No início de 2020 fomos surpreendidos
pela disseminação do vírus COVID-19 e tendo em vista que o sistema de saúde
precisaria de tempo para se estruturar era necessário conter qualquer forma de
aglomeração, antes que entrássemos num colapso. Para cumprir o intento do
isolamento social escolas foram fechadas. Quando isso aconteceu gerou enormes
incertezas, inseguranças, pois não tínhamos respostas nem soluções prontas.
Quando voltaríamos presencialmente? De que forma funcionaria o ensino remoto?
Como seria computada a carga horária? Como as crianças em fase de alfabetização
seriam alfabetizadas em casa sem o apoio mais próximo por parte de um
profissional da educação?
Se por um lado o ensino remoto era
questionado em relação a sua eficiência, por outro, era uma forma de não se
perder o vínculo com o aluno, de mantê-lo em foco em outras atividades, de se
evitar a evasão escolar e também, de prover na medida do possível um conteúdo
para que no retorno a defasagem não se tornasse tão abismal.
Não sabíamos como fazer o ensino remoto,
mas com toda dificuldade mesmo assim fizemos. Podemos apontar três desafios
principais: leis, estrutura e formação. Angústia de não termos orientações mais
rápidas e claras por parte dos Conselhos Nacional e Estadual de Educação; contradição
do governo propor ensino remoto, mas não equipar todos os alunos de acesso a
internet e a dificuldade dos professores não terem muitas vezes uma fluência
digital. E assim, vivenciamos o ensino remoto na reinvenção de cada professor,
transformando o WhatsApp em ferramenta de trabalho, e nunca falamos tanto
quanto em 2020 palavras como Google Meet, Google drive, planilhas, busca ativa,
controle de evasão.
Infelizmente sabíamos que a evasão
acabaria acontecendo e, não só ela, mas o baixo aprendizado também. E apesar de
um despropósito de burocracias, memorando e leis que eram encaminhadas, de
anexos a serem preenchidos, educadores encontraram sentido no trabalho quando
os alunos ao término do ano letivo mandavam mensagens do tipo “obrigado por não
ter desistido de mim”.
Desistência. Essa palavra é extremamente
forte e empregamos nos Conselhos de classe naqueles casos que não conseguimos
estabelecer mais nenhuma comunicação com o estudante. Usamos a palavra,
apontamos o dedo para o estudante pela condição pontual daquele ano, mas não
podemos negar que ao longo de sua história ele, encontrou-se em diversos
momentos desassistido pelo Estado. Desprovido de capital econômico, poderia
ascender ou ter uma vida mais confortável mediante as possibilidades de ampliação
do capital social ou cultural e aí entra o papel da escola como espaço de
aproximação da cultura dominante.
Entretanto, se no modelo presencial a
escola pública, vítima dos ataques neoliberais à educação, também tem os
desafios em ensinar, com o ensino remoto encontraria obstáculos ainda maiores.
Casas viraram escolas, material escolar passou a ser o celular e quem
acompanhava presencialmente o ensino não era mais o professor e sim um membro
da família, que nem sempre tinha preparação para desempenhar tal função. Em se
tratando da classe média, ela poderia dispor de tecnologias da informação e da
comunicação ou até mesmo pagar aulas particulares, privilégio que não é o mesmo
da classe popular. Famílias da classe trabalhadora conviveram com a dificuldade
de uma internet limitada e muitas vezes na ausência de tempo para o
acompanhamento do estudante. Ou seja, é inegável que houve um aumento do abismo
entre classes sociais, cada qual se situando num lugar muito distante uma da
outra.
Aliás, ao falar de lugar lembrei-me do
fantástico filme “O poço” em que os prisioneiros ficam num poço com centenas de
andares e que todo dia desce uma mesa extremamente farta, mas a depender do seu
andar, você não come. Essa metáfora pode ser facilmente transposta para os nossos
dias. A depender do lugar da família ela não come. A depender do andar em que
ela está no “poço” social ela não terá internet e sua forma de comunicação
ficará limitada. A depender de seu lugar, está tão longe de interação e seu
capital social tão restrito que nem fica sabendo sobre formas de sair do poço.
Diante desses “a depender”, incontáveis pessoas estão dependentes de outras
estruturas para conseguirem impulsos para suas autonomias, pois não há
liberdade quando se tem fome, não há liberdade quando não se tem acesso a
informação, não há liberdade se você se sente sozinho.
Diante de todos esses impactos do COVID
na educação, lembro da frase de Darcy Ribeiro quando nos diz que a crise na
educação não é uma crise, é um projeto. Não há dúvidas que a falta de
investimentos é proposital, que o descaso não é ocasional, mas ao sentirmos
toda essa exaustão trabalhista do período remoto, toda essa angústia de se
perceber as lacunas de aprendizado e as consequentes dificuldades de nossos
alunos em saírem do poço, que recordemos a importância de aumentar o eco de
vozes na defesa de uma escola pública, laica, gratuita e de qualidade.
Ana Paula Ferreira