Começo esse texto pensando quando tive contato com o livro “Notícias de lugar nenhum”, pois uma das coisas que marca essa obra literária é a compreensão do trabalho. Ele não seria marcado pela exaustão, exploração ou alienação. O sujeito poderia exercer atividade de pesca durante a manhã, marceneiro a tarde e escrever resenhas de livros ao entardecer. Não haveria a divisão entre o trabalho braçal e o intelectual, pois as pessoas, movidas pelo interesse em aprender, poderiam desenvolver durante a vida vários ofícios e ninguém ganharia lucro pelo trabalho alheio. Essa seria a sociedade ideal.
Na
sociedade real, onde estamos com os pés fincados, a situação infelizmente é
outra. A divisão do trabalho começa na classe social e quem é filho de
trabalhador aprenderá desde cedo alguma ocupação, nem que isso signifique ter
menos tempo para o estudo. Ora, as oportunidades para galgar profissões
financeiramente mais valorizadas não são promissoras a grande maioria da
população, e, portanto, é muito mais comum que a camada popular continue a
desempenhar um trabalho de força bruta.
Qual
o problema dessa divisão do trabalho? Um deles é que o ser humano não atinge
seu potencial enquanto sujeito, e características que nos diferenciam dos
outros animais, tal como o ato de criar, de ter uma linguagem, de refletir e
até mesmo de ensinar são parcamente desenvolvidas.
Sim.
Nós todos temos a capacidade de transmitir algo, seja uma receita culinária, um
passo de dança ou qualquer coisa da qual saibamos. Fazemos isso porque somos
seres de linguagem e simbólicos, o que torna possível pensarmos num passado,
refletirmos em relação a um presente e projetarmos um futuro. Mas, a pergunta
é: será que na sociedade em que vivemos todos conseguem ensinar? Se sim, com
qual custo?
Antes
de responder a primeira pergunta, cabe pensarmos que sociedade é essa. De
acordo com o pensador polonês Bauman, estamos inseridos numa sociedade do
consumo, no qual as relações humanas se tornam líquidas, diante de um excesso
de individualismo que corrompe os laços comunitários. Não apenas produtos são
publicizados, como também as próprias pessoas buscam por holofotes. É como se
estivéssemos num reality show no qual os aplausos são os likes, as
curtidas e os compartilhamentos, pois o nosso vazio se preenche em sermos
vistos, e nessa ânsia em pertencer a sociedade do espetáculo, perde-se a noção
qual é o limite entre privado e o público, o objeto e a pessoa.
As
consequências são trágicas. Cidadão é transformado em consumidor e discursos do
tipo “Eu pago seu salário” para funcionários públicos são cada vez mais comuns,
enfatizando um tratamento no qual direito social vira produto. Ao invés da
conversa, é a filmagem e exposição do outro, hostilizado como inimigo; ao invés
de se ouvir o que a pessoa tem a dizer é frase de efeito, rápida e cortante.
Não se tem a intenção de perceber o outro: os olhos estão vidrados na tela do
celular e tal como Narciso que se afunda na miragem do seu próprio eu, da sua
própria verdade, o que o outro tem a falar não importa, o que importa é
ridicularização pública, o extermínio simbólico do sujeito.
Portanto,
por mais que seres humanos tenham a capacidade de ensinar uns aos outros, nesse
modelo social em que vivemos, ao tentarem por via de uma comunicação
intimidatória, não exercem a capacidade de ensinar de maneira responsável e
respeitosa. Quem se propõe a ensinar, a corrigir, a criticar, deve ter como
foco a mudança do que foi percebido como inadequado e, portanto, não se trata da
aniquilação do sujeito, mas a mudança do ato em si. Caso contrário, voltaríamos
no modelo social dos castigos e as humilhações serem tratados como algo normal.
Um
dos objetivos de se ensinar é para a construção de um processo civilizatório,
que se distancie da barbárie. Lamentavelmente a barbárie não é mera ilustração
de livros de história dos campos de concentração da II Guerra Mundial ou as
celas do DOI-CODI na época da ditadura. A barbárie está em toda ação violenta que
objetifica os seres humanos, quando são tratados como coisas que devem ser
banidas da terra.
Se
a intenção é retirar uma palavra de um muro e a palavra foi retirada, se a
explicação foi dada, qual é o objetivo de se expor, xingar, ou tratar com
ironia e desprezo? É o discurso de ódio, daqueles que querem existir apenas na
destruição do outro. Paulo Freire já dizia que amor é um ato de coragem. Lendo Fromm
que fui entender. Amor não é algo gratuito, não é espontâneo. Exige paciência,
exercício contínuo para não tomar a via fácil do rancor, do ódio.
Eu
quero acreditar que é possível a utopia de uma sociedade que todos tenham vida
digna e trabalhem por prazer. Quero acreditar que outra humanidade, mais
empática é possível. Quero ter esperanças que as pessoas possam falar o que as
incomodam sem ter que destruir o outro. Hoje não está fácil crer nisso. Mas,
amanhã é outro dia.
Ana Paula Ferreira
Educadora
Amanhã há de ser um novo dia!
ResponderExcluirAna Paula, parabéns pelo texto. Maravilhoso! Vc me fez pensar como a educação a leitura é fundamental para evoluirmos como cidadãos. Uma educação inovadora que possibilita a liberdade do pensamento e da criatividade, sem amarguras, aprisionamentos e violências da alienação do outro. Temos que ter sempre esperança por dias melhores, onde a justiça e a democracia seja aprendida e entendida por todos, em sociedade justa e igualitária.Onde a vida importa sem nenhuma discriminação.
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