas de coração piedoso, se enchem de alegria, tiram fotos e colocam em suas redes sociais.

            Não. Generosidade não é caridade. Trata-se de doar, de partilhar, mas não é para fins rasteiros de promoção ou de status social. Está ligada a uma percepção de ética planetária, de que tudo está interligado.

Vou dar um exemplo de quem manifestou um olhar pleno sobre o todo. Tio Vicente é marceneiro aposentado, pessoa forte e de coração enorme. Outro dia arrancou com a enxada os matos que nasciam na beirada do meio-fio de todo o quarteirão da rua e antes que eu perguntasse o motivo ele se explicou “olha, se eu deixasse crescer teria mais insetos que poderiam picar o vizinho e se ele ficasse doente, poderia passar doença para dentro da minha casa”.

            Ser generoso é compreender que o bem faz bem, não porque se vai para o céu. Generosidade faz bem porque saímos da condição de parasita, daqueles que apenas consomem o que está posto, a água, ar, solo e alimentos e nos colocamos no papel de quem também quer contribuir para o espaço ambiental e social. É o oposto de mesquinhez.

            Mesquinharia é a perspectiva estreita de querer benefícios apenas para os seus e por isso pouco agrega para a humanidade. É o banqueiro que lucra com alta taxa de juros mesmo sob o endividamento de milhões, a mulher de elite que não quer pagar os direitos trabalhistas da emprega doméstica, é o latifundiário que incendeia matas para produzir pasto, o pastor que ganha propina do Ministério da Educação ou o presidente que nega que a fome exista no Brasil.

            A mesquinharia não está apenas nos gestos, no comportamento humano, mas num campo de pensamento que transfere apenas para o indivíduo a carga de sua inteira responsabilidade. Nesse campo, é como se não existisse o infortúnio. É como se não houvesse o acidente de trabalho que não é coberto pela Previdência Social; ou o desalojamento por falta de pagamento do aluguel, ou a mulher que está sem moradia porque fugiu do marido agressor. É como se tudo se resolvesse na força de vontade do indivíduo e na sua perseverança.

            Fé e força são ótimos combustíveis para ação humana. Mas é necessário mais que isso e daí que entram as políticas públicas. Quando há construção de creches, postos de saúde, universidades, há emprego para o pessoal da construção civil. Assim que construídos esses prédios públicos, há contratação de outros trabalhadores e tudo isso gira a economia e a empregabilidade. Se há política pública séria, de fiscalização e multa, isso diminuí a queimada e consequentemente ocorre um controle do preço do alimento, favorecendo a preservação ambiental como também a alimentação acessível.

            Mesquinhez é umbigo. Generosidade é mão que acolhe, é braço que trabalha, é cabeça que sabe que o mundo é bem mais amplo do que pessoas ligadas pela religião ou tipo sanguíneo. Mesquinhez é motociata enquanto famílias perdem entes queridos para o coronavírus. Generosidade é o trabalho invisível de médicos e enfermeiras que se doaram no atendimento aos enfermos. Mesquinhez é o legado da morte, da não vacina, do deboche, da necropolítica. Generosidade foi a luta incessante para que as pessoas tivessem o que comer.

            Conceição Evaristo já dizia que a periferia e a população pobre e negra sobrevivem porque “combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer”. Só há humanidade porque ainda há preocupação uns com os outros. Aliás, segundo Bauman, nos diferenciamos de outros animais por conta da nossa capacidade de cuidar do próximo e isso foi observado entre os antropólogos diante de um fóssil de criatura humanóide que tinha o osso quebrado nos primeiros anos de vida. O interessante foi que esse ser só veio a falecer na vida adulta. Isso significa que não foi largado ao azar da fratura óssea. Alguém cuidou dele e foi possível que seguisse com o bando. Bando… grupo, coletivo. Abandono… estar fora do bando. Que nossa condição humana de cuidado, de generosidade, nos lembre que é possível um outro país, uma outra sociedade para que consigamos um lugar melhor para viver em comunhão uns com os outros e com o meio ambiente, sem deixar ninguém de fora de seus direitos humanos.

 

Ana Paula Ferreira

Supervisora escolar e mestre em Educação

Texto saiu no Jornal Mantiqueira do dia 14/10 e no Jornal da cidade.
https://www.jornalmantiqueira.com.br/2022/10/14/generosidade-e-mesquinhez/