O que é ser mulher? O conceito parece fácil de definir, mas não é. Ao longo dos séculos foi associada a arquétipos de Maria Madalena ou Maria mãe de Jesus, a pecadora ou santa, a bruxa a ser executada em fogueira ou a esposa cativa. Essa polaridade não dá conta das nuances, das mulheres de carne e osso, das singularidades, das lutas e resistências.
Em
meados do século XX, a filósofa Simone Beauvoir já descrevia que não se nasce
mulher, se torna mulher, mostrando que não é a questão de nosso sexo biológico
que nos define, mas todos os aspectos culturais, políticos, econômicos que
incidem sobre o corpo feminino, estabelecendo padrões de comportamento,
perspectivas, linguagens.
É
importante conceituar o que é mulher? Em termos de políticas públicas sim.
Afinal, somos a maioria da população brasileira, mas a minoria nos espaços
decisórios; somos a imagem do trabalho precarizado nos serviços domésticos e
tantos outros, mas a minoria nos cargos de liderança; somos a filha, a mãe, a
avó, que cuida da família, quando os homens abandonaram os filhos, ou os
próprios pais; e infelizmente fazemos parte das estatísticas que colocam o Brasil
na 5ª posição vergonhosa de feminicídio. Embora em países de economia
periférica a situação de vulnerabilidade da mulher se torne mais desigual em
relação ao homem, a mulher no mundo é figura de segundo plano e por isso compõe
as minorias sociais. Não é sem razão que Simone Beauvoir nomeia seu livro
“Segundo Sexo” para tratar sobre a situação feminina.
Uma
vez uma colega me perguntou se realmente era importante continuar tocando no assunto
do feminismo, afinal hoje em dia as mulheres podem votar, dirigir, fazer
faculdade e tantas outras conquistas. Contudo, a pergunta é: qual grupo
feminino tem essa possibilidade? Temos a liberdade de dirigir, mas em termos
concretos da realidade crua, somos as que engrossam as filas nos transportes
coletivos; temos o direito previsto em Constituição do voto, mas ainda há
milhões que não exercem esse direito de forma plena, guiando a opinião política
com base na do pai ou do marido; somos o grupo com mais Ensino Superior que
homens, porém, também compomos os números que mais sofrem com as crises
econômicas.
Feminismo
não perde a atualidade enquanto houver patriarcado e capitalismo. Isso porque o
que faz o capitalismo para continuar operando? Divide a sociedade entre ricos e
pobres, brancos e negros, homens e mulheres e tantas outras divisões para que
todos os explorados não se articulem, não se unam para a quebra desse sistema
perverso de desigualdades e opressões. Atribui-se privilégios a um determinado grupo
e esse se sentirá como um pequeno rei com seus súditos, diminuindo as
possibilidades de solidariedade entre os oprimidos sociais.
As
estatísticas mostram que isso não é mimimi. Em tempos de pandemia, a mulher foi
um dos grupos mais atingidos socialmente, seja pelo número de desemprego, onde a
taxa de ocupação em 2019 da mulher era de 46,2% e caiu para 39,7% em 2020
(IPEA, 2021). No campo da saúde, as mulheres são 70% dos cargos, mas ganham
menos que os homens (CNN, 2021). No que diz respeito aos estudos, esse também
ficou comprometido uma vez que inúmeras mulheres jovens abandonaram a escola
para cuidar dos familiares. Qual impacto disso? Quanto mais distante da
escolaridade, mais se cria possibilidades para casamentos precoces, gravidez na
adolescência e autonomia financeira limitada.
O
abismo de desigualdades em relação a mulher aumenta somado a vários outros
fatores que não podem ser desconsiderados. É o que a socióloga Saffioti chama
de nó entre classe, etnia e gênero. Sobre esse, não se pode deixar de refletir
a exclusão social da mulher trans, aquela que nasce com a genitália masculina,
mas se identifica como mulher. Raramente conseguem empregos de cargos com
visibilidade social e não é incomum xingamentos, linchamentos, violências, haja
vista que o Brasil também lidera o cruel ranking de mortes a esse grupo
populacional (CNN, 2021).
Se
há violência, o que era de se esperar das políticas públicas é que houvesse leis
com propostas de diminuição da violência. Pensando sobre essa realidade, em
Minas Gerais o deputado André Quintão (PT) propôs multas a estabelecimentos que
se dirigissem com preconceitos em relação a orientação sexual ou identidade de
gênero. Contudo, isso gerou uma aversão
de políticos alinhados a alguma ala religiosa e na cidade de Poços de Caldas,
isso não foi diferente. Um vereador chegou a se pronunciar dizendo que a
questão de gênero era mais perigosa que o nazismo, mostrando o quanto
precisamos avançar em conceitos, em discussões sociológicas e históricas
profundas para que representantes políticos entendam que seus cargos
legislativos ou executivos não são para advogar a favor de suas igrejas, mas
sim, como representantes de toda população, inclusive aquela que não querem
enxergar, que fazem questão de não ver.
É
importante a luta e já dizia a música que “Só mesmo, rejeita, bem conhecida
receita, quem não com dores, aceita que tudo deve mudar”. E para isso, que nós
mulheres, independente de cis ou trans, negras ou brancas, saibamos que a luta
não se faz na divisão, mas na união, pois enquanto houver patriarcado e
capitalismo, há muita desigualdade para se quebrar e há muito a que se
construir sobre sororidade e justiça social.
Ana
Paula Ferreira
Militante
do Coletivo Feminista