Não
sou “dona”, nem “doninha”, nem “tia”, me chamo Ana Paula e não abro mão do
reconhecimento pelo nome. No livro “O conto da aia”, da canadense Atwood, a
personagem principal chamava-se Offred e vivia numa república teocrática no
qual as mulheres férteis eram destinadas a meras reprodutoras. Aliás, todas as
aias, mudavam de nome ao se tornarem servas sexuais de determinada família.
Lembrando que “of” em inglês significa “de”, o restante do nome nada mais era
do que o nome de seu proprietário.
Essa mudança do nome não é ocasional.
Nome é a identidade de uma pessoa e retirar a identidade de alguém faz parte de
uma proposta de diminuir o sujeito, retirá-lo de seu eixo cultural e de suas
raízes, da onde ela se ancora. Não é a toa que a cristianização nas Américas
subtraiu nomes indígenas, forçando-os ideologicamente a adotarem nomes
cristãos. É também pela mesma razão que pessoas transexuais não puderam
legalmente mudar de nome. Suas identidades de gênero não correspondiam a seu
sexo biológico e o reconhecimento do nome social só foi permitido no Brasil em
2016.
Retirar o nome pelo qual o indivíduo se
identifica é diminuir a pessoa como se fosse tão sem importância, que nem seu
nome pudesse ser falado, repetido ou registrado. Atribuir nome é reconhecer a
importância ou o vínculo com aquele sujeito. Pensemos nos animais: o gado das
grandes fazendas o máximo que recebem é um número de identificação, pois são
apenas mais um; já os nossos animais domésticos, por outro lado são chamados
por um nome, possuem histórias e quando morrem choramos por eles.
Tiramos o nome do ser humano o tempo
todo, ainda mais quando esse ocupa funções socialmente desprezadas. Daí num
bar, não perguntamos o nome do atendente e o chamamos por “garçom”. Na escola
professora vira “tia” ou “dona” e um cliente é tratado por “senhor” ou
“senhora”. Mas o engraçado é que em cargos com alto reconhecimento social
dificilmente não é dito o nome. Há o vereador “Fulano”, o doutor “Ciclano” e a
artista “Beltrana”. Nesse sentido, o nome tem força e serve de abertura para
venda de produtos ou de uma ideia. Aliás, esses nomes que serão registrados em
instituições como símbolo de poder e de memória de determinadas histórias.
Isto não é o mesmo que acontece aos
descamisados nos semáforos, os camponeses sem tetos, os desvalidos, os jovens
sem empregos que são fortemente cooptados pelo tráfico. Estão em condições
parecidas aos do gado para abate: são apenas um número e peças vulneráveis de
um Estado que superdimensiona a necropolítica, onde uns são protegidos e outros
à beira da morte, são desassistidos pela política pública e por um sistema
econômico que trata a classe trabalhadora como mera força de trabalho
substituível.
Se nos tratamos como roldanas,
engrenagens, enxadas, pás, giz, pincel, nosso nome realmente é descartável tal
como é nosso trabalho que pode ser realizado por outros ou por máquinas.
Entretanto, queremos superar o contexto de “Vidas Secas” no qual os filhos do
vaqueiro Fabiano não foram nomeados por Graciliano Ramos. O propósito talvez fosse
mostrar a situação de privação que viviam, inclusive do próprio nome, ou então
para que facilmente identificássemos essas crianças com milhares de outras pelo
Brasil. Num sentido ou no outro, nota-se novamente a relação entre nome e
memória, nome e capital político ou econômico. É certo que o verdadeiro
reconhecimento do cidadão como ser humano seria num outro modelo de sociedade,
que não o tratasse como número eleitoral em época de campanha política ou
número de cartão de crédito. Seria necessária uma sociedade que o homem não fosse
o algoz do próprio homem, ou que a força do dinheiro ou do poder não fosse mais
importante do que a integridade das pessoas. Contudo, talvez como um primeiro
passo para o respeito à pessoa, seja
lembrar seu nome, ao se entender que por detrás desse há toda uma história que
não pode ser apagada.
Ana Paula Ferreira
Mestre em Educação e
Supervisora Escolar da Rede Estadual/ MG