“Tem dias que a gente se sente, Como quem partiu ou morreu” já dizia Chico Buarque na música Roda Viva. Há coisas que nos ocorrem que perdemos o chão. Vamos caindo, caindo, caindo, que nem a Alice quando ela entra na árvore e se surpreende com um enorme buraco. Aliás, esse buraco não se faz apenas onde pisamos, mas também numa pontada no peito que parece que estão fazendo uma cirurgia e arrancando algo que estava lá. Entretanto, não arrancam. Abre-se um buraco, e nas suas paredes ficam armazenadas as fotos, filmes, lembranças, e a cada vez que há o interesse em olhar para essas memórias, o buraco se abre para nos mostrar que tudo está ali e minha vó estava ali.
Minha vó faleceu no dia 03 desse
mês. Na hora que eu soube da notícia, busquei um pano para secar as lágrimas e
para minha surpresa, estava por cima de todos os outros um pano de prato que ela
tinha bordado flores. É como se ela estivesse por ali dizendo, “eu não morri, estou
aqui, nesse pano e em tantas outras coisas”.
Eu
não pude deixar de lembrar de um texto do Leonardo Boff que li na minha época
de aluna de colégio religioso. O texto era sobre um toco de cigarro que virou
um sacramento, pois não era apenas um objeto em si, mas uma ponte que levava à
figura do pai falecido. E, isso era o pano de prato... deixou de ser coisa,
para resgatar a memória de uma velhinha que com seus 82 anos cuidava da casa, do
marido, do filho, fazia sabão caseiro e adorava receber a família com alguma
quitanda.
Aquele
pano simbolizava bem minha vó. Primeiro porque realmente ela ajudava a gente a
enxugar as lágrimas, pois em qualquer fase de nossas vidas foi presente. Estava
em todo crescimento dos netos, puxando a orelha, dando sermão, preparando
almoço dia de domingo. Aniversário nunca esquecia nenhum. Participava das
formaturas, foi uma das primeiras pessoas a me visitar quando decidi morar
sozinha e assim que minha filha Isabela nasceu lá estava ela. O pano também tem
a característica de ser forte e isso ela foi e muito. Trabalhou como empregada
doméstica, cuidadora de idosos, vendedora autônoma de semijoias, e mesmo
aposentada, nunca parava, e parecia que seu mundo interior se preenchia no
movimento. Apesar de forte, não deixou de ser encantadora. Lembro inclusive de
passear com minha vó e as pessoas elogiarem seu jeito calmo, educado, manso de
se comunicar. Essa forma de dizer com simpatia as palavras era a mesma ternura
que fez as flores do meu pano, formando desenhos na união de uma linha com a
outra. Contudo, não conseguiu fazer essa junção das pessoas. Cada pequeno grupo
a visitava em dias diferentes. Mas, estavam ali porque ela sabia amar de forma
incondicional. Não julgava, acolhia. Por outro lado, para essa escolha,
aguentava muita coisa quieta, resignada, calada.
A
morte nos leva um ente querido e nos deixa um silêncio. Nos desenhos japoneses
há muito a presença dessa pausa, que chamam de “Ma”, que é simbolizado por um
portal na onde o sol entra. E é bem isso... no luto somos forçados a esse
encontro com um vazio e com a luz. É um processo doloroso, mas de grande
possibilidade de crescimento, pois à medida que se vive a dor da morte, se
pensa sobre a vida e sobre quem ficou; pensa-se no que deve morrer em nós
mesmos e o que deve sobreviver; o que precisamos matar no nosso interior e o
que é importante cultivar. A morte e vida se entremeiam num tecido único, estão
juntas e não tem como uma ficar sem a outra.
Por
coincidência eu lia na época “Mulheres que correm com os lobos” e numa parte a
autora conta que teve um sonho no qual ficava por cima dos ombros de uma outra
mulher. Ao perceber que se tratava de uma senhora, falou que por ter mais
força, a senhora que deveria se apoiar em seu ombro. Nisso a senhora, fala que
assim é a vida, e por fim é possível ver que a idosa também se sustentava sobre
os ombros de um monte de outras mulheres.
Há
belezas demais deixadas pelos os que nos precederam, e forma-se uma verdadeira
árvore humana na qual fazemos parte. Diante desse olhar sobre o que veio antes
de nós, há um movimento de espelho, onde enxergamos certos pontos de aliança
entre o que somos e nossos antepassados. Esquecer quem é nossa família, ou homens
ou mulheres que nos marcaram é nos abandonarmos num abismo, sem raízes que nos
sustentam. É comum ficar sem chão em momentos de tristeza, mas a terra firme
aparece quando conhecemos quem somos e diante da vivência do “Ma”, sob panos de
prato, a gente cria e recria, numa busca de sentido na continuidade dessa
árvore, com base em memórias e símbolos que elaboramos. Por isso, Maria
Juvercina Soares: presente!
Ana
Paula Ferreira
Educadora
membro do Coletivo Feminista
Mulheres Pela Democracia