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segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Feminismo e combate ao fascismo

 


     Antes de compreender como o feminismo pode fazer esse combate, precisamos definir o que de fato é fascismo para ter mais clareza do alvo objetivo. E por outro lado, também é necessário reconhecer os instrumentos do feminismo para identificar como pode ser essa intervenção.

Fascismo é um pensamento, uma ideologia política da extrema direita, que se opõe ao socialismo, e no qual o Estado exerce uma presença forte e de controle sobre a vida pública e privada da população, justamente porque angaria esse apoio do povo. De acordo com o romancista e linguista Umberto Eco, o fascismo enquanto ideia se eterniza, justamente porque se apresenta inclusive com trajes civis, e compete a cada um de nós jamais esquecer o que significou sua presença na II Guerra Mundial e no Holocausto para que evitemos a reprodução dessa barbárie histórica.  

            Alguns pontos importantes do fascismo que Umberto Eco elenca e que se destaca para esse texto são: 1) Culto à tradição; 2) Medo das diferenças; 3) Desprezo pelos oprimidos; 4) Culto à figura de mitos; 5) Machismo; 6) A Novilíngua de Orwell. Ora, numa perspectiva de feminismo socialista, o qual vai além de uma perspectiva liberal, se nota que é possível se valer de suas ferramentas para contrapor a ideologia fascista, e vejamos o porquê, também em seis razões.

            Primeiro porque assumir o feminismo é algo que de acordo com bell hooks é para todos, lembrando que se trata de uma defesa de uma sociedade mais igualitária entre homens e mulheres. A partir desse ponto, já é uma forma de se remar contra a tradição patriarcal milenar, mas, que como qualquer outra cultura, é possível de mudança caso os sujeitos sociais se envolvam nesse processo.

            Segundo porque o feminismo e os estudos dentro da questão de gênero trabalham com uma coleção de conceitos que permite compreender melhor a questão de gênero: sexo, gênero, cis, trans, heterossexual, homossexual, orientação sexual, identidade de gênero, etc. Assim, à luz de definições, de entendimento e sensibilização sobre os grupos marginalizados numa sociedade homofóbica e machista, abre-se a possibilidade desse medo das diferenças diminuir. Isso porque o outro deixa de ser colocado como objeto descartável, para adquirir uma outra perspectiva, na qual é humanizado, visto não apenas em suas diferenças, mas também no que nos aproxima enquanto humanidade.

            Se por um lado o fascismo investe no desprezo aos grupos sociais mais vulnerabilizados, por outro, o feminismo socialista, vai intensificar reforços numa dupla batalha: contra a desigualdade econômica e contra a desigualdade de gênero. Assim, embora o fascismo venha com seus tratores ideológicos com frases do tipo “Ela não merece ser estuprada” ou “O erro da ditadura foi torturar e não matar” ou “As minorias precisam se curvar a maioria”, o feminismo socialista trabalha numa perspectiva de que levar em consideração que enquanto houver capitalismo, ocorrerá a desigualdade econômica e, portanto, haverá necessidade dos grupos que estão no poder em dividir a população, desarticular os movimentos sociais, sindicatos, associações que promovam a solidariedade e o bem comum, porque no abandono do indivíduo a própria sorte ele é mais manipulável e possuí menos condições de resistência.

            Culto a figura de mitos é outra característica fascista, nesse apelo à personalismos, a pessoas que se colocam além do ser humano convencional e anseiam pela fama, numa notoriedade mesmo que sejam medíocres e não haja fundamentação racional para sua importância. Com o feminismo socialista ele nos proporciona a possibilidade de questionar esses lugares de empoderamento individual, afinal, para cada Paola Oliveira ou Djamila Ribeiro ficar em destaque nas propagandas da Avon, milhares de mulheres invisíveis precisam bater de porta em porta e oferecer o produto, num trabalho desenvolvido a anos de maneira precarizada, e sem a reflexão sobre esses lugares de subemprego.  

            Em quinto lugar, machismo é um dos pilares no qual o fascismo se assenta, lembrando que o fascismo é um movimento de defesa do capitalismo com a presença forte do Estado, na ideia de assegurar privilégios e não direitos sociais. Silvia Federici na obra “Calibã e a Bruxa” evidenciou que o processo de acumulação capitalista cerceou todos elementos que poderiam ser produtivos: terra, meios de produção e a mulher. Assim, o homem foi tratado como pequeno rei em seu lar e a mulher cabia ter cada vez mais filhos e operar dentro do ambiente doméstico. Aumentar a população era uma das tarefas para se garantir salários baixos na negociação com um grande exército de reserva e quem produzia esse contingente humano seriam as mulheres. Aliás, é curioso perceber que sempre em momentos de crise do capital, voltam os discursos que a mulher deveria ficar em casa, bela, recada e do lar, sob sustento do marido, pois, ao ir para o mercado estaria competindo com quem socialmente é aceito para estar ali.

            Por fim, no sexto ponto trazido, a Novilíngua de Orwell é uma ilustração excelente sobre o fascismo. Orwell no livro 1984 satiriza os grupos totalitários que faziam novas gramáticas reduzindo o vocabulário da população para deixa-lo mais pobre e consequentemente limitar o pensamento crítico. Sinônimo disso é quando grupos fascistas não querem explorar conceitos tão diferentes em si e pelo contrário, usam de palavras de baixo calão, jargões preconceituosos. Por isso, quando o feminismo ajuda a compreender o que é cis e o que é trans, o que é hetero e o que é homo, e não apenas o conceito em si, mas a contextualizar as marginalizações e a utopia de que outra sociedade é possível. Nesse sentido, o feminismo socialista ajuda a enfrentar o pensamento raso, as microviolências e a construir uma sociedade mais justa, numa perspectiva de consciência de classe social atrelada a consciência racial e de gênero.

            Feminismo não é coisa de mulher mal amada ou que ficou para tia. Novamente essas depreciações são parte de um raciocínio estreito de quem não se aventurou nas leituras sobre o tema. E para enfrentar o fascismo, o feminismo está também na trincheira das narrativas mais revolucionárias, visando a construção coletiva com vistas a uma sociedade com economia mais igualitária e relações mais livres.

 

Ana Paula Ferreira

Educadora e militante do Coletivo Mulheres Pela Democracia

Texto também publicado no Jornal da Cidade do dia 02 e 03 de setembro de 2023