Antes de situarmos o cenário de Minas, preciso
explicar o título. “Quanto vale ou é por quilo?” é um filme de Sérgio Bianchi e
traz a analogia entre a atualidade e o passado escravocrata de vidas tratadas
como mercadoria. A comparação é perspicaz, pois identifica o lucrativo comércio
de escravizados no período colonial e põe holofote em tempos atuais com a saga
de diversas instituições e Organizações Não Governamentais (ONGs) que buscam
sua fonte de riqueza mediante a pobreza alheia.
Uma
história é ambientada no século XVIII de uma escrava fugitiva, capturada pelo
capitão do mato e, depois, num corte cronológico, há cenas contemporâneas de
uma funcionária de ONG que corre perigo quando descobre o superfaturamento dos
computadores do Projeto. Nesse sentido, em ambas situações o Estado é um aliado
da elite econômica, a qual dita as regras, seja em relação à escravidão, seja
em relação ao espaço aberto para as instituições privadas.
Aliás,
para satirizar o quanto as ricas senhoras ganham com a imagem de benfeitoria
sobre os pobres, a capa do filme ilustra uma grã-fina, com seu porte elegante e
sorriso de ostentação, e ao seu redor, crianças miseráveis pressionadas a posar
para foto com os brinquedinhos descartáveis que acabaram de ganhar. Figura
similar com a de governadores que se ajeitam em suas gravatas e ternos,
centralizando-se em fotos na qual estudantes ficam a margem, enquanto as
escolas são paulatinamente cada vez mais geridas por Organização da Sociedade
Civil (OSC), em Projetos que não “Somam” em nada.
O
que significa na prática essa entrada agressiva das OSCs? Tem-se vários
impactos que cabem ser mencionados. Um deles é a falta de transparência na
contratação e na demissão, já que o vínculo passa a ser com a organização e não
mais com o Estado. Nas escolas isso é visível na contratação de empresas para
gerir a limpeza, parte administrativa e até mesmo a gestão escolar. Isso por si
só já é um problema grave, pois a estabilidade para funcionários públicos é
justamente para garantir a permanência do serviço prestado independentemente se
houver a troca de poder no governo. Portanto, deixar esse contrato nas mãos das
OSCs não se trata apenas da demissão de servidores que não compactuam com o
governo eleito, mas a ausência da continuidade de política pública. E sim...
nessa lógica, todos usuários do serviço público saem perdendo.
Outro
problema da presença das OSCs na educação é a fragilidade de uma gestão
democrática. Escola é espaço de decisão política! Decidimos sobre metodologias,
organização do planejamento, parcerias, formações pedagógicas, e tudo isso é
uma decisão política entre acolher ou excluir, comprometer ou cumprir ordens, pensar
na educação como bem comum ou como trampolim social. Quando a gestão é eleita,
houve o reconhecimento por parte da equipe, uma confiança depositada num
trabalho que julgaram como bom. Nesse sentido, se torna mais fácil a cobrança
de cumprimento de um plano de gestão, ou de uma coerência entre o que se
discursava e o que se cumpre. O problema de uma gestão não eleita é que carrega
esse peso colonial, do autoritarismo, do não diálogo, do “obedeça” transcrita em
metas infindáveis e “validadas” por avaliações externas. E sim... há uma ênfase
numa gestão gerencial.
E
aliás, esse é outro impacto, pois o gerenciamento escolar por parte de uma OSC
o critério deixa de ser pedagógico para ser empresarial. A equipe vai aos
poucos deixando de olhar para sua comunidade e passa a olhar números, trazidos
por avaliações que traçam critérios de eficiência como se a escola tivesse que
sozinha, fazer “mudança de rotas” diante do feedback dos dados. E sim...
o discurso vai se tornando mercadológico e cheio de estrangeirismo.
Trazem
conceitos do mundo corporativo porque as OSCs estão entrelaçadas a empresas
privadas, mas se utilizam de recursos públicos para sua manutenção. Verbas, tal
qual o FUNDEB, que seriam destinadas diretamente para escola pública, custeiam
o funcionamento desses intermediários cujo objetivo é o lucro e, portanto, a
formação republicana com vistas a cidadania e de aquisição de um saber comum, fica
de escanteio. Em Poços de Caldas,
exemplo disso é o pagamento de mensalidades a unidades privadas da Educação
Infantil ao invés de mais vagas no setor público.
Neste
ínterim, professores continuam sem o piso salarial e é frequente o adoecimento
profissional, consequência de acúmulos de aula. Rema-se assim na direção
contrária de Estados de Bem-Estar social que possuem em média o dobro de
servidores públicos e valorizam financeiramente seus docentes, sob a lógica de
se dedicarem a só uma escola e, portanto, construção de mais vínculo e
continuidade de um trabalho com aquela comunidade atendida.
Mas,
será que isso importa? Quanto vale a nossa vida profissional ou dos e das
estudantes? Ou será que é calculada em quilo?
Ana
Paula Ferreira
Mestre em Educação e servidora da rede estadual
Texto também publicado no Jornal da Cidade do dia 09/08/2024 e no link
https://www.jornaldacidade1.com.br/quanto-vale-ou-e-por-quilo/#:~:text=Uma%20hist%C3%B3ria%20%C3%A9%20ambientada%20no,superfaturamento%20dos%20computadores%20do%20Projeto.