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quarta-feira, 26 de agosto de 2020

A terra e nosso senso de (in) justiça

           Não nascemos injustos. Somos educados a (re) produzir um senso de justiça e é curioso saber que a palavra senso está atrelada a percepção, ao sentido. Portanto, nossa qualidade de discernimento entre o que seria ou não justo estaria baseada não tanto no campo da racionalidade, mas no sentimento.

Ora, se nossas emoções estão vulneráveis a uma construção social e cultural e esse controle das mentes e corações é exercido habilmente pela indústria cultural, que enaltece a verdade dos heróis e valoriza a história dos vencedores, começamos a compreender o quanto que nosso senso de justiça está em defesa dos poderosos. Compartilho o exemplo da história “Os três porquinhos” narrada à exaustão na nossa primeira infância.

Podemos pensar em dois aspectos da história: sua estrutura linguística e pedagógica. Na primeira, nota-se que os porquinhos que quiseram se dar ao luxo do lazer, ócio e prazer musical, fizeram casas de palha e de madeira e tiveram suas construções destruídas pelo predador. Valores capitalistas tais como trabalho, dedicação, disciplina são reverenciados na figura de Pedrito, tornando-se explícito que se o indivíduo arduamente se entregar a uma tarefa, conquistará a prosperidade. Na questão pedagógica é importante levamos em consideração como que geralmente o conto é trabalhado: as crianças são levadas a contar até três junto com o “lobo” para que o porquinho saísse; são incentivados a soprar as casinhas e a desalojar o suíno que não tem outro recurso senão fugir. O que pedagogicamente ensinamos, seja com a linguagem da história ou com a didática da contação? Que o que é digno de valor é a história dos vencedores. Na medida em que o lobo era o animal mais forte, as crianças eram conduzidas a acabar com a vida que os porquinhos construíram para si. Contamos a história tal como aprendemos e nem refletimos sobre os seus vários sentidos com as crianças, o qual poderia também ser a importância da união entre os mais vulneráveis num processo de resistência contra aquele que tem mais poder.

Isso aconteceu durante a história da humanidade. Ameríndios e africanos foram também retirados de suas propriedades, houve saque, tortura, escravidão com esses povos sob a narrativa de que não tinham alma, de que se buscava um processo civilizacional e a violência era necessária para domesticar os bárbaros. Durante tempo nossos livros de história traziam essa leitura dos fatos e muitas pessoas criaram seu senso de justiça nesse paradigma, acreditando que indígenas e negros eram preguiçosos e estão em situação de desigualdade porque não se esforçaram tanto quanto deveriam. É a mesma lógica que sustenta o fato de não nos sensibilizarmos com o despejo de moradores do Movimento Sem Terra no argumento de que a terra não foi comprada nem herdada por esses trabalhadores.

Os defensores dessa justificativa desconsideram que a própria Constituição Federal prevê a desapropriação de terras improdutivas e o que o MST faz é forçar essa distribuição, haja vista que a Reforma Agrária nunca foi política pública séria no Brasil. Para os apoiadores do latifúndio, “o Agro é tech, o Agro é pop, o Agro é tudo” e não se percebe que defender essa desigual estrutura fundiária é continuarmos na dinâmica de desmatamento para que nosso país seja o celeiro e o curral do mundo, é permanecermos liderando o ranking de nação com o maior consumo de agrotóxicos do mundo, é colocarmos vidas de tribos indígenas a própria sorte, é de forma desumana aceitar que famílias pobres sejam retiradas de sua terra num processo arbitrário de reintegração de posse.

A violência não vem apenas em formato de força física. Antes, mata sua capacidade de pensar e de se sensibilizar com os mais fracos. Que possamos enfim, pensar em que medida estamos defendendo os opressores e renunciando a vida dos mais oprimidos, em que medida nossos sentimentos já foram capturados para abastecer a história do vencedores, e o que achamos ter de senso de justiça, nada mais é do que uma mercadoria que já foi adquirida por aqueles que tem poder.  

 

Ana Paula Ferreira


                   Foto de Sebastião Salgado