Não nascemos injustos. Somos educados a (re) produzir um senso de justiça e é curioso saber que a palavra senso está atrelada a percepção, ao sentido. Portanto, nossa qualidade de discernimento entre o que seria ou não justo estaria baseada não tanto no campo da racionalidade, mas no sentimento.
Ora, se nossas emoções estão vulneráveis
a uma construção social e cultural e esse controle das mentes e corações é
exercido habilmente pela indústria cultural, que enaltece a verdade dos heróis
e valoriza a história dos vencedores, começamos a compreender o quanto que
nosso senso de justiça está em defesa dos poderosos. Compartilho o exemplo da
história “Os três porquinhos” narrada à exaustão na nossa primeira infância.
Podemos pensar em dois aspectos da
história: sua estrutura linguística e pedagógica. Na primeira, nota-se que os
porquinhos que quiseram se dar ao luxo do lazer, ócio e prazer musical, fizeram
casas de palha e de madeira e tiveram suas construções destruídas pelo
predador. Valores capitalistas tais como trabalho, dedicação, disciplina são reverenciados
na figura de Pedrito, tornando-se explícito que se o indivíduo arduamente se
entregar a uma tarefa, conquistará a prosperidade. Na questão pedagógica é
importante levamos em consideração como que geralmente o conto é trabalhado: as
crianças são levadas a contar até três junto com o “lobo” para que o porquinho saísse;
são incentivados a soprar as casinhas e a desalojar o suíno que não tem outro
recurso senão fugir. O que pedagogicamente ensinamos, seja com a linguagem da
história ou com a didática da contação? Que o que é digno de valor é a história
dos vencedores. Na medida em que o lobo era o animal mais forte, as crianças
eram conduzidas a acabar com a vida que os porquinhos construíram para si.
Contamos a história tal como aprendemos e nem refletimos sobre os seus vários
sentidos com as crianças, o qual poderia também ser a importância da união
entre os mais vulneráveis num processo de resistência contra aquele que tem
mais poder.
Isso aconteceu durante a história da
humanidade. Ameríndios e africanos foram também retirados de suas propriedades,
houve saque, tortura, escravidão com esses povos sob a narrativa de que não
tinham alma, de que se buscava um processo civilizacional e a violência era
necessária para domesticar os bárbaros. Durante tempo nossos livros de história
traziam essa leitura dos fatos e muitas pessoas criaram seu senso de justiça
nesse paradigma, acreditando que indígenas e negros eram preguiçosos e estão em
situação de desigualdade porque não se esforçaram tanto quanto deveriam. É a
mesma lógica que sustenta o fato de não nos sensibilizarmos com o despejo de
moradores do Movimento Sem Terra no argumento de que a terra não foi comprada
nem herdada por esses trabalhadores.
Os defensores dessa justificativa
desconsideram que a própria Constituição Federal prevê a desapropriação de
terras improdutivas e o que o MST faz é forçar essa distribuição, haja vista
que a Reforma Agrária nunca foi política pública séria no Brasil. Para os apoiadores
do latifúndio, “o Agro é tech, o Agro é pop, o Agro é tudo” e não se percebe
que defender essa desigual estrutura fundiária é continuarmos na dinâmica de
desmatamento para que nosso país seja o celeiro e o curral do mundo, é
permanecermos liderando o ranking de nação com o maior consumo de agrotóxicos
do mundo, é colocarmos vidas de tribos indígenas a própria sorte, é de forma
desumana aceitar que famílias pobres sejam retiradas de sua terra num processo
arbitrário de reintegração de posse.
A violência não vem apenas em formato de
força física. Antes, mata sua capacidade de pensar e de se sensibilizar com os
mais fracos. Que possamos enfim, pensar em que medida estamos defendendo os
opressores e renunciando a vida dos mais oprimidos, em que medida nossos
sentimentos já foram capturados para abastecer a história do vencedores, e o
que achamos ter de senso de justiça, nada mais é do que uma mercadoria que já
foi adquirida por aqueles que tem poder.
Ana
Paula Ferreira