Tem
um anime belíssimo que se chama “Princesa Mononoke”. O filme começa com um
monstro enfurecido que está se corroendo e ao mesmo contamina tudo o que está
ao redor. Por onde passa, leva a destruição e antes de ser morto, atinge o
braço de um príncipe que saí então em busca da cura.
Todos
dias nós também somos contaminados por doses diárias de veneno. Ele está
invisível na nossa comida, ou na fumaça dos carros e fábricas e nas queimadas
incessantes da Amazônia. É um tipo de tóxico tão corrosivo, que além de destruir
florestas, poluir a água e o solo, atinge também nossa saúde física e
compromete o nosso raciocínio mental e nosso convívio social.
É tão poderoso, que se bebe a
goeladas e às vezes nem nos damos conta. Torna-se bêbado sob esse entorpecente
e a consciência moral é levada a zero. Para defender essa droga os dependentes
químicos humilham os mais vulneráveis: desempregados são chamados de
vagabundos, mulheres de vadias, negros de preguiçosos, e todos os que não possuem
sucesso são tidos como lixo humano.
Em situações extremas de torpor há a
violência, pois começam a enxergar criaturas aterrorizantes quando olham para
imigrantes, indígenas, grevistas. Isso porque um dos efeitos colaterais dessa
droga é meritocracia e as pessoas são entendidas como valor monetário. Assim
sendo, se um imigrante procura emprego, deve ser banido do país, mas se ele é o
empregador, deve ser respeitado. O raciocínio do entorpecido não consegue
perceber que as pessoas ao nascerem em situações de desigualdade, dificilmente
conseguirão uma vida digna se não houver um apoio do Estado de Direito. Acham
que depende exclusivamente do indivíduo e culpam o Estado de “não ensinar a
pescar”, quando na verdade, a água está poluída, a terra da pesca é propriedade
de apenas uma pessoa, e não há nenhuma ferramenta para conseguir o peixe.
Há os que respiram essa droga, mas
tentam fingir que não usam. Daí fazem ações de caridade, doam comida, roupas,
dão dízimo para igreja, ou qualquer coisa do tipo. Contudo, quando se questiona
os efeitos sociais da droga, como o desemprego, a desigualdade econômica, a
necropolítica, e se mostra que é possível regulamentar através de taxação de
altas fortunas, reforma agrária ou distribuição de riquezas, essas pessoas
caridosas, ficam extremamente agressivas. Concordam com o empresário que ganha
bilhões e que remunera salários desprezíveis a seus funcionários e acham um
absurdo ele ter que pagar mais impostos, pois para elas, o governo,
principalmente de esquerda, que é corrupto e fonte de todos os problemas.
Aliás, todas pessoas são usuárias
dessa droga, umas em maior proporção e outras de forma mais controlada, mas
todas são, principalmente quando não possuem consciência de si e de suas ações.
Há as que se denominam de esquerda e dizem lutar contra esse veneno. Falam que
não vão mais usar, mas na primeira brecha, injetam doses concentradas e ao
invés de gastarem energia no combate a essa droga, miram seus ataques a
sindicatos, partidos progressistas e movimentos sociais. Agindo assim não
percebem que se alinham a um perfil autoritário, afinal tentam controlar a vida
do outros, ao ponto de denominarem sob o jugo de seus critérios quem é ou não
de esquerda, tirando o crédito de instituições que historicamente lutaram por trabalhadores,
pelas minorias sociais.
E
os que fabricam a droga ficam felizes de ver isso... riem a gargalhada porque o
plano está indo de acordo com os conformes: a descrença do ser humano no ser
humano, individualismo, distanciamento social e falta de consciência política,
pois só assim haverá permanência, cada vez mais intensa, cada vez mais brutal
dessa droga.
O príncipe do desenho no decorrer da
história, compreendeu que não bastava se livrar da mancha que estava na sua
pele, pois a contaminação era consequência de uma desordem ambiental, fruto da
exploração da natureza de forma desmedida, para trazer a riqueza de alguns e/ou
o poder de outros. E só conseguiremos romper com esse envenenamento coletivo num
duplo movimento: removendo as manchas que ainda estão em nós e de aproximação
com todos aqueles que percebem minimamente os efeitos perversos causados por
essa droga. Caso contrário, continuaremos distantes de nós mesmos e do mundo, e
a droga mantendo sua contaminação.
Ana Paula Ferreira