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quarta-feira, 11 de março de 2020

Mulher, educadora e grevista

Estamos no mês de março e não há como esquecer o dia internacional da mulher. A data não surgiu porque as mulheres reivindicavam batons, flores, cartões e mensagens, mas porque lutavam por “Pão e Paz”. Essa greve ocorreu na Rússia czarista, na qual mulheres foram às ruas contra as jornadas extenuantes, os baixíssimos salários e por condições dignas no ambiente fabril. Ao mesmo tempo, gritavam pelo retorno de seus filhos e esposos que estavam nas trincheiras da 1ª Guerra Mundial, diante de um governo arbitrário num país que sucumbia a fome. Teve tamanha força essa greve do dia 8 de março de 1917 que serviu de estopim para a Revolução Russa.

Porém, a História ao longo dos anos foi escrita por homens e por acadêmicos, pessoas letradas e fortemente impactadas pela ideologia burguesa. Portanto, era comum que a história de mulheres, de trabalhadores, dos mais pobres, ficasse escondida debaixo dos escombros e ruínas, enquanto fatos e memória dos vencedores tinham o holofote das páginas da história da humanidade.

Se quisermos hoje saber sobre a história das mulheres, precisamos escavar boas referências e dentre elas, uma que me chama a atenção é a historiadora Silvia Federici. No seu livro “Calibã e a Bruxa” a autora nos conta que na transição entre a economia feudal para a economia de mercado, diversos governos entenderam a importância do crescimento populacional como forma de conseguir mais consumidor e mão-de-obra barata. A consequência foi tornar a mulher como mero útero, escravizando-a no ambiente doméstico e transmitindo um novo modelo feminino a ser seguido: dócil, submissa, calada, resignada ao marido. As que não se sujeitavam a isso eram consideradas bruxas e mortas na fogueira.

Ainda hoje milhares de mulheres são mortas sob o fogo do feminicídio. Há também aquelas que são feridas em sua integridade moral e psicológica diante das palavras de baixo calão das redes sociais, da humilhação em público, sob a chama de palavrões e obscenidades. Os machistas tentam incessantemente silenciar as mulheres, pois essas ainda são concebidas como propriedade do homem, sendo inadmissível as que vão a público, que confrontam as ideias dos poderosos, que denunciam um presidente ignóbil, que fazem greve.

É nesse cenário que as líderes do movimento grevista em Minas Gerais foram recebidas pelos representantes do governo, quando sentaram à mesa de negociação. Tons de deboche, ironia, comunicação com desdém, aumento do volume da voz, várias artimanhas para minimizar e intimidar. Essa desvalorização profissional de mulheres que são líderes sindicais é efeito de um país onde a desigualdade gênero é naturalizada e cargos e funções menos valorizados são mais propagandeados ao universo feminino sob estereótipo de que a mulher é zelosa, paciente, amorosa e, portanto, se encaixaria mais nessas profissões sendo, portanto, absurdo aquelas que se encaminham para a política, local de excelência do homem.

Ora, numa sociedade sexista, com raízes profundas na desigualdade de rendimento entre homem e mulher e cujas profissões a mulher terá mais aceitabilidade porque não fazem parte da ambição masculina, é de se esperar que sejam áreas tratadas com menos destaque das pautas políticas. Isso é o que ocorre na área da educação básica no Brasil, tendo em vista que as professoras compunham 81,5% do quadro do magistério em 2010 e sabemos o quão o salário docente é defasado se comparado com profissionais graduados em outras áreas.

Lembrando que 8 de março é a luta da mulher trabalhadora por uma sociedade mais justa, resgatemos esse princípio para trazer a tona a luta das feministas que diversas vezes foram às ruas por creche e educação de qualidade para seus filhos ou a luta de milhares de professoras que historicamente deram aos seus alunos o “testemunho de luta, lições de democracia”, como dizia Paulo Freire. Não somos tias de nossos alunos e isso não significa menosprezar a figura da tia, mas sim tratar com profissionalismo nossa profissão, lutando por ela. Tias não fazem greve, professoras sim e, portanto, que nós, mulheres e professoras não deixemos que apaguem nossa história.
Ana Paula Ferreira 
Educadora e grevista

quinta-feira, 5 de março de 2020

Grevear: ação de justiça social

Fico pensando às vezes como ensinamos as crianças a ser injustas e aceitar a desigualdade. Não que eu ache o ser humano bom por natureza, mas faça o teste: mostre simultaneamente balas a duas crianças de quatro anos. Para uma entregue uma bala apenas e para outra um pote cheio. A que se sentiu desfavorecida com certeza reclamará. Isso inclusive é tema de pesquisa de Harvard desenvolvida em sete países, mostrando que independente da cultura as crianças possuem senso de justiça.
Contudo, com o tempo as crianças se inserem no nosso ritmo de viver e ensinamos que a menina deve ajudar a mãe nos afazeres domésticos enquanto o irmão assiste TV ou se diverte com os amigos. Justificamos que o presente de Natal é um carrinho de plástico made in China enquanto do primo é um vídeo game porque o papai Noel quis, ou na melhor das hipóteses, explicamos que a renda de cada família é diferente, mas não falamos o porquê da desigualdade social. Reforçamos que o cabelo crespo deve ser escondido, cortado, alisado, mas o cabelo liso da vizinha deve ser objeto de admiração.
Assim nossas crianças se tornam adultas que naturalizam as injustiças. Ensinamos tão bem ao longo dos anos que criamos condições para se acostumarem com a ideia de que iates e jatos não possuem impostos e coincidentemente estão nas mãos dos mais ricos. Em contrapartida, anualmente o brasileiro comum paga o IPVA de seus veículos. Torna-se aceitável que mineradoras em Minas Gerais não contribuam com o ICMS, que o governo salve bancos, ou até mesmo que o ministro da economia Paulo Guedes chame os funcionários públicos de “parasitas”. Esses mesmos que se aquietam perante as megalomaníacas oportunidades concedidas aos altos escalões da sociedade, se duvidar dirão que os professores são doutrinadores, ficarão horrorizados com os trabalhadores sem terra que lutam por Reforma Agrária e farão uso do famoso discurso raso da meritocracia.
Tudo isso é absurdamente internalizado pela grande maioria, pois nos acomodamos ano a ano a esse sistema capitalista desigual, ao ponto de defender que burguesia tenha privilégios enquanto os direitos são subtraídos da classe trabalhadora. Situação análoga de tratamento diferenciado é percebida em Minas, no qual o governador Zema anunciou aumento de 42% aos profissionais da segurança pública enquanto os demais são negligenciados sob pretexto de ajuste fiscal. Apesar dessa discrepância, milhares de servidores estaduais estão em silêncio perturbador sobre o fato.
Para o não envolvimento em defesa da profissão ocorre um duplo movimento de negação à greve. Primeiro, há a diplomacia de não entrar no assunto: abstém-se das reuniões que tratarão do tema, justifica que há outras estratégias sem ser a greve, mas não participa de nenhuma. O segundo movimento é de discursar de que greve não adianta e assim desapercebe que os direitos trabalhistas foram conquistas dos trabalhadores que nos antecederam, que alguns sofreram violência policial e outros tantos presos ou até mortos.
Paralisa-se no medo de perder alunos, mas não observa que estamos perdendo cidadãos, ensinando pelo exemplo sobre passividade, o comportamento alheio a discussões políticas, e condicionamentos a uma ação ordeira de meros cumpridores de normas. Somos bons cumpridores de nossas funções, entretanto que consigamos não perder nossa capacidade reflexiva de médio e longo prazo. Antônio Balduíno é um personagem de Jorge Amado que aprendeu que greve era uma luta mais bonita e mais forte do que as lutas que travava como malandro ou boxeador. Descobriu que é uma luta de quem não quer ser escravo, é uma luta de união, em solidariedade aos trabalhadores, em defesa da liberdade. Também espero que esse sentido seja recuperado e possamos nos unir como professores, servidores públicos, trabalhadores. Só assim como educadora ficarei feliz, lutando por igualdade e deixando o testemunho vivo desse princípio para que as novas gerações resgatem o senso de justiça que nós adultos fomos capazes de retirar.    
                                                                                Ana Paula Ferreira