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quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Ensinar: a sociedade está preparada a fazer?

           

Figura do vídeo "Zumbis ao celular

          Começo esse texto pensando quando tive contato com o livro “Notícias de lugar nenhum”, pois uma das coisas que marca essa obra literária é a compreensão do trabalho.  Ele não seria marcado pela exaustão, exploração ou alienação. O sujeito poderia exercer atividade de pesca durante a manhã, marceneiro a tarde e escrever resenhas de livros ao entardecer. Não haveria a divisão entre o trabalho braçal e o intelectual, pois as pessoas, movidas pelo interesse em aprender, poderiam desenvolver durante a vida vários ofícios e ninguém ganharia lucro pelo trabalho alheio. Essa seria a sociedade ideal.

Na sociedade real, onde estamos com os pés fincados, a situação infelizmente é outra. A divisão do trabalho começa na classe social e quem é filho de trabalhador aprenderá desde cedo alguma ocupação, nem que isso signifique ter menos tempo para o estudo. Ora, as oportunidades para galgar profissões financeiramente mais valorizadas não são promissoras a grande maioria da população, e, portanto, é muito mais comum que a camada popular continue a desempenhar um trabalho de força bruta.

Qual o problema dessa divisão do trabalho? Um deles é que o ser humano não atinge seu potencial enquanto sujeito, e características que nos diferenciam dos outros animais, tal como o ato de criar, de ter uma linguagem, de refletir e até mesmo de ensinar são parcamente desenvolvidas.

Sim. Nós todos temos a capacidade de transmitir algo, seja uma receita culinária, um passo de dança ou qualquer coisa da qual saibamos. Fazemos isso porque somos seres de linguagem e simbólicos, o que torna possível pensarmos num passado, refletirmos em relação a um presente e projetarmos um futuro. Mas, a pergunta é: será que na sociedade em que vivemos todos conseguem ensinar? Se sim, com qual custo?

Antes de responder a primeira pergunta, cabe pensarmos que sociedade é essa. De acordo com o pensador polonês Bauman, estamos inseridos numa sociedade do consumo, no qual as relações humanas se tornam líquidas, diante de um excesso de individualismo que corrompe os laços comunitários. Não apenas produtos são publicizados, como também as próprias pessoas buscam por holofotes. É como se estivéssemos num reality show no qual os aplausos são os likes, as curtidas e os compartilhamentos, pois o nosso vazio se preenche em sermos vistos, e nessa ânsia em pertencer a sociedade do espetáculo, perde-se a noção qual é o limite entre privado e o público, o objeto e a pessoa.

As consequências são trágicas. Cidadão é transformado em consumidor e discursos do tipo “Eu pago seu salário” para funcionários públicos são cada vez mais comuns, enfatizando um tratamento no qual direito social vira produto. Ao invés da conversa, é a filmagem e exposição do outro, hostilizado como inimigo; ao invés de se ouvir o que a pessoa tem a dizer é frase de efeito, rápida e cortante. Não se tem a intenção de perceber o outro: os olhos estão vidrados na tela do celular e tal como Narciso que se afunda na miragem do seu próprio eu, da sua própria verdade, o que o outro tem a falar não importa, o que importa é ridicularização pública, o extermínio simbólico do sujeito.

Portanto, por mais que seres humanos tenham a capacidade de ensinar uns aos outros, nesse modelo social em que vivemos, ao tentarem por via de uma comunicação intimidatória, não exercem a capacidade de ensinar de maneira responsável e respeitosa. Quem se propõe a ensinar, a corrigir, a criticar, deve ter como foco a mudança do que foi percebido como inadequado e, portanto, não se trata da aniquilação do sujeito, mas a mudança do ato em si. Caso contrário, voltaríamos no modelo social dos castigos e as humilhações serem tratados como algo normal.  

Um dos objetivos de se ensinar é para a construção de um processo civilizatório, que se distancie da barbárie. Lamentavelmente a barbárie não é mera ilustração de livros de história dos campos de concentração da II Guerra Mundial ou as celas do DOI-CODI na época da ditadura. A barbárie está em toda ação violenta que objetifica os seres humanos, quando são tratados como coisas que devem ser banidas da terra.

Se a intenção é retirar uma palavra de um muro e a palavra foi retirada, se a explicação foi dada, qual é o objetivo de se expor, xingar, ou tratar com ironia e desprezo? É o discurso de ódio, daqueles que querem existir apenas na destruição do outro. Paulo Freire já dizia que amor é um ato de coragem. Lendo Fromm que fui entender. Amor não é algo gratuito, não é espontâneo. Exige paciência, exercício contínuo para não tomar a via fácil do rancor, do ódio.

Eu quero acreditar que é possível a utopia de uma sociedade que todos tenham vida digna e trabalhem por prazer. Quero acreditar que outra humanidade, mais empática é possível. Quero ter esperanças que as pessoas possam falar o que as incomodam sem ter que destruir o outro. Hoje não está fácil crer nisso. Mas, amanhã é outro dia.

Ana Paula Ferreira

Educadora