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terça-feira, 2 de novembro de 2021

Triste, louca ou má: o que é ser mulher

           O que é ser mulher? O conceito parece fácil de definir, mas não é. Ao longo dos séculos foi associada a arquétipos de Maria Madalena ou Maria mãe de Jesus, a pecadora ou santa, a bruxa a ser executada em fogueira ou a esposa cativa. Essa polaridade não dá conta das nuances, das mulheres de carne e osso, das singularidades, das lutas e resistências.

Em meados do século XX, a filósofa Simone Beauvoir já descrevia que não se nasce mulher, se torna mulher, mostrando que não é a questão de nosso sexo biológico que nos define, mas todos os aspectos culturais, políticos, econômicos que incidem sobre o corpo feminino, estabelecendo padrões de comportamento, perspectivas, linguagens.

É importante conceituar o que é mulher? Em termos de políticas públicas sim. Afinal, somos a maioria da população brasileira, mas a minoria nos espaços decisórios; somos a imagem do trabalho precarizado nos serviços domésticos e tantos outros, mas a minoria nos cargos de liderança; somos a filha, a mãe, a avó, que cuida da família, quando os homens abandonaram os filhos, ou os próprios pais; e infelizmente fazemos parte das estatísticas que colocam o Brasil na 5ª posição vergonhosa de feminicídio. Embora em países de economia periférica a situação de vulnerabilidade da mulher se torne mais desigual em relação ao homem, a mulher no mundo é figura de segundo plano e por isso compõe as minorias sociais. Não é sem razão que Simone Beauvoir nomeia seu livro “Segundo Sexo” para tratar sobre a situação feminina.

Uma vez uma colega me perguntou se realmente era importante continuar tocando no assunto do feminismo, afinal hoje em dia as mulheres podem votar, dirigir, fazer faculdade e tantas outras conquistas. Contudo, a pergunta é: qual grupo feminino tem essa possibilidade? Temos a liberdade de dirigir, mas em termos concretos da realidade crua, somos as que engrossam as filas nos transportes coletivos; temos o direito previsto em Constituição do voto, mas ainda há milhões que não exercem esse direito de forma plena, guiando a opinião política com base na do pai ou do marido; somos o grupo com mais Ensino Superior que homens, porém, também compomos os números que mais sofrem com as crises econômicas.

Feminismo não perde a atualidade enquanto houver patriarcado e capitalismo. Isso porque o que faz o capitalismo para continuar operando? Divide a sociedade entre ricos e pobres, brancos e negros, homens e mulheres e tantas outras divisões para que todos os explorados não se articulem, não se unam para a quebra desse sistema perverso de desigualdades e opressões. Atribui-se privilégios a um determinado grupo e esse se sentirá como um pequeno rei com seus súditos, diminuindo as possibilidades de solidariedade entre os oprimidos sociais.

As estatísticas mostram que isso não é mimimi. Em tempos de pandemia, a mulher foi um dos grupos mais atingidos socialmente, seja pelo número de desemprego, onde a taxa de ocupação em 2019 da mulher era de 46,2% e caiu para 39,7% em 2020 (IPEA, 2021). No campo da saúde, as mulheres são 70% dos cargos, mas ganham menos que os homens (CNN, 2021). No que diz respeito aos estudos, esse também ficou comprometido uma vez que inúmeras mulheres jovens abandonaram a escola para cuidar dos familiares. Qual impacto disso? Quanto mais distante da escolaridade, mais se cria possibilidades para casamentos precoces, gravidez na adolescência e autonomia financeira limitada.  

O abismo de desigualdades em relação a mulher aumenta somado a vários outros fatores que não podem ser desconsiderados. É o que a socióloga Saffioti chama de nó entre classe, etnia e gênero. Sobre esse, não se pode deixar de refletir a exclusão social da mulher trans, aquela que nasce com a genitália masculina, mas se identifica como mulher. Raramente conseguem empregos de cargos com visibilidade social e não é incomum xingamentos, linchamentos, violências, haja vista que o Brasil também lidera o cruel ranking de mortes a esse grupo populacional (CNN, 2021).

Se há violência, o que era de se esperar das políticas públicas é que houvesse leis com propostas de diminuição da violência. Pensando sobre essa realidade, em Minas Gerais o deputado André Quintão (PT) propôs multas a estabelecimentos que se dirigissem com preconceitos em relação a orientação sexual ou identidade de gênero.  Contudo, isso gerou uma aversão de políticos alinhados a alguma ala religiosa e na cidade de Poços de Caldas, isso não foi diferente. Um vereador chegou a se pronunciar dizendo que a questão de gênero era mais perigosa que o nazismo, mostrando o quanto precisamos avançar em conceitos, em discussões sociológicas e históricas profundas para que representantes políticos entendam que seus cargos legislativos ou executivos não são para advogar a favor de suas igrejas, mas sim, como representantes de toda população, inclusive aquela que não querem enxergar, que fazem questão de não ver.

É importante a luta e já dizia a música que “Só mesmo, rejeita, bem conhecida receita, quem não com dores, aceita que tudo deve mudar”. E para isso, que nós mulheres, independente de cis ou trans, negras ou brancas, saibamos que a luta não se faz na divisão, mas na união, pois enquanto houver patriarcado e capitalismo, há muita desigualdade para se quebrar e há muito a que se construir sobre sororidade e justiça social.

 

Ana Paula Ferreira

Militante do Coletivo Feminista

 Mulheres pela Democracia




Imagem: https://www.blogs.unicamp.br/pemcie/2018/03/15/mulher-um-ato-politico/