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domingo, 26 de setembro de 2021

Sintomas de saudade

 


“Tem dias que a gente se sente, Como quem partiu ou morreu” já dizia Chico Buarque na música Roda Viva. Há coisas que nos ocorrem que perdemos o chão. Vamos caindo, caindo, caindo, que nem a Alice quando ela entra na árvore e se surpreende com um enorme buraco. Aliás, esse buraco não se faz apenas onde pisamos, mas também numa pontada no peito que parece que estão fazendo uma cirurgia e arrancando algo que estava lá. Entretanto, não arrancam. Abre-se um buraco, e nas suas paredes ficam armazenadas as fotos, filmes, lembranças, e a cada vez que há o interesse em olhar para essas memórias, o buraco se abre para nos mostrar que tudo está ali e minha vó estava ali.

            Minha vó faleceu no dia 03 desse mês. Na hora que eu soube da notícia, busquei um pano para secar as lágrimas e para minha surpresa, estava por cima de todos os outros um pano de prato que ela tinha bordado flores. É como se ela estivesse por ali dizendo, “eu não morri, estou aqui, nesse pano e em tantas outras coisas”.

Eu não pude deixar de lembrar de um texto do Leonardo Boff que li na minha época de aluna de colégio religioso. O texto era sobre um toco de cigarro que virou um sacramento, pois não era apenas um objeto em si, mas uma ponte que levava à figura do pai falecido. E, isso era o pano de prato... deixou de ser coisa, para resgatar a memória de uma velhinha que com seus 82 anos cuidava da casa, do marido, do filho, fazia sabão caseiro e adorava receber a família com alguma quitanda.

Aquele pano simbolizava bem minha vó. Primeiro porque realmente ela ajudava a gente a enxugar as lágrimas, pois em qualquer fase de nossas vidas foi presente. Estava em todo crescimento dos netos, puxando a orelha, dando sermão, preparando almoço dia de domingo. Aniversário nunca esquecia nenhum. Participava das formaturas, foi uma das primeiras pessoas a me visitar quando decidi morar sozinha e assim que minha filha Isabela nasceu lá estava ela. O pano também tem a característica de ser forte e isso ela foi e muito. Trabalhou como empregada doméstica, cuidadora de idosos, vendedora autônoma de semijoias, e mesmo aposentada, nunca parava, e parecia que seu mundo interior se preenchia no movimento. Apesar de forte, não deixou de ser encantadora. Lembro inclusive de passear com minha vó e as pessoas elogiarem seu jeito calmo, educado, manso de se comunicar. Essa forma de dizer com simpatia as palavras era a mesma ternura que fez as flores do meu pano, formando desenhos na união de uma linha com a outra. Contudo, não conseguiu fazer essa junção das pessoas. Cada pequeno grupo a visitava em dias diferentes. Mas, estavam ali porque ela sabia amar de forma incondicional. Não julgava, acolhia. Por outro lado, para essa escolha, aguentava muita coisa quieta, resignada, calada.

A morte nos leva um ente querido e nos deixa um silêncio. Nos desenhos japoneses há muito a presença dessa pausa, que chamam de “Ma”, que é simbolizado por um portal na onde o sol entra. E é bem isso... no luto somos forçados a esse encontro com um vazio e com a luz. É um processo doloroso, mas de grande possibilidade de crescimento, pois à medida que se vive a dor da morte, se pensa sobre a vida e sobre quem ficou; pensa-se no que deve morrer em nós mesmos e o que deve sobreviver; o que precisamos matar no nosso interior e o que é importante cultivar. A morte e vida se entremeiam num tecido único, estão juntas e não tem como uma ficar sem a outra.

Por coincidência eu lia na época “Mulheres que correm com os lobos” e numa parte a autora conta que teve um sonho no qual ficava por cima dos ombros de uma outra mulher. Ao perceber que se tratava de uma senhora, falou que por ter mais força, a senhora que deveria se apoiar em seu ombro. Nisso a senhora, fala que assim é a vida, e por fim é possível ver que a idosa também se sustentava sobre os ombros de um monte de outras mulheres.

Há belezas demais deixadas pelos os que nos precederam, e forma-se uma verdadeira árvore humana na qual fazemos parte. Diante desse olhar sobre o que veio antes de nós, há um movimento de espelho, onde enxergamos certos pontos de aliança entre o que somos e nossos antepassados. Esquecer quem é nossa família, ou homens ou mulheres que nos marcaram é nos abandonarmos num abismo, sem raízes que nos sustentam. É comum ficar sem chão em momentos de tristeza, mas a terra firme aparece quando conhecemos quem somos e diante da vivência do “Ma”, sob panos de prato, a gente cria e recria, numa busca de sentido na continuidade dessa árvore, com base em memórias e símbolos que elaboramos. Por isso, Maria Juvercina Soares: presente!

 

 

Ana Paula Ferreira
Educadora
membro do Coletivo Feminista 
Mulheres Pela Democracia


segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Centenário do nascimento de Paulo Freire

          


             Dia 19 de setembro o grande mestre brasileiro em educação completaria 100 anos. É uma alegria revisitar seus textos, porque dá a impressão que sempre há algo escondidinho entre uma linha e outra e que passa desapercebido numa primeira leitura. Aliás, se há um termo muito usual na obra de Freire é “leitura”, que além de juntar letras e compreender um texto, seria um movimento de ação e reflexão, no qual vão se juntando pistas econômicas, culturais, sociais e políticas, para se ler o mundo, objetivando-se intervenções compromissadas com a mudança para uma sociedade mais justa.

Sociedade justa, de acordo com esse educador, seria quando superássemos as opressões de classe social, de dominação do homem sobre a mulher, do branco sobre o negro e todas as diversas formas que subtraem, que oprimem uns aos outros. A caridade é necessária para suprir a fome, os desassistidos, mas “A grande generosidade está em lutar para que, cada vez mais, estas mãos, sejam de homens ou de povos, se estendam menos, em gestos de súplica (Freire, 1987).

E como fazemos isso? Paulo Freire indica alguns caminhos. Um deles é entender que o ser humano deva ser sujeito e não assujeitado, pois se há uma prescrição do que deva ser feito para apenas o outro cumprir, continua-se a cisão na sociedade tão comum e tão reforçada de que alguns devam pensar e outros apenas obedecer. Justamente por acreditar na capacidade de pensar e agir, em relação pautada na horizontalidade, no respeito ao senso comum como ponto de partida, que Paulo Freire frisava que o ato educativo deva ser em comunhão.

O contrário disso seria uma educação que objetifica o estudante, que reforça a desigualdade, formando subcidadãos apáticos em relação a política; inseguros e acríticos em relação aos patrões; mulheres ou homens cujos corpos e mentes foram docilizados. Nos dicionários que essas pessoas levam consigo, palavras como “liberdade”, “emancipação” e “resistência” estariam apagadas.

A propósito, apagar e escrever são duas faces da mesma moeda. Enquanto a história dos oprimidos é apagada dos livros, monumentos, mídia e da escola, a história dos opressores é contada tão fortemente que repetimos em práticas coloniais sem perceber. Quando não se apaga a história de resistência e de luta de um determinado grupo social, ocorre também de seus feitos serem dissolvidos numa outra narrativa, onde o “quem” e o “como” perdem espaço para que a ideologia de exploração do grupo dominante impere.

Em se tratando da educação não são raros o apagamento, o silenciamento e a opressão quanto mais vulnerável for o grupo atendido. Isso pode ser ilustrado quando se ignora os estudantes que possuem dificuldade de ensino ou no tratamento excludente direcionado a alunos da classe popular. No campo da gestão o discurso do opressor se manifesta quando diretores tendem naturalizar a sobrecarga abusiva de trabalho ou supervisores que vivem estritamente em prol da burocracia de ensino. Inclusive, na própria educação há áreas com mais valorização do que outras, reforçando assimetrias.

A EJA foi e talvez seja ainda a filha bastarda da educação até porque dar visibilidade a ela é evidenciar o lado cruel do ensino regular que transfere alunos de baixo aproveitamento para EJA, um problema estrutural de séculos de uma educação sem substancial investimento e sem condições para lidar com a inclusão de todos. Não é sem razão que há inúmeros escritos de Freire mostrando sua preocupação com a EJA.

Sua pedagogia não é clientelista, não se faz no assistencialismo, nem tampouco abandona o estudante a própria sorte sob o discurso do “sempre evadiram, então sempre será assim”. Compreende que o currículo é vasto e é papel do educador selecionar conteúdos indispensáveis para uma leitura mais atenda da realidade, sob um processo dialógico entre o pensar e o fazer, o micro e o macro, o local e o global, educandos e professores.

100 anos de Paulo Freire nos mostram o quanto ele é atual em época de protofascismo e de ultraconservadorismo religioso que impossibilitam esse diálogo tão valoroso que ele defendia. Enquanto houver desigualdade haverá necessidade de se falar desse educador pernambucano que nos aponta alguns caminhos para uma libertação em comunhão. Por isso, Paulo Freire: presente!

 

Referência:

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 17ª ed., 1987.

 

Ana Paula Ferreira